Constitucionalismo

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O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua

23 de dezembro de 2019 by Observatório

(Sentimentos que só se traduzem numa Carta)

Renata Carolina Corrêa Vieira e José Geraldo de Sousa Junior

Realizamos, entre os dias 11 e 13 de dezembro na UnB, o Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua. Em conjunto com esse evento, que já está sendo apontado como o principal encontro jurídico do ano no Brasil, realizou-se também o III Congresso Internacional em Direitos Humanos e Cidadania, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM), também em celebração ao projeto O Direito Achado na Rua.

Mais de 400 trabalhos foram aprovados para apresentação em grupos de trabalho e oficinas, e um plantel de convidados, do exterior (Argentina, Chile, Peru, México, Estados Unidos, Portugal, Espanha, Inglaterra) e do Brasil (de todas as regiões e das principais instituições universitárias e centros de pesquisa), comporão as mesas de debate, cuja riqueza, complexidade e abrangência temáticas se exibem no qualificado programa que forma o evento, no qual se inclui uma sugestiva agenda artístico-cultural. Por isso mesmo, concorreram para apoiar a sua realização agências de fomento e um conjunto importante de instituições e organizações científico-profissionais, além de órgãos da UnB, que tornaram possível a sua realização.

Antes mesmo de instalar o Seminário, em um pré-evento, tivemos entre nós para uma visita celebratória aos 30 anos (26\10), o professor Boaventura de Sousa Santos, presente ativamente no projeto ao longo desses 30 anos, o qual ministrou a conferência Da Expansão Judicial à Decadência de um Modelo de Justiça e proferiu a aula magna de instalação do Curso de Doutoramento do PPGDH.

De toda sorte, na expectativa do encontro entre protagonistas desse projeto e de aquisições por eles realizadas como projeções de grupos de pesquisa, círculos de cidadania e processos didático-pedagógicos, espalhados pelo mundo, mas organicamente vinculados, um formidável movimento de balanço e projeções vem se realizando para aferir a fortuna crítica do projeto.

Entre outros, a publicação na prestigiosa revista Direito e Praxis da UERJ (A1), em seu número de dezembro 2019, em balanço da década sobre teorias críticas do direito, anote-se o ensaio, O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos, caracterizando o Direito Achado na Rua, visto o Direito como Liberdade, porque sua concepção e prática organiza uma Plataforma para um Direito Emancipatório.

Do mesmo modo, a Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, em sua edição de dezembro, dividida em dois volumes, oferece dossiê temático, com ensaios de posicionamento e resenhas que põem em relevo O Direito Achado na Rua: possibilidades de diálogo com a Defensoria Pública e de intervenções em benefício de grupos sociais vulnerabilizados.

Assim é que, como formulado por Roberto Lyra Filho, o Seminário consiste o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua, expressão por ele criada. Nascido em meio à resistente beleza do Cerrado, O Direito Achado na Rua emerge há 30 anos na Capital Federal no ambiente histórico dos trabalhos da Assembleia Constituinte, para constituir-se em um projeto de formulação de uma nova concepção de direito, em uma nova sociedade que se anunciava mais livre, justa e solidária, e que por seu turno apresentam hoje dilemas e desafios que nos convocam à reflexão-ação.

Neste contexto, o evento apresentou-se como um espaço com disposição e potencial para colecionar elementos temáticos e estéticos, modos de interpretar, de narrar e de instituir redes e plataformas para a conformação teórico-prática dos protocolos de pesquisa e extensão que se projetarão no tempo, refletindo sobre o atual momento de crise paradigmática do direito, dos direitos humanos e da sociedade brasileira.

O Seminário constitui-se como um espaço de encontro e diálogo científico, institucional, social e cultural, proporcionando a troca de experiências acadêmicas e de assessorias jurídicas universitárias e advocacia popular em diversos campos temáticos e institucionais. E apresenta-se como espaço-tempo disposto a proporcionar a anunciação de modelos analíticos de impacto e potencial explicativo e de intervenção na realidade do direito, dos direitos humanos e da sociedade brasileira em perspectiva latino-americana. Além de reunir e difundir análises e experiências de assessoria jurídica a povos indígenas e comunidades tradicionais, proteção e combate à violência contra a mulher e à população LGBT, combate ao racismo e projeção de conceitos e práticas aptas ao reconhecimento das diversidades raciais, econômicas, sociais, étnicas, culturais, de gênero e sexualidades, em suas diferentes formulações semânticas sobre o direito em face dos espaços sociais, autoridades estatais e instituições judiciais.

Foram muitas as manifestações de júbilo, reconhecimento e identificação com o projeto, que serão compendiadas nos vários memoriais do Seminário (anais impressos e digitais, fotografias, documentários). Registramos por todos esses aspectos um comentário de sua página no facebook feito por Raquel Yrigoyen Fajardo, a ativista diretora do IIDS – Instituto Derecho y Sociedad, de Lima, Peru: “También en PERÚ, somos tributarias de ese pensamiento crítico y emancipador, heredero de Roberto Lira Filho y Boaventura de Sousa Santos. Aquí dejo un testimonio: hace 30 años tuve la suerte de conocer a José Geraldo, cuando hacía mi tesis sobre las rondas campesinas y buscaba argumentos para plantear su reconocimiento constitucional y que no fueran reprimidas. El marco teórico del “derecho hallado en la calle” me ayudó mucho para tener la fortaleza teórica de sustentar que las rondas aplicaban y ejercían una forma de derecho, de juridicidad, en el marco de un concepto plural de derecho. Y gracias a ello, logramos que así sea reconocido en la Constitución de 1993, como juridicidad y con funciones jurisdiccionales. Por eso tenemos una enorme gratitud a José Geraldo, Boaventura de Sousa Santos y el marco teórico de “O direito achado na rua” Y, en octubre 2019 tuvimos en PERÚ al Priofesor José Geraldo exponiendo en el Curso Internqcional sobre derechos territoriales y consulta previa, coorganizado por el IIDS con la UnB y otras instituciones, aportando una visión intercultural de los derechos humanos”.

Impressões fortes, com valor político e alcance epistemológico necessário. Serão transferidas aos documentos acadêmicos que o Seminário proporcionou. Mas há também sentimentos que orientam o pensar o mundo e que se abrigam no amar o mundo. São como que confissões que se guardam na intimidade das cartas, porque assim, o conhecimento se reveste de afetos:

Carta ao Direito Achado na Rua.

Do céu de Brasília, 15 de dezembro de 2019.

“Querido professor José Geraldo (Zé),

Finalmente, escrevo minha carta. Mas não a escrevo desde Lima, como o senhor me pediu. Escrevo desta ponte, por você imaginada, e que agora trilho, ida e volta e ida, entre Brasília e Lima, após o Seminário dos 30 anos de O Direito achado na Rua. Aqui me permita um parêntese nestas linhas introdutórias. Compreendo agora o que é esse momento de estar em suspensão diante de um turbilhão de emoções, e aqui remeto a carta tão emocionante de Isis, também escrita em transito há pouco tempo atrás. Esse momento de solidão, em que já sozinhas nos deparamos com todos os sentimentos e sensações juntos a uma só vez: a melancolia acompanhada já da nostalgia que trazem as partidas, e a ansiedade confundida com a alegria que as chegadas trazem. Entre a despedida e o encontro, escrevo esta carta.

Hoje, por coincidência (ou não), o facebook me trouxe uma recordação. Se tem uma coisa que gosto nesta ferramenta moderna de comunicação, são essas lembranças que aparecem quando a gente menos espera. Curiosamente, recebi uma notificação de que há exatos dois anos, recebia de presente o seu livro “O Direito como Liberdade”, nele estava escrito uma dedicatória, mais ou menos assim: “Querida Renata (Rê), na expectativa de que os termos aqui propostos possam gerar projetos de vida comuns…”

Não poderia imaginar, há dois anos atrás, que estaria hoje voltando depois da realização desse lindo encontro em Brasília. Tampouco, poderia imaginar que estaria voltando de Brasília para Lima. O projeto comum, traçado em tímidas linhas, parece que encontrou um solo fértil, generosamente cultivado ao longo desses anos. Deste cultivo, junto com tantas outras sementes germinadas, nasceu este grande evento celebratório, que foi nosso Seminário Internacional dos 30 anos do Direito como Liberdade. Um evento que reuniu os mais jovens estudantes da graduação de vários rincões do Brasil, Turmas do PRONERA, Assessorias Jurídicas Populares, lideranças de movimentos sociais, pesquisadores e pesquisadoras de todas as partes do Brasil, o mais alto intelecto de pensadores e pensadoras da teoria crítica do direito e do pluralismo jurídico. Foram mais de 400 trabalhos recebidos, 27 oficinas, mais de 500 pessoas frequentando os jardins, as salas de aula, o auditório, os espaços, entre sorrisos, produção intelectual, abraços e experiências compartilhadas. E eu, estava lá.

Percorrendo a história de O Direito Achado na Rua, e sua larga e fecunda trajetória, me parece pouco o tempo em que nossos caminhos se cruzaram. Porém, tenho não apenas a sensação, como a certeza de que sempre caminhamos juntos. Esse direito que “é, sendo” proposto como libertação dos oprimidos e oprimidas, esse direito como “legítima organização social da liberdade”, sempre esteve em mim. Sempre fui Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) sem saber. Lyra Filho, em seu artigo “Pesquisa em QUE Direito” (1984), gentilmente nos fala “se você produz, intelectualmente, coisas harmonizáveis com os nossos princípios, já entrou, sem sabe-lo”. E, assim, ouso assumir meu papel nessa escola desde quando meus motivos para ingressar na Faculdade de Direito sempre foram o de lutar pelos oprimidos e oprimidas de minha região, no caso, os povos das florestas.

Me atrevo a dizer, hoje, com muita consciência, de que o percurso de minha história atual se confunde com o percurso de O Direito Achado na Rua em minha vida. (Re)construiu não apenas a minha mirada profissional, mas ofereceu as ferramentas de reconstrução de minha subjetividade, ressignificando a minha própria existência. Aqui começo a compartilhar um pouco dessa trajetória.

Saindo de uma crise de depressão grave, após um divórcio traumático, decidi voltar a Academia depois de uma longa viagem pela Amazônia Brasileira, seguida de uma incursão pelas Guianas e Suriname. A reconexão com a minha terra, me remeteu a um desejo sempre existente em mim: produzir intelectualmente e por meio de uma práxis emancipatória contribuir para a luta dos povos indígenas. Assim cheguei aos corredores da Faculdade de Direito da UnB, decidida a re-começar, encontrei ali um homem de cabelo branco, estatura média, magro, com um chapéuzinho panamá e um sorriso gracioso, sempre andando com uma pastinha na mão direita, com um ar jovial e alegre. Meu primeiro pedido como aluna especial na sua turma foi indeferido. Lembro-me da sensação de tristeza quando vi que tinha sido negado meu pedido. Com toda razão, ele não me conhecia. Diante de uma turma concorrida, com tantos pedidos para deferir, por que me selecionaria, vindo eu sem nenhuma referência? Me bastou um sorriso, para que então mudasse o cenário (aqui agradeço a intervenção de Zizi, se não fosse o sorriso dela, talvez meu pedido continuasse indeferido).

Comecei a frequentar suas aulas, era agosto de 2017. Esperava ansiosamente as sextas-feiras, que sem dúvida, eram minhas melhores horas da semana. Ali escutava sobre um tal direito que poderia ser emancipatório, um direito que poderia libertar os oprimidos, novos encontros, novos caminhos, novas chaves de acesso para um mergulho interno que começaria nessas tardes de sextas-feiras. Ali encontrava também palavras que ecoavam em minha alma ao mesmo tempo que estabelecia uma ponte de reconciliação com o direito. Dizia sempre aos amigos que aquelas tardes me ensinavam não apenas sobre teoria crítica do direito, mas aprendia sobre a existência humana, eram aulas e classes de ensinamentos sobre a vida e de como ser gente.

Aos poucos, foi chegando ODANR em minha vida, carinhosamente foi se acomodando nas prateleiras da minha estante de livros, nas minhas tardes de sexta-feira, nas minhas manhãs de domingo nas caminhadas no parque Olhos D’água. Os caminhos foram se costurando, tecendo histórias de vida, projetos em comum. A parceria construída a doses de cumplicidade foi se solidificando.  Por muito tempo me perguntava: “por onde eu andava que não conhecia essas pessoas?”, “O que eu estava fazendo que ainda não tinha lido esse livro?”, “por onde eu andava que não frequentava esses lugares?”. Sempre me foi tudo tão familiar, aquela doce sensação de quando encontramos um velho conhecido que há muito não vemos. Me parecia tudo muito incompreensível não estar neste lugar antes.

Voltando após este Seminário, refletindo sobre o percurso de O Direito Achado na Rua, penso que o nosso encontro se deu no momento certo. O encontro me proporcionou não apenas o mergulho mais profundo com a teoria crítica do direito, como também me ofereceu as ferramentas necessárias para meu processo pessoal e subjetivo de emancipação. Como ninguém se emancipa sozinho, me reconheço em um duplo movimento de libertação, nesse movimento dialético: a minha, que atravessa esse coletivo; e a do coletivo, que atravessa a minha. Juntos lutamos pela emancipação dos sujeitos coletivos de direito; nesse “é, sendo” eterno.

O Direito Achado na Rua marca um divisor de águas na minha vida; de fato, um recomeço, novas páginas em branco a serem escritas, novas possibilidades, novas amizades, novas esperanças, novos sonhos, novos e velhos encontros comigo mesma. Sem O Direito Achado na Rua, não estaria aqui hoje voltando para Lima. Aqui me alegro de poder compartilhar um pouco do que este encontro reverberou nesses últimos três meses.

Me atrevo a dizer que sem O Direito Achado na Rua, não existiria esse encontro com las calles de Lima, cujo ensurdecedor barulho de suas buzinas anunciam os efeitos de um neoliberalismo nefasto já incorporado no quotidiano, na vida e na subjetividade dos limeños. Sem O Direito Achado na Rua, não caminharia num frio intenso por meses, sob um constante céu gris, que me traria mau humor e saudades de Brasília (ali descobri que não há nada melhor do que o calor e o céu azul do cerrado).

Sem ODANR, não haveria este encontro com as ruas tomadas em uma convulsão social por protestos, que culminou na dissolução do congresso peruano. Na minha primeira semana em Lima, acompanhei as marchas que tomavam as calles de Lima sobre o signo “Que se vayan todos”, vozes de um povo cansado de um fujimorismo enraizado, porém ainda sem alternativas para disputar um projeto de sociedade de libertação de seu maior algoz: o neoliberalismo implementado pelo ditador peruano de forma tão atroz, cujo projeto de poder continua encrustado nas elites peruanas que detém a maioria no Congresso e em toda a institucionalidade.

Sem ODANR, não caminharia pelas charmosas vielas de Barranco, onde ali encontraria meu cantinho dessa cidade, o Café “Gato Tulypan”, um lugar que reúne arte independente e música criolla, que resiste como um centro cultural por insistência e valentia de seu jovem curador, Patrício. Sem ODANR, não encontraria na rua Quilca e seus antigos sebos, as primeiras edições das poesias de Cesar Vallejo e seus Heraldos Negros, não encontraria o Perú indígena, do Amauta Mariátegui, não conheceria a Miraflores de Vargas Llosa, e o pôr do sol do oceano pacífico. Sem ODANR, não existiria as prosas de domingo no Mercado de Jesus Maria com o senhor Rafael, que sempre tem o melhor queijo andino para oferecer daquela semana ou mesmo aquela imensidão de frutas, batatas, vegetais, que sem saber os nomes levaria para casa cheia de receitas após divertidas conversas com algumas mulheres no mercado – sempre com um rol de ingredientes que eu dificilmente entendia.

Sem ODANR, não existiria o encontro com a Amazônia peruana e a recepção calorosa da caudalosa chuva, que só o calor e a humidade provocada pelas árvores centenárias da Amazônia nos oferece; não sentiria esse sentimento de chegada, de volta ao lar, ao ver o céu desabar em forma de água, ali entendi – e senti – que não existem fronteiras que separam as árvores, os rios e os povos. Sem ODANR, não haveria uma viagem de avião, avioneta, caminhão, barco, chalupa, dois dias e meio rio adentro para chegar ao Pueblo Ashuar del Pastaza, não encontraria ali este povo alegre, que escuta canções tão semelhantes àquelas acostumadas a ouvir nos rincões mais profundos do Pará. Não conheceria mulheres e homens guerreiros, que lutam contra a exploração do extrativismo, combatendo vorazmente os projetos de mineração e lotes petroleiros, projeto colonialista que continua sendo a matriz econômica peruana; não tomaria banho no rio com as mulheres ashuares, e descobriria que o que temos em comum além do sorriso e a condição de ser amazônica, é a dificuldade de se expressar em castelhano – nossa língua materna é outra.

Sem ODANR, não teria meu encontro com as Rondas Campesinas, o maior movimento do campesinato peruano, não chegaria a 4.200 metros de altitude nos Andes peruanos, em Cajamarca, para conhecer um povoado campesino (descendente de indígenas) de mil habitantes, cujo modo de vida está imbricado com a proteção de seu território, suas lagoas, sua água, sua vida; não seria convidada a desayunar em suas casas, a almoçar no melhor (e mais modesto) restaurante do povoado; não voltaria com eles em uma Kombi, ouvindo seus cânticos de melodia triste, mas que anunciam a vitória após conseguirmos visitar as lagoas de Yanacocha, e atravessar as tranqueiras que lhes impediam de pisar em seu território sagrado depois de nove anos; não chegaria com eles até Quito, depois de 40 horas de estrada, para a reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para apoia-los na defesa no caso Conga, projeto de mineração de extração de ouro maior da América do Sul, que secaria todas as suas lagoas e acabaria com toda a água da região. Não participaria de um evento sobre consulta prévia na Universidade andina Simón Bolivar, e não conheceria as lideranças indígenas que protagonizaram uma série de protestos anti-neoliberais contra medidas autoritárias de um governo que lhes traiu, e que inaugura uma série de insurgências populares em toda nuestra latino-américa.

Sem ODANR, não existiria tardes e tardes compartilhadas com toda a equipe do Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, tantos aprendizados entre sorrisos e guloseimas peruanas, fartura e abundância de tantos sabores deste Peru. Foi por meio de ODANR, que também encontrei a querida Raquel Yrigoyen Fajardo, que me abriu as portas para todos esses novos encontros, por meio do pluralismo jurídico, da litigância estratégica, amizade também tecida a base da cumplicidade e confiança. Também pelo ODANR, cheguei na Universidade San Marcos, para as minhas aulas de antropologia da Amazônia, com a professora Luiza Elvira Belaunde, que me colocou em crise com todo meu marco teórico da minha pesquisa de dissertação de mestrado e que me faz voltar cheia de dúvidas – terei que me entender depois com meu orientador.

Foram tantos os encontros proporcionados por meio deste primeiro encontro com O Direito Achado na Rua, que me caem as lágrimas só de pensar. E já sinto saudades daquele que sorri um sorriso sempre esperançoso e que levanta o chapeuzinho para se despedir, me fazendo rir e chorar ao mesmo tempo. Já sinto saudades dos que ficaram e sinto saudades de tudo aquilo que ainda não vivi.

Volto a Lima feliz, ansiosa para a chegada nesse novo lar, que aprendi a amar, que me abriu novos caminhos e que expandiu a minha alma. Volto a Lima para encerrar esse ciclo de tantas novas Renatas, de tantos novos começos, de tantas e múltiplas possibilidades. Mas volto mais feliz ainda porque sei que meu retorno a Brasília se aproxima e com ele novos desafios, novas aventuras, novos caminhos nesse grande coletivo que é O Direito Achado na Rua.

Queria lhe dizer, professor José Geraldo, que trago O Direito Achado na Rua comigo para onde quer que eu vá, pois já não sei onde ele começa e onde eu termino.

Obrigada Zé,

Obrigada Professora Nair,

Obrigada a todos e todas que juntos compartilhamos estes últimos três dias de seminário, que estiveram presente e espiritualmente conosco.

Obrigada a todos que são e constroem a Nova Escola Jurídica Brasileira, Nair.

Com amor,

Renata Vieira”.

  • Brasília,  15.12.2019
  • Mulher Ashuar, Territorio Ashuar del Pastaza, 30.10.2019
  • Rondero,  Laguna Seca – Cajamarca, 07.11.2019
  • Quito, 10.11.2019
  • Com os movimentos sociais, Universidade Simón Bolivar, Quito, 13.11.2019
  • Com o Amalta Mariátegui – Centro de Lima, novembro 2019
  • Pôr do sol no Oceano Pacífico – Lima, 13.10.2019

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Submissão

2 de dezembro de 2019 by Observatório

Wilson Franco

Em “Submissão”, publicado no Brasil em 2015 pela Alfaguara, o romancista francês Michel Houellebecq retrata uma França em transição: transição do modelo democrático secular para o modelo islâmico (teocrático, ao que tudo indica). A contrário de nossas intuições mais rápidas (e preconceituosas), a transição não é fruto de uma tomada violenta de poder ou de um golpe de Estado: é consequência de um cenário eleitoral em que a maioria dos votantes opta (de forma mais ou menos “inconsciente”) pelo modelo, elegendo um candidato que avança e representa essa proposta. O livro aponta para uma série de questões que não nos interessam aqui, mas deixa claro um ponto central para a compreensão do cenário brasileiro contemporâneo, ponto tornado explícito já no título do livro: a submissão.

A transição brasileira – consagrada pelas urnas, e nessa medida específica uma transição tão “legítima” e “democrática” quanto a retratada por Houellebecq – é a transição em direção a um conservadorismo autoritário. É estranho, e um pouco contraintuitivo, pensar em um regime autoritário a que nos submetemos sem que haja golpe ou recrudescimento nitidamente discerníveis, pode-se mesmo imaginar cidadãos dizendo que isso é “mimimi de esquerda” e que não há autoritarismo nenhum, apenas um governante conservador e de direita. Mas para mim é evidente que o autoritarismo é logicamente inevitável para que esse governo seja sequer imaginável – afinal, a retirada de direitos e da malha básica de seguridade social, somada ao discurso conservador que retira legitimidade do modo de vida de parcelas significativas da população, somado ao discurso “honesto” do tipo “pronto falei”, beligerante e anti-institucionalista do presidente e de todos seus associados, essa soma não pode redundar em nada que não envolva autoritarismo; e efetivamente, a plataforma do governo aponta nitidamente na direção da sanção implícita e explícita à violência e ao recrudescimento da opressão, tanto no campo cultural quanto no campo policial e político. De forma que, noves fora, pode-se entender toda argumentação que tenta sugerir uma composição democrática e “normal” ao atual modelo de governo como cinismo, maldade ou ingenuidade.

Num contexto como esse, de qualquer forma, o que se desenha do ponto de vista de direitos sociais e humanos é um cenário trágico: a submissão do povo brasileiro a um regime repressivo, protegido sob um verniz de regime democrático promovido pelas eleições e retocado pela conivência de inúmeros agentes de Estado em todas suas esferas. Classes médias e elites fingirão que “nada está acontecendo” enquanto representantes de outras perspectivas políticas, frentes de oposição, pobres e pretos são cada vez mais explicitamente desautorizados, perseguidos e reprimidos.

Por falar em “nada está acontecendo”, todos conhecem a tirinha de André Dahmer em que jornais, cartazes e programas de TV alardeiam que “nada está acontecendo” – pois bem, o que se delineia atualmente não é isso, mas algo bem pior: afinal, não parece haver grande esforço para sustentar a tese de que nada está acontecendo; na verdade, ninguém parece esconder o que está acontecendo, e o que está acontecendo segue acontecendo porque estamos sendo forçados, insistente e continuamente forçados a nos submeter. Existe cinismo, fake news, firehosing, existe pactuação venal e sem caráter entre setores de governo e governança, existe manipulação e engodo, existe Olavo e Bannon e neoliberalismo, tudo isso existe – mas o decisivo e crucial é que somos a cada dia desconsiderados, a cada dia humilhados, a cada dia ultrajados, e aos poucos, mas cada vez mais, nos vamos submetendo. A ideia não é dizer que “nada está acontecendo”, mas simplesmente de que o que está acontecendo é legal, é justo e é correto: isso é o traço básico da submissão a que estamos sendo impelidos.

O protagonista de “Submissão”, o livro de Houellebecq, é um professor universitário, um homem de pouca ação e muito envolvido em ruminações. No contexto brasileiro contemporâneo há quem se encaixe num modelo como esse, claro (eu talvez seja um desses), mas a imagem da submissão cabe também para outras formas – porque se pode passar pela submissão esperneando, comemorando, refletindo, chorando; pode-se estar sendo morto pela polícia ou medicado pelo psiquiatra; pode-se estar postando textões ou scrollando gifs de gatos e Beyoncés; pode-se estar “inovando e empreendendo” ou fazendo entregas de bicicleta alugada: seja como for, estamos todos indo para o mesmo lugar – mudam os detalhes e o contexto em que a submissão se dá, mas é sempre de submissão que se trata.

Quem poderá nos defender?, perguntaríamos. Em minha opinião: certamente não o Chapolin, tampouco a ONU e, infelizmente, tampouco o Lula. Creio que Lula, livre, poderia fazer diferença se fosse organizar uma resistência em nome de um Brasil progressista, que combatesse as desigualdades e promovesse desenvolvimento sustentável – mas nada indica que ele pretenda fazer isso: Lula parece pretender costurar o Lula 2.0 e o PT 2.0, as voltas dos que não foram, e acho que isso não nos ajuda (como não ajudam repúdios e notas da ONU ou de quem for). Então é isso: acho que ninguém virá nos defender.

E nós? Poderemos nós defender a nós mesmos? Espero que sim, obviamente. Mas pelo que vejo, não há rede de proteção, e seguimos caindo. Não vejo agentes sociais que possam efetivamente mudar a direção das coisas de forma significativa (tão ridícula é nossa situação que o “centrão” virou protagonista da oposição ao regime). E por fim, mas não menos importante, no horizonte da submissão em curso “democracia” deixa de ser um guarda-chuvas eficiente pra organizar a resistência – o que implica que uma mudança de foco é necessária.

A democracia segue sendo um bom projeto político, isso a mim parece óbvio; mas no momento, enquanto plataforma, a luta pela construção/sustentação da democracia parece ter sido corroída na transição autoritária, como parte do processo e como forma de submissão. Então, ainda que siga achando que democracia é uma proposta pela qual lutar, atualmente vejo a luta se dirigindo para plataformas mais básicas (e por serem mais básicas, enquanto plataformas de luta, elas são mais audaciosas): essas pautas são a humanidade, a civilidade e a dignidade, o direito de pensar, a capacidade de pensar.

Esse ajuste em direção a algo mais básico, por sinal, pode nem ser uma coisa ruim. É ruim, evidentemente, na medida em que dá notícias dos retrocessos civilizatórios que estamos vivendo; mas pode ser bom, na medida em que escancara uma perversidade civilizatória que nos acompanha de longa data – afinal, como já mencionei em meu artigo anterior a este mesmo Observatório, o genocídio do povo negro não começa com Bolsonaro, sendo parte intrínseca da civilidade brasileira há séculos; coisa semelhante acontece com a opressão violenta e sanguinária aos pobres, impondo a aceitação da desigualdade criminosa que grassa em nosso país (e só faz aumentar). Isso posto, podemos entender que a “retração” da pauta da luta pela democracia em direção à pauta mais básica da luta pelos direitos fundamentais pode ser uma boa coisa – um ganho em termos de coerência, e com sorte (e habilidade política) um ganho em termos de coesão e efetividade.

O que significa, em resumo, que a luta é pela não submissão. E, sendo mais claro ainda: a luta não é “contra eles”, mas por nós: por quem somos e pelo que defendemos, por nossa integridade e nosso projeto de mundo.

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E na economia, pode tudo?

2 de dezembro de 2019 by Observatório

David F. L. Gomes

Desde o início do ano, venho trabalhando minhas reflexões aqui neste espaço a partir da noção moderna de Constituição. Já no primeiro dos textos que publiquei, uma das afirmações fundamentais era a de que uma Constituição moderna pode ser entendida como uma tentativa moderna de lidar com o problema da integração em sociedades tipicamente modernas. Enfatizei, tanto naquele primeiro texto quanto nos textos que se seguiram, um dos aspectos desses problemas: aquele referente à dificuldade de manterem-se integradas sociedades extremamente plurais e complexas. Nestas, como é o caso da sociedade brasileira, o desafio é o de como preservar a unidade social sem uma pretensão homogeneizante que elimine as diferenças internas entre pessoas, grupos e regiões. Em um contexto no qual não mais se verifica um conjunto de valores compartilhados que passam por elementos religiosos, éticos, costumeiros e tradicionais em geral, uma Constituição cuja identidade não se confunde com nenhuma das identidades substantivas disponíveis socialmente – como a identidade religiosa predominante, a identidade cultural predominante, a identidade étnica ou política predominantes – aparece como portadora precisamente da esperança de uma unidade na pluralidade, de uma igualdade possível apenas na diferença.

Porém, esse é realmente só um dos aspectos do problema. A essa dimensão da integração da sociedade, soma-se outra, voltada de maneira mais imediata às tarefas de produção e reprodução material das condições de sobrevivência dos membros da unidade social. Em outras palavras, a economia, e as necessidades e as exigências que ela carrega, formam um outro aspecto crucial do problema. Por isso, tenho defendido que uma Constituição moderna precisa ser compreendida como resultado das tensões entre expectativas normativas condensadas no par igualdade-liberdade – em síntese, a expectativa de que a sociedade deva ser um espaço plural, igualitário e livre à manifestação de distintos projetos de vida – e imperativos oriundos da economia de troca capitalista. Qualquer que seja a Constituição específica deste ou daquele país, essa tensão faz-se presente. O que vai mudar de caso para caso é a maneira própria como essa tensão fica estabilizada: ora com maior peso dado aos imperativos sistêmicos do capitalismo, ora com maior relevância atribuída às expectativas normativas que, em regra, impõem limites àqueles imperativos.

A Constituição brasileira de 1988 é um caso típico de uma tentativa de estabilização dessas tensões fazendo a balança pesar mais do lado das expectativas normativas. Saída de dentro dos processos de lutas e reflexões sociais que tiveram lugar sobretudo no final da ditadura de 1964, ela delineia um projeto de sociedade em que a economia capitalista não é recusada, mas é, sem dúvida, altamente domada pelas expectativas de viver-se em uma sociedade futura mais livre, mais justa e menos desigual.

Assim, é certo que a livre iniciativa é um dos fundamentos da República de 1988. Contudo, não por acaso esse fundamento é apresentado ao lado do trabalho, e ambos como valores sociais,  não meramente individuais,no inciso IV do artigo 1o. da Constituição. Algo semelhante acontece com o artigo 170, que abre o capítulo sobre os princípios gerais da atividade econômica no Brasil. Um de seus princípios é a propriedade privada; outro, a função social da propriedade. No mesmo artigo, o inciso IV traz estampado o princípio da livre concorrência, mas os incisos V, VI, VII e VIII estabelecem, respectivamente, os princípios da defesa do consumidor e do meio ambiente, da redução das desigualdades sociais e regionais e da busca do pleno emprego. É assim que deve ser configurada uma ordem econômica, nas palavras do artigo 170, “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e que “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

Não é difícil ler aí as diretrizes fundamentais de um Estado de Bem-Estar Social: manutenção de uma economia privada baseada na livre concorrência, mas dentro dos limites, e servindo aos objetivos, de uma ordem social justa, com vida digna para todas e todos. Negar que esse seja o modelo adotado pela Constituição de 1988 para a relação Estado, economia e sociedade é, quando menos, revelar um desconhecimento básico do texto constitucional, uma incompreensão primária de suas normas – e se não for isso, trata-se então de um simples desrespeito mesmo ao Estado Democrático de Direito, à conformação constitucional de suas instituições e estruturas fundantes.

Desde 2016, é constante o movimento de deterioração desse Estado de Bem-Estar Social, que já era tão precário entre nós se considerarmos o que conseguiu ser em outros países. No entanto, a partir do início deste ano de 2019 a equipe econômica em torno da Presidência da República tem procurado acelerar essa deterioração – e o mais irônico é que essa deterioração progressiva do Estado de Bem-Estar Social parece ser o único elemento a proteger o Governo frente à sua falta de traquejo político-institucional e à sua capacidade de gerar crises e conflitos continuamente em outros temas.

No campo da economia, há indubitavelmente modelos alternativos que se pretendem capazes de gerar bem-estar: a ciência econômica é, já há algumas décadas, pouco mais do que um complexo de modelos abstratos que concorrem entre si no intuito de orientar ações concretas de agentes privados e públicos. Dada essa pluralidade de modelos, é impossível afirmar que apenas um deles – o do Estado como provedor direto de todos os serviços públicos e sociais em sentido estrito, por exemplo – seja adequado ao alcance do bem-estar coletivo, com a correlata redução das desigualdades. Mas, se o caráter abstrato dos diversos modelos permite a vários deles terem a pretensão de gerar igual ou maior bem-estar, essa abstração encontra um limite simples: a história. Alguns desses modelos já tiveram seus elementos colocados em prática na segunda metade do século XX e o resultado foi um crescimento econômico que não se pode negar, mas cujos resultados ficaram nas mãos de poucos: economias dinâmicas e fortes, mas com uma desigualdade crescente; crescimento econômico, mas sem desenvolvimentosocial e humano.

O Chile é um desses exemplos históricos. Sempre louvado, em meio a falácias teóricas e falseamentos históricos, por defensoras e defensores vorazes da redução do Estado – no limite, do fim do Estado de Bem-Estar Social –, ele vê recemente explodir nas ruas as fraquezas de um modelo que, enfatizando unilateralmente o crescimento econômico privado, não opõe aos imperativos sistêmicos da economia capitalista as expectativas normativas condensadas no par igualdade-liberdade: como consequência, é mais uma vez a integração da sociedade que é colocada em xeque.

A equipe econômica do Governo Federal não parece ter em mente um modelo muito distinto. Apoiada em concepções simplórias sobre a economia e a sociedade, ela oferta uma solução igualmente simplória: eliminar o Estado em seu carácter específico, e submeter a sociedade aos interesses privados dos grandes agentes econômicos. Em suma: vender tudo – como se a complexidade a que chegou a economia global, na qual o Brasil está inevitavelmente inserido, fosse passível de uma solução tão rasa. Mas, à maneira de receita pronta disponível em blogs panfletários consultados por adolescente anarco-capitalistas, é essa a alternativa que o Governo Federal tem a oferecer.

Contudo, seria ingenuidade atribuir a responsabilidade por essa solução somente ao Governo Federal e à sua equipe econômica. Como dito acima, há uma relativa incerteza quanto a quais modelos econômicos, tomados em abstrato, podem alcançar melhor determinados resultados – no nosso caso, o resultado constitucionalmente obrigatório do bem-estar. Mas há evidências históricas que claramente falam contra alguns modelos. E, repetindo, é esse o caso do modelo que vem sendo posto em prática no Brasil desde o início do ano. Logo, há evidências empíricas mais do que suficientes para que as medidas político-econômicas atuais do Governo Federal sejam barradas pelo Supremo Tribunal Federal na sua tarefa de guarda da Constituição. Ao não o fazer, o STF assina junto ao Executivo e ao Legislativo como as instituições fundamentais na obra de destruição das frágeis bases do bem-estar social entre nós.

Uma atuação do STF nesse sentido não seria, porém, uma intervenção desmedida de um poder sobre os outros? Não estaria o STF ultrapassando seu limites e desequilibrando a relação entre os poderes? Não. Insisto mais uma vez: não é possível afirmar que haja um modelo único de política econômica para efetivar aquilo que as normas constitucionais de 1988 estipulam; por conseguinte, não é possível ao Supremo Tribunal Federal substituir uma política econômica qualquer por aquela que seus Ministros julgarem mais adequada. Isso não significa, todavia, que todo modelo de política econômica, simplesmente por estar em princípio legitimado pelas urnas, possa ser levado a cabo. Não, nem tudo pode na economia; nem tudo pode na política econômica em um Estado Democrático de Direito conformado por uma Constituição como a 1988. E aquilo que não pode tem um nome singelo: é inconstitucional. Fere a Constituição. Protegê-la não era a tarefa mais importante daquele Supremo Tribunal?

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Do Peru Profundo os Povos Indígenas Trazem de Suas Lutas pelo Bem Viver uma Proposta de Pacto para Renaturalizar os Direitos Humanos

2 de dezembro de 2019 by Observatório

Renata Carolina Corrêa Vieira e José Geraldo de Sousa Junior

Nas grandes mobilizações que tomaram as callesde Santiago e de outras cidades do Chile, confrontando o estado de emergência e o toque de recolher, decretados por uma autoridade desgastada e contra uma política econômica ultra-neoliberal em ruínas, a bandeira Mapuche sobrepairando sobre todas as outras bandeiras de luta,passou a ser o símbolo de uma insurgência que está pondo em movimento a sociedade civil na América Latina.

No Brasil, em meio a ataques aos povos indígenas, os quais, para Jair Bolsonaro, vivem como “homens das cavernas”, o presidente do Brasil agrediu diretamente Raoni, liderença do povo Kayapó,a quem chamou de “peça de manobra”de governos estrangeiros interessados na Amazônia.

“Bolsonaro falou que eu não sou uma liderança. Ele que não é uma liderança e tem que sair, antes que algo de muito ruim aconteça, para o bem de todos”, afirmou a liderança do povo Kayapó de 90 anos, em reunião para a qual foi convidado no Congresso Nacional, pelo Fórum Permanente em Defesa da Amazônia, logo após a manifestação do Presidente do Brasil na abertura da Assembleia das Nações Unidas.

“Meu pensamento é tranquilo, meu pensamento é pela paz. Minha fala é para o Bem Viver, não ofendo ninguém. Que todo mundo viva com saúde, com tranquilidade”, defendeu Raoni. “Minha luta é em defesa dos povos indígenas, pela sobrevivência dos meus netos e filhos, pelo território, pela nossa vida, pelo meio ambiente”. Raoni foi recebido por parlamentares e membros de organizações da sociedade civil que endossaram sua candidatura ao Prêmio Nobel da Paz, apresentada pela Fundação Darcy Ribeiro.

“Aqui, antigamente, só tinha indígenas. Essa é a história que meu pai e meu avô contavam antigamente. Fazíamos festas, grandes, festas, onde só tinha indígenas. Depois, vieram os colonizadores e dividiram o povo”,lembrou Raoni, durante a reunião do Fórum. “Por isso que digo: vocês, brancos, que atravessaram o oceano para vir ao Brasil, têm que respeitar os povos. Fico triste quando vejo um garimpeiro, um madeireiro, matar um parente, porque isso está acontecendo diariamente em todos os cantos do Brasil com os povos indígenas”.

“Vocês têm que escutar os donos da terra, que permanecemos aqui, e vocês têm que nos respeitar. Eu sou contra a violência, porque isso é ruim. Defendo a paz e a união para todo mundo viver bem”, prosseguiu a liderança, antes de se dirigir aos parlamentares: “Eu sou uma liderança do meu povo, assim como vocês também são lideranças para defender o povo de vocês. Bolsonaro é um louco, mas vou continuar a minha luta. Não aceito a violência”.

Começamos fazendo referência ao pronunciamento do cacique Raoni,por duas razões. A primeira, porque ele se apresentou na cena global como a maior expressão brasileira atual em denúncia da posição oficial do país, agora inteiramente aliado do formidável avanço ultra-neoliberal em nosso território, trazendo um dramático retrocesso político e jurídico, contra os trabalhadores e os povos originários, em seu movimento de orientar as políticas econômicas e as políticas sociais e públicas para o interesse da acumulação rentista que tudo coisifica, tudo privatiza, desumanizando tudo, inclusive a natureza. A Amazônia parte desse processo. Raonise fez uma voz forte contra esse movimento avassalador e por isso foi tão acolhido, entre tantos pelo Papa Franciscoque abriu no Vaticano, o Sinôdo da Amazônia.

Em segundo lugar, porque Raoni, sendo uma das lideranças dos povos tradicionais do Brasil, fala de modo muito afirmativo, algo que não está muito presente entre os povos tradicionais brasileiros, que é acosmovisão do Bem Viver.

O Bem Viver, como uma expressão síntese de afirmação do modo de pensar o mundo e o social, juntamente com a unidade desse modo de ser, de conhecer, de poder, como bem demonstra o peruano Aníbal Quijano, para caracterizar seus estudos decoloniais; e de exercitar protagonismo numa unidade integral com a Pacha Mama, só muito recentemente e ainda de modo muito restrito, foi assimilado no discurso dos sujeitos que vivenciam essa condição no Brasil.

Entre nós, a luta histórica dos povos tradicionais, compartilhada pelo mesmo imaginário dos povos originários de nosso continente, foi e ainda é, como se percebe no discurso do Presidente do Brasil, pelo reconhecimento de sua condição humana e de sujeito de direitos.

Os debates de Valladolid, no século XVI, opondo Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas, se bem tenham levado a esse reconhecimento expresso na Bula do Papa Paulo III (Sublimis Deus, 1537), de que os índios têm alma e são gente como nós, não universalizou a compreensão, que a modernidade capitalista engendrou para recrutar insumos para a acumulação, de que os índios, especialmente os americanos, são bárbaros, monstros, bestas, selvagens, silvícolas, alienados do humano, no máximo um sub-produto do meio-ambiente. Há poucos anos em depoimento para um jornal (Porantim), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI\CNBB), o velho pistoleiro falava de suas memórias de agressão a indígenas e dizia: “atirei nele, quando cheguei perto vi que chorava, parecia gente!”.

Não é por acaso que as políticas de acumulação nesse momento, nos nossos países, favorecem o avanço do capital sobre terras e territórios desses povos, desqualificam seus usos e tradições, seu modo de produzir e de reproduzir a sua existência social, a despeito do sistema protetivo de nossas Constituições e dos princípios e diretrizes da Convenção 169 (OIT), esta celebrada neste evento ao ensejo, no marco de seu trigésimo aniversário.

No Brasil, portanto, as lutas indígenas foram marcadas e ainda são, para alcançar esse reconhecimento, simbolicamente estabelecido na Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, atualmente alvo claramente definido a ser hostilizado pela estratégia dos que consumaram o Golpe de 2016, para afastar a Presidência e o projeto democrático-popular que ela conduzia, sucedendo o Presidente Lula, também afastado numa discutível ação judicial agora desmascarada. Por força das mobilizações organizadas dos povos originários e tradicionais, indígenas e quilombolas, a Constituição reconheceu a sua titularidade jurídica autônoma e não mais tutelada e seus direitos cogentes, tal como também estabelece o Convênio 169.

Na base desse reconhecimento, embora com limites no que toca à compreensão do direito que se deva aplicar, e que encontra no positivismo jurídico um duplo obstáculo, o primeiro, já posto em relevo pelo antigo presidente daCorte Interamericana de Direitos Humanos Antônio Augusto Cançado Trindade, que vê no direito positivo a maior dificuldade para internalização nos sistemas de direito nacionais das determinações em sede de direitos humanos dos tratados e das convenções nesse tema, tendentes a legitimar expectativas de pluri-nacionalidade; a segunda, pela resistência política e teórica de assimilar as determinantes normativas, outros modos de compreender o direito, assim aqueles derivados das concepções do pluralismo jurídico, tão decididamente operado nos procedimentos epistemológicos e pedagógicos promovidos pelo IIDS e aplicados no curso que recentemente promoveu e nos debates a seguir referidos.

Mesmo assim, o sistema protetivo tem avançado e têm sido exemplares algumas decisões no âmbito da Comissão e no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Assim, por exemplo, agora em 29 de setembro la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) adoptó su Resolución 47/2019, mediante la cual otorgó medidas cautelares en favor de los miembros de la comunidad Guyraroká del Pueblo Indígena Guarani Kaiowá. Los solicitantes alegaron que las personas beneficiarias se encontrarían en una situación de riesgo al ser objeto de una serie de amenazas, hostigamientos y hechos de violencia presuntamente por parte de terratenientes en el marco de una controversia sobre la propiedad de la tierra.

Al momento de tomar su decisión, la Comisión tomó en cuenta que, durante su visita in loco a Brasil en noviembre de 2018, visitó la comunidad Guyraroká, donde pudo constatar “la grave situación humanitaria que sufren los pueblos Guaraní y Kaiowá”. Asimismo, los solicitantes alegaron que la comunidad se encontraría insertada en un contexto de alta conflictividad entre las personas propuestas beneficiarias y los denominados terratenientes, o de personas que actuarían bajo sus órdenes. En ese sentido, la CIDH advierte con especial preocupación que, según los solicitantes, los miembros de la comunidad han alegado, entre otros, que siempre que salen a cazar o pescar en las cercanías, funcionarios de las haciendas realizarían disparos con armas de fuego, por arriba de ellos, lo que calificaron como una “práctica común” que “acontece siempre”. Además, la solicitud destacó que integrantes de la comunidad Guyraroká habrían recibido amenazas de muerte y habrían sido perseguidos en automóviles por parte de terceros cuando se desplazaban o cuando buscaban realizar sus actividades de subsistencia.

Aunado a lo anterior, la Comisión tomó en cuenta la seriedad que implican los alegatos de los solicitantes en torno al uso de pesticidas en áreas donde se ubican las personas beneficiarias, incluyendo las cercanías de la escuela indígena y sus fuentes de agua, lo que podría incrementar su situación de vulnerabilidad dado que podría tener impactos sobre sus fuentes de subsistencia.

La Comisión considera pertinente aclarar que no está llamada a pronunciarse, por vía del mecanismo de medidas cautelares, sobre quiénes son los propietarios de las tierras en controversia. En el ámbito de las medidas cautelares tampoco se determina la responsabilidad del Estado por el alegado incumplimiento de obligaciones establecidas en la Convención u otros instrumentos pertinentes. El otorgamiento de medidas cautelares se relaciona exclusivamente a los requisitos de gravedad, urgencia y riesgo de daño irreparable establecidos en el artículo 25 de su Reglamento, los cuales pueden resolverse sin tratar determinaciones de fondo. Sobre lo anterior, la CIDH observó que el Estado no aportó información que permita desvirtuar la situación de riesgo a la vida e integridad alegada por los solicitantes, o suministró información que indique que se han adoptado medidas de protección idóneas y efectivas para atender la situación planteada.

En consecuencia, de acuerdo con el artículo 25 del Reglamento de la CIDH, la Comisión solicitó al Estado de Brasil que adopte las medidas necesarias para proteger los derechos a la vida e integridad personal de los miembros de la comunidad Guyraroká del Pueblo Indígena Guarani Kaiowá y para evitar actos de violencia de parte de terceros; adopte las medidas de protección culturalmente adecuadas para proteger la vida y la integridad personal de la comunidad Guyraroká del Pueblo Indígena Guarani Kaiowá implementando, por ejemplo, acciones dirigidas a mejorar, entre otros aspectos, las condiciones de salud, alimentación y acceso a agua potable; concierte las medidas a adoptarse con el pueblo beneficiario y sus representantes; e informe sobre las acciones implementadas tendentes a investigar los hechos que dieron lugar a la adopción de la presente medida cautelar y así evitar su repetición.

El otorgamiento de la medida cautelar y su adopción por el Estado no constituyen un prejuzgamiento sobre una eventual petición ante el sistema interamericano en la que se aleguen violaciones a los derechos protegidos en la Convención Americana y otros instrumentos aplicables.

Por sua vez, no plano da autodeterminação e de reconhecimento da afirmação coletiva de direitos históricos dos povos tradicionais, maior tem sido a admissão, sobretudo do sistema interno de proteção a esses direitos, em parte pela dificuldade de apreender os fundamentos nos quais os povos e as comunidades buscam fundamentar suas reivindicações.

Assim, em outro exemplo, a tensa deliberação no Supremo Tribunal Federal, no Brasil, para reconhecer e definir a demarcação de terras indígenas, por limitada assimilação do conceito de autodeterminação, visto como um risco para a noção moderna de soberania; e também para compreender o alcance simbólico do valor não capitalista de terra e território. Por isso, na discussão para demarcar a terra indígena Raposa Serra do Sol,esses elementos interferiram em toda a decisão, seja para fixar a tese de necessidade de território contínuo, seja para estabelecer um rol extravagante de condicionalidades para o exercício da autodeterminação dos povos titulares de direitos sobre aquela terra e território.

Do mesmo modo, em decisão recente sobre direitos de demarcação previstos na Constituição, no interesse de povos indígenas e comunidades quilombolas, o Supremo Tribunal Federal acabou estabelecendo por maioria que o marco temporalpara fixar a área demarcável não pode ser estabelecido pela situação de ocupação constatada no momento da promulgação da Constituição que programou essa demarcação, mas a de comprovada relação com os povos e comunidades com a terra e o território, de modo permanente ou por meio de retomadas e reocupações, conforme registros antropológicos, históricos, embora esse entendimento ainda não esteja pacificado e o debate sobre ele ainda retornará à agenda do STF.

No Brasil ainda não há registros sobre processos já vivenciados pelos povos originários nas constituições que caracterizam o novo constitucionalismo latino-americano, a partir dos modelos configurados pelas constituições atuais da Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia, que incorporaram em seus fundamentos e na instrumentalidade nelas previstas s direitos da natureza, dos povos, de seus modos de organização e de produção e de sua compreensão simbólica sobre seus modos de desenvolvimento, tudo submetido a sistemas próprios de administração e de acesso à justiça.

No Peru, na Bolívia e também no Equador, esse tem sido o maior embate, com tensões políticas, culturais e jurídicas, e sobretudo econômicas, em confronto com uma governança ultra-neoliberal, que têm afetado as lutas por reconhecimento, por titularidade de direitos, pelo seu modo autônomo de exercício. Tanto mais tenso quanto em relação ao exercício desses fundamentos, entram em disputa concepções de direito, de democracia, de justiça, de desenvolvimento e de direitos humanos.

Depois de uma longa batalha legal, travada nos tribunais, o povo Waoraniprotegeu com sucesso meio milhão de acres (dois mil quilômetros quadrados) de seu território ancestral na Floresta Amazônica contra a exploração de petróleo de uma multinacional estrangeira.

O leilão das terras dos Waorani foi suspenso indefinidamente graças à uma decisão conjunta de três juízes do Tribunal Provincial de Pastaza. A Corte cancelou todas as negociações da empresa petrolífera junto ao governo, tornando nula e sem efeito qualquer tentativa de compra de terras anteriores e futuras.

Tal vitória estabelece um precedente legal inestimável para outras aldeias indígenas em toda a Amazônia equatoriana. Após acatar um pedido de proteção judicial para os Waorani, o Tribunal Provincial de Pastaza interrompeu todos os processos de licitação e de leilão de 16 blocos de petróleo que cobrem mais de 7 milhões de acres de território indígena, cobiçado por diversas empresas do ramo.

Elementos da tensão já mencionada somam-se a outros que a agravam. Conforme foi noticiado, embora não haja provas concretas, algumas fontes relataram que o governo equatoriano pode estar aceitando subornos para acelerar os processos de licitação.

Segundo a Constituição do Equador, as terras indígenas devem ser protegidas. Estabelece-se na carta magna que tais direitos são inalienáveis, inseparáveis e indivisíveis, referindo-se aos povos indígenas como os mantenedores das posses de suas terras ancestrais.

Por fim, a constituição também declara que há necessidade de consulta prévia sobre quaisquer planos para explorar os recursos subterrâneos, dados os prováveis ​​impactos ambientais e culturais nas comunidades tribais.

Como podemos ver, a interferência desses elementos estão por toda parte hoje, no Brasil, no Equador, na Bolívia e agora no Chile. No Peru, por isso mesmo, a sua complexidade e urgência colocam desafios que são os que nos mobilizam para os debates propostos no programa de curso organizado pelo IIDS/IILS en el marco del trigésimo aniversario del Convenio 169 de la Organización Internacional de Trabajo (OIT) sobre Pueblos Indígenas y Tribales, se realizará el Curso Internacional, Interdisciplinario e Intercultural “Protección Internacional de los Derechos Humanos de los Pueblos Indígenas. Derechos territoriales y consulta previa”.

O curso, coorganizado por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH), Instituto Interamericano de Derechos Humanos (IIDH), la Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos (ACNUDH), la Universidad de Brasilia (UnB) en Brasil, la Comisión Permanente de Acceso a la Justicia de Personas en condición de Vulnerabilidad y Justicia en tu Comunidad del Poder Judicial del Perú, el Instituto de Derechos Humanos Pedro Arrupe de la Universidad de Deusto en España y el Instituto Internacional de Derecho y Sociedad (IIDS).

O curso, conforme seus objetivos, respondeu a un escenario de conflictos sociales, generados contra los proyectos extractivos y de infraestructura y los impactos territoriales y la violación de los derechos indígenas. Por ello, su objetivo es fortalecer capacidades para el cumplimiento de los estándares internacionales de protección de los derechos humanos de los Pueblos Indígenas, sobre todo, en materia de territorio y consulta previa.

Por isso queas unidades temáticas nas quais se apóia, están relacionadas a la Visión indígena de la Madre Tierra, la Introducción al Derecho Internacional de Pueblos Indígenas, los Mecanismos de protección nacional y agotamiento de vías internas, los Mecanismos de protección internacional tanto en el Sistema Interamericano como en el Sistema Universal y la obligación de las empresas respecto a los derechos indígenas.

Com metodología participativa con casos prácticos, con el objeto de promover un espacio de diálogo intercultural. e está dirigido a autoridades y dirigentes de Pueblos Indígenas y Afrodescendientes, magistrados/as, funcionarios/as del Estado, operadores jurídicos, defensores de los derechos humanos, relacionistas comunitarios, investigadores/as, profesionales, y todo público interessado.

Uma semana após o curso, uma viagem de assessoramento ao território do Povo Ashuar, que fica no rio Pastaza, desde o Equador, permitiu participar de uma Assembleia dessa comunidade do Peru profundo que cuida 800,000 ha de floresta para benefício de todo o planeta, enquanto o estado não é capaz de garantir os seus direitos. Muito ao contrário, contra ela acumula um passivo ambiental e um incremento de poluição deixada pela atividade petrolífera desenvolvida em parte do seu território. O Ministério da Cultura, apoiando as empresas petrolíferas, reluta em reconhecer ao Povo Achuar do Pastazaa sua personalidade jurídica, requisito que o próprio Estado exige para atribuir título de propriedade territorial, participação política e outros direitos, entre eles a integralidade de seus territórios e a nulidade das concessões petrolíferas outorgadas sem a consulta prévia, livre e informada estabelecida por meio da Convenção 169, da OIT. A Assembleia quer reforçar junto ao Tribunal Constitucional não só o seu dever de definir que entidade ou órgão é competente para reconhecer administrativamente a personalidade jurídica dos povos indígenas e ainda não o faz, deixando em um limbo jurídico os direitos Indígenas, quanto quer estimular no ambiente acadêmico o aprofundamento temático dessas questões candentes.

O mais importante que se extrai de todas essas experiências é trazer para a agenda das mobilizações sociais que tomam as ruas de nossas cidades, a convicção de que não basta positivar normas cuja realização está contida por mediações burocráticas, epistemológicas e políticas que lhes reduz o alcance e frustra a sua concretização. Passar com essas mobilizações da institucionalidade para a rua e, assim, reivindicar um novo constitucionalismo achado na rua, emancipatório e, como também desde o Peru, propunha o padre Gustavo Gutierrez na forma de uma teologia da libertação que se oferecesse como núcleo ético de uma filosofia da libertação.

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Que se Vayan Todos… Atualizações desde Lima, Perú: democracia em risco?

7 de outubro de 2019 by Observatório

Renata Carolina Corrêa Vieira e José Geraldo de Sousa Junior

Primeiro um golpe do Congresso para nomear novos ministros do Tribunal Constitucional (sem respeitar o devido processo de nomeação dos ministros da Suprema Corte que ainda não tinham terminado seu mandato), para que se forme uma maioria fujimorista e assim libertar Keiko Fujimori, atualmente em prisão.

Em seguida, negam a questão de confiança, figura jurídica constitucional que o Congresso tem que aprovar quando o Presidente lhe pede alguma reforma constitucional (e a que ele queria fazer era justamente a reforma sobre a forma de nomeação dos ministros da Suprema Corte). O Congresso ignora o pedido do Presidente e nomeia um fujimorista ao Supremo. O Presidente declara a dissolução do Congresso (diante da negação “tácita” da questão de confiança, uma vez que o Congresso não aprecia o pedido do presidente e segue votando a nomeação da Corte) e, ao mesmo tempo, convoca novas eleições para janeiro/2020.

Em seguida, o Congresso já deposto decide afastar o Presidente por 12 meses por “ruptura da ordem constitucional“. A vice-presidenta abona o golpe e, apoiada por fujimoristas, se autoproclama presidenta do país. As Forças Armadas se reúnem com o Presidente e lhe declaram apoio por considerá-lo o legitimo presidente do país.

Nas ruas, o povo comemora o fechamento do Congresso: que se vayan todos!, grita o povo. Na madrugada, ex-congressistas tentam sair do país (já ameaçados em processos de corrupção e sem imunidade democrática).

As próximas cenas, de uma celeuma juridico-político-constitucional, difícil de entender, colocam em causa a questão, dramática para o Perú, mas de interesse de toda a América Latina: democracia em risco?

Mais difícil ainda para quem, de cidadania brasileira, reside temporariamente no Perú, cumprindo um estágio de intercâmbio acadêmico (UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania e IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima). Mas, por todas essas razões, precisando se situar, circunstancialmente, em meio a essa crise.

Procurando uma leitura editorial um pouco mais distanciada política e racionalmente dos desdobramentos do tenso momento político, encontramos no diário espanhol El País, em matéria de 3 de outubro, assinada por Francesco Manetto e Jacqueline Fowks, um esboço factual acerca dos acontecimentos.

Para os jornalistas, a crise política desencadeada no Peru pelo embate entre o presidente Martín Vizcarra  e o Legislativo, controlado pela oposição, arrefeceu nesta quarta-feira quando fracassou a manobra improvisada da bancada fujimorista e de seus aliados de direita. Após a dissolução do Congresso e a convocação de eleições legislativas, anunciada na segunda-feira pelo presidente, o Congresso virtualmente o destituiu e aprovou sua substituição pela vice-presidenta Mercedes Aráoz. No entanto, ela renunciou na terça-feira à noite, por considerar que não há “as condições mínimas” para assumir o cargo.

Ainda segundo jornal, a nomeação de Aráoz representava um passo perigoso porque mergulhava o país em um grave choque institucional. Aráoz acabou assumindo que a votação no Congresso não era viável. Em carta endereçada ao chefe do Legislativo, Pedro Olaechea, e divulgada nas redes sociais, ela renunciou também ao cargo de segunda vice-presidenta do Governo. Fez isso, afirmou, com o objetivo de propiciar a convocação de eleições gerais e apelou ao pronunciamento da Organização dos Estados Americanos (OEA), que considerou que cabe ao Tribunal Constitucional a decisão final sobre o fechamento do Congresso. “Saímos todos nós e convocamos eleições, mas saímos todos agora e deixemos que o povo escolha agora”, disse Olaechea nesta quarta-feira.

Para os analistas de El País, o controle dessa instância judicial está precisamente na origem desse confronto, que vem ganhando forma há meses e não dá sinais de cessar. Os partidos de oposição pretendiam forçar a nomeação de membros afins no tribunal superior. A líder da Força Popular,Keiko Fujimori, está em prisão preventiva por um escândalo de lavagem de dinheiro vinculado a uma trama de subornos pagos pela construtora brasileira Odebrecht no Peru. E a alta corte terá de decidir se aceita os recursos dos políticos investigados.

Enquanto isso, Vizcarra argumenta que a dissolução do Congresso corresponde a uma tentativa de desbloquear a atividade parlamentar. A oposição não quis dar prioridade a uma moção de confiança [projeto de lei] e, pelo contrário, começou a votar em juízes alinhados com suas posições, chegando mesmo a nomear um deles. A iniciativa parlamentar apresentada pelo Governo buscava modificar o esquema de designação no tribunal superior. “Está claro que a obstrução e a blindagem não cessam e não haverá acordo possível”, declarou o chefe de Estado, que para dissolver o Congresso se fundamentou no artigo 134 da Constituição. Esta norma é agora objeto de debate de especialistas e juristas, a fim de determinar se sua aplicação foi justificada. O texto consagra que “o Presidente da República tem o poder de dissolver o Congresso se este censurou ou negou sua confiança a dois Conselhos de Ministros”. Sua interpretação agora depende da corte.

De todo modo, para El País, o que aconteceu nos últimos dias reflete o alto grau de polarização da política peruana, cercada e golpeada por uma corrupção quase sistêmica. O próprio Vizcarra assumiu o cargo de presidente, em março de 2018, porque seu antecessor, Pedro Pablo Kuczynski, teve que renunciar por causa da investigação realizada pela operação da Lava Jato peruana. Ele tinha derrotado Keiko Fujimori em 2016 por pequena margem. No entanto, o partido dela conseguiu o controle do Parlamento e o estilo de sua bancada resultou em uma crise de legitimidade que ainda não foi resolvida.

O fato é que começou o processo para pôr em andamento as eleições parlamentares convocadas por Vizcarra para 26 de janeiro. O órgão eleitoral nacional estabeleceu, em uma resolução publicada no diário oficial, o encerramento do registro de eleitores em 30 de setembro, a data em que o Executivo publicou o decreto de dissolução do Congresso e a convocação das eleições. O Tribunal Nacional de Eleições especifica que serão eleitos parlamentares “para completar o período constitucional do Congresso dissolvido”. Ou seja, o mandato vai expirar em julho de 2021. Os partidos políticos ainda estão avaliando sua participação.

Difícil de entender em seus próprios contornos, mas ainda quando se busca fazer isso sem a familiaridade da proximidade cultural e no contexto de uma conjuntura de crise obscurecendo a possibilidade de discernir nessas circunstâncias.

Por isso nos valemos de uma tentativa de melhor compreensão a partir de quem, em vivência nativa, pode contribuir para leitura da crise. Assim, emprestamos de um dileto amigo e brilhante pesquisador, ele próprio estando atualmente no Canadá cumprindo um programa de doutoramento, embora com grande experiência de expertise em processos de paz e justiça (juristas expertos extranjerosamicus curiae),integrante da Sala de Justicia (para o caso da Colômbia), junto ao Sistema Integral de Verdad, Justicia, Reparación y non Repetición – SIVJRNR. Jurisdición Especial para la Paz.  Salvador Herencia Carrasco, no Human Rights Clinic- Human Rights Research and Education Centre, U.Ottawa, onde discute para sua tese o colonialismo, os desafios às normas dos direitos humanos, a auto-determinação, o gênero e a sociedade (falta de) representação na Corte Inter-Americana dos Direitos Humanos.

Para Salvador Herencia Carrasco o Peru está neste momento passando por um tempo político turbulento.48 horas depois do Presidente Vizcarra ter disssolvido o Congresso, as coisas estão lentamente a começar a voltar ao normal. As Forças Armadas, os governos estrangeiros e a Organização dos Estados Americanos reconhecem que, de acordo com a Constituição, o Sr. Vizcarra é o presidente.Terça-feira à noite, Madame. A Mercedes Aráoz despediu-se ao cargo de segundo vice-presidente. Sua posse ilegal como presidente de fato por um congresso adiado levou-a e aos partidos políticos que a apoiaram (APRA e Fuerza Popular) a lado nenhum. E muito provavelmente, ela vai enfrentar sérios problemas legais.

No horizonte, uma questão de grande impacto. Os promotores especiais que investigar os casos de corrupção de Lava Jato da Odebrecht no Peru vão investigar (novamente) o seu ex-CEO no Peru, Jorge Barata. Ele assinou um acordo, por isso é obrigado a contribuir com as investigações, ou vai perder quaisquer benefícios acusação.

Uma das grandes revelações esperadas são os nomes de membros do Congresso que receberam dinheiro da empresa durante a última campanha. Sob o arquivo ” campaña Legislativa “, há uma lista de apelidos (por exemplo: ” Shepard Alemão “, ” Doctor № “, ” Alpaca “, ” Alpaca “, etc.) com pagamentos feitos em dinheiro. A mídia tem especulado sobre os possíveis nomes (que cobrem todos os partidos políticos, mas principalmente APRA e Fuerza Popular), mas temos que esperar. Mais uma vez, Sr. Barata deve colaborar plenamente com os promotores peruanos.

O Congresso, liderado pela APRA e o partido de Fujimori agora nomeado como Fuerza Popular, tentou bloquear a investigação da Odebrecht. Entre outras coisas, eles tentaram derrubar o acordo de cooperação entre os Advogados Gerais do Brasil e o Peru ou eleger juízes tendenciosos para o Tribunal Constitucional, o que influenciou a dissolução do Congresso pelo Executivo.

A mídia local informou que alguns dos (agora) ex-membros do Congresso foram vistos no aeroporto, tentando sair do país. Se eles receberam subornos da Odebrecht e isso for confirmado pelo testemunho desta quarta-feira, eles serão presos e processados. As acusações podem ir de suborno a desfalque e qualquer coisa no meio. O pior cenário é que alguns deles poderiam ser investigados como parte de um grupo de crime organizado, o que significa muito tempo atrás das grades.

Vale a nota final e pessoal de Salvador Herencia Carrasco, com a confiança de que algo de bom possa estar no bojo de algo que parece ruim: Como peruano que vive no estrangeiro, não dormi muito nas últimas 48 horas. Tenho estado preocupado com os meus pais, com a minha irmã e amigos. No entanto, além de debates vivas no WhatsApp, há uma sensação de calma. Não houve um golpe, as Forças Armadas estão em suas bases, os meios de comunicação social não foram bloqueados e os jornalistas continuam a informar livremente, independentemente da sua posição política. Livrar-se da corrupção embutida em um sistema político não é fácil. A influência de Fujimori e do seu partido vai continuar, mas não posso deixar de sentir um pouco de orgulho em ver que, apesar da crise, conseguimos manter-nos à tona. Mal. Mas isso vai ajudar por enquanto.

Essa sensação de algo que parece ruim pode carregar a possibilidade de alguma esperança de melhora no ambiente da política, pode ser a atmosfera da conjuntura que vivemos em nossos países ao sul da América.

Mesmo no Brasil onde se vai adensando a consciência de que uma tremenda trama parlamentar-judiciária e midiática operou para instalar um projeto ultraneoliberal e que há alternativas para preservar o projeto democrático-popular que implementava políticas sociais em amparo à dignidade material dos setores mais excluídos da sociedade. A campanha Lula Livre e a enorme solidariedade ao ex-Presidente Lula, muito forte no plano internacional, contribuem para desmascarar toda a urdidura de uma trama golpista, contra a Democracia, o Estado de Direito, a Constituição e, em última análise, contra os trabalhadores.

Na Argentina, a prévia das eleições traz sinais promissores para mostrar que está em curso uma virada anti-neoliberal e de retomada de projetos que resguardem os interesses dos trabalhadores.

Ao mesmo, protestos contra cortes nos subsídios dos combustíveis voltaram a paralisar os transportes em grandes cidades do Equador nos últimos dias, após protestos que já deixaram 350 pessoas presas e ao menos 35 feridos.

A capital Quito, com cerca de 2,7 milhões de habitantes, permanece sem serviço de ônibus e táxi. As pessoas caminhavam desde cedo para as estações do sistema de transporte municipal, insuficiente para levar a população do norte ao sul da cidade. A falta de transportes também afetou outras cidades importantes como Guayaquil (sudoeste), centro comercial do Equador, e Cuenca (sul).

Enquanto os preços dos combustíveis disparam devido às medidas fiscais adotadas pelo presidente Lenín Moreno no início da semana, manifestantes mascarados atiraram pedras e enfrentaram a polícia em Quito, provocando grandes estragos em meio aos piores distúrbios em anos no país, num movimento contra a ação de governo que aproximou o Equador dos mercados depois de anos de um governo de esquerda e alinhou as políticas a um empréstimo de 4,2 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional (FMI), descartando os subsídios dos combustíveis, que duravam décadas, e anunciou mudanças tributárias. A ação contou com a participação de grupos indígenas, estudantes e sindicatos.

Precisamos estar atentos ao que se passa e, tal como no Perú já se começa a divisar, a partir das primeiras análises que procedem de setores populares à esquerda, conforme Tito Prado, líder nacional do Novo Movimento Peru, o lado bom desse processo está em que se “em todos esses anos, o movimento social enfrentou uma dura luta e é o pano de fundo da crise”, o essencial é que “permaneça ativo para garantir uma saída democrática” e assim, pavimentar o caminho para as grandes transformações necessárias aos nossos países.

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Sinais de alerta ligados: nossa democracia e os conflitos entre os Poderes da República

7 de outubro de 2019 by Observatório

David F. L. Gomes

Quando, no fim do ano passado, a vitória do atual Presidente da República tornou-se realidade, um clima tenso – numa mistura de tristeza, incerteza e medo, mistura que ora beirava o desespero – tomou conta das Universidades. Desde aquele momento, minhas tentativas de análise de conjuntura procuravam, apesar de tudo, encontrar alguma linha de raciocínio que recomendasse serenidade.

Essa linha era mais ou menos assim traçada: as eleições haviam ocorrido; não obstante as fake news, a ausência do então candidato nos debates e os discursos de ameaça, explícita ou velada, de grupos que o apoiavam, o resultado era a expressão de alguma normalidade democrática. O futuro Presidente havia sido escolhido nas urnas, e era preciso respeitar essa vitória. Por ora, o que cabia fazer era acompanhar os próximos passos e seguir rigorosamente na defesa das instituições democráticas. Somente no início de 2019, quando o Presidente eleito assumisse efetivamente o cargo, seria possível ter mais clareza do que viria a ocorrer no Brasil.

Como essa era uma resposta demasiado vaga para as angústias daquele agora, eu buscava oferecer também algum vislumbre em relação ao que se poderia mais concretamente esperar neste 2019. Parecia-me não haver dúvidas de que o Presidente eleito não mediria esforços para implantar as propostas que o haviam conduzido até o cargo. Elas poderiam ser divididas em dois grandes blocos: medidas de cunho sócio-econômico, orientadas por uma ideologia liberal e voltadas ao desmonte do ensaio de Estado de Bem-Estar Social que havia sido possível construir ao longo das últimas duas décadas; medidas de cunho axiológico, ético e moral, orientadas por uma ideologia conservadora e voltadas ao desmonte do sistema de proteção de minorias que também havia sido construído recentemente na história do país.

No caminho de implantação dessas medidas, era difícil saber qual seria o papel do Poder Legislativo: por um lado, o Congresso Nacional estaria formado por políticas e políticos bem alinhadas e alinhados com o velho liberal-conservadorismo brasileiro, o que facilitaria em tese o diálogo com a Presidência da República; por outro lado, o agressivo discurso do Poder Executivo contra a chamada “velha política” poderia gerar tensões insolúveis entre os dois poderes.

No que diz respeito ao papel que o Poder Judiciário desempenharia, era menos difícil prever. A jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal e o perfil de sua composição atual apontavam para um cenário em que as propostas de desmonte do Estado de Bem-Estar Social encontrariam muito pouca resistência judicial – se é que encontrariam alguma. No que tange às propostas de desmonte do sistema de proteção de minorias, contudo, o STF dificilmente deixaria de se opor a elas. Ademais, propostas que violassem liberdades individuais fundamentais – por paradoxal que fosse a existência de tais propostas advindas de um governo pretensamente liberal – também receberiam a negativa do tribunal supremo, mesmo quando lograssem alguma vitória em instâncias inferiores.

Com esse quadro em mente, era possível sugerir algo como uma espécie de critério último para o desespero: diante de conflitos com o Poder Legislativo e/ou com o Poder Judiciário, se o Poder Executivo viesse a tomar qualquer medida efetiva de violação da Separação de Poderes seria, aí sim, o momento de constatar que havíamos rompido os limites, por mais flexíveis que eles às vezes se mostrem, de um regime democrático. Haveríamos ultrapassado um limiar que não se deve nem se pode ultrapassar. Se de tais conflitos não resultasse atuação alguma que colocasse em risco a  separação entre os Poderes da República, sinal seria de que as instituições estariam funcionando: apesar do regresso civilizacional que o atual governo e suas propostas representam, a democracia estaria mantida.

2019 veio. Entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, se é verdade que há um ou outro atrito, a relação parece, como um todo, estável e, em grande medida, marcada por cumplicidade. Quando se trata, porém, do Poder Judiciário, mais especificamente do STF, a situação começa a revelar-se algo próxima daquilo que no final do ano passado podia prever-se. A derrota do PSL no caso sobre o ECA e a derrota mais direta do Presidente da República no caso sobre a demarcação de terras indígenas são indícios mais do que suficientes para reafirmar a tendência do Supremo Tribunal Federal de opor-se às medidas de cunho axiológico do Governo Federal e do grupo político que lhe dá suporte.

Logo, é hora de soarem os sinais de alerta. Até o momento, embora com atropelos e falta de jeito, as instituições democráticas permanecem funcionando dentro de uma margem de normalidade – margem que não é possível eliminar em uma democracia constitucional moderna, plural e complexa. Mas conseguirão elas resistir aos embates que se anunciam? Uma parte imensa das propostas que levaram o atual Presidente ao cargo é patentemente inconstitucional – não só no campo axiológico, mas também no campo sócio-econômico. Neste, todavia, vai confirmando-se a pouca disposição do Supremo Tribunal Federal em atuar como guardião da Constituição de 1988. No campo axiológico, entretanto, ele parece avisar que não permitirá a levada a cabo de promessas substantivamente fortes nos laços que unem o Presidente, seu grupo de apoio político e, principalmente, sua base eleitoral. Ou seja, promessas que o Presidente não tem como não se esforçar para cumprir.

Portanto, não há outra conclusão possível: conflitos entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário se avizinham. Como esses conflitos seriam solucionados – ou melhor, estabilizados? Essa é uma das perguntas fundamentais – se não for a pergunta fundamental – de nossa democracia neste momento. Por isso, sinais de alerta ligados.

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Os tempos e os modos da violência à brasileira

7 de outubro de 2019 by Observatório

Wilson Franco

Estou até as tampas com suas teorias,

seus poemas e partidos revolucionários.

Por aqui a palavra Direito não se fez por inteiro.

(Vagner Souza, “Sofrimento de Fátima”)

Certa vez discutia com Vagner Souza, um educador, poeta e amigo, sobre a violência de Estado no Brasil e sobre o impacto dos acontecimentos políticos recentes nesse sentido; dizia a ele que sentia que a eleição de políticos que elogiavam e defendiam a violência policial provavelmente estimularia essa forma de violência, já que representa, ao menos do ponto de vista simbólico e retórico, uma chancela. Vagner então me contou uma história: durante a adolescência decidiu perguntar a seu pai sobre como tinha sido a vida no período da ditadura e seu pai, sem pestanejar, respondeu que não tinha mudado muita coisa, tinha sido “basicamente igual”. Por muito tempo ele tomou aquilo como uma resposta alienada e decepcionante, indício de que o pai era conformista, alienado ou colaboracionista; mas eventualmente, e justamente em função da ascensão do autoritarismo no Brasil recente, ele entendeu algo que o pai provavelmente tinha em vista já naquela época: na Brasilândia (como nas periferias em geral), o regime ditatorial não afetou tão significativamente o cotidiano – lá nunca houve “Estado democrático de direito” a ser suspendido pelo governo militar, as perdas de liberdade civil já estavam postas, digamos, desde o berço. Quando o pai dizia que não tinha mudado muita coisa, então, não queria dizer que não se importava ou que achava o acontecimento (o golpe militar) desimportante, mas sim que para a vida na Brasilândia as perdas de direitos civis e a ascensão da violência e da coação como modo de governo não mudavam muita coisa em relação ao que já se vivia cotidianamente por lá.

Tive essa conversa com Vagner alguns meses atrás. Mais recentemente encontrei uma colocação provocativa na internet ecoando a mesma lógica e a sintetizando, que dizia (basicamente): “ditadura é quando a classe média passa a sofrer com aquilo que os pobres passam o tempo todo”. Quero crer que as coisas são um pouco mais complexas do que isso; ou seja: quero crer que isso é verdade, mas não “resolve” a questão. Quero crer que haja mais elementos em jogo, e que a composição de uma análise abrangente precisaria recorrer a mais elementos para compreender como se passam esses processos. De qualquer forma, retomo aqui esse panorama para puxar um fio que o atravessa, aparentemente menor e menos urgente, mas que acho que pode nos ajudar a pensar a atual situação do Brasil. Quero pensar no problema das violências declarada e implícita, e nos regimes de temporalidade que mediam sua eclosão e silenciamento.

Retomando a narrativa do encontro de Vagner com seu pai, por exemplo: há um elemento importante em jogo ali, que é a compreensão que Vagner pôde fazer daquilo que seu pai disse apenas anos depois, um bom tempo depois. Nesse meio tempo Vagner leu, trabalhou, fez samba e amor, cresceu e adultesceu, tudo isso; mas além disso Vagner, como todo brasileiro, deparou-se com o retorno de uma forma de autoritarismo que grassou na ditadura, e se viu, por assim dizer, arremessado de volta à história do pai. Ele, assim como todos habitantes da Brasilândia e das demais periferias, tem que lidar com a hostilidade explícita da parte dos governantes e dos agentes da lei em relação a eles; tem que lidar com a violência de ser considerado suspeito, estar sujeito a questionamentos, correndo risco de ser enquadrado e detido, correndo risco de ser acusado e de ter provas contra si plantadas pelos próprios policiais, correndo risco de ser morto. O tempo todo.

Só que nada disso é novidade para Vagner, ou para os demais habitantes da Brasilândia; nada disso nasce com João Dória ou com Bolsonaro. Isso estava aí com Fernando Henrique, com Lula, com Dilma e com Temer, e ele vive com a percepção de que estará aí com Bolsonaro e com quem quer que venha depois, seja de direita ou de esquerda. O Brasil indo bem ou mal, crescendo ou em recessão, seja como for que o Brasil esteja ele segue tendo os olhares, os dedos e as armas apontadas para (contra) ele.

Corta pra outra cena na mesma lógica: um sujeito de classe média morando na Vila Mariana é parado tantas vezes por policiais que decide andar sempre com a nota fiscal da bicicleta que usa para se locomover na mochila, como prova de que a bicicleta é dele, e não roubada. Quem adivinha qual a cor da pele deste sujeito?

Corta.

Apenas uma vez em tempos recentes senti um medo que me tenha permitido intuir, em um relance, a magnitude e a intensidade do sofrimento em jogo aqui. No período entre o primeiro e o segundo turnos escrevi algo no Facebook que despertou as hordas de botsbolsonaristas: minha postagem recebeu dezenas de comentários críticos, cínicos, agressivos, alguns ameaçadores. Naquele mesmo dia, quando voltava do trabalho tomei um susto enorme, absolutamente aterrorizador, quando um carro que passava próximo a mim emitiu um estouro – um estouro vindo do escapamento. Convivi alguns minutos com o coração disparado, o pensamento acelerado e as mãos transpirando, mas o que mais me machucava naquele momento era a vergonha: vergonha de estar tão assustado, de ser tão privilegiado, de viver em um mundo tão violento e tão injusto. Vergonha de fazer tão pouco. Vergonha de achar normal.

Corta.

Vem comigo.

O que eu vivi tem a ver com o país em que vivemos. Mas eu, pessoalmente, só vivi isso por conta dos desenvolvimentos recentes – até poucos anos atrás nada disso compunha a imagem que eu fazia do Brasil ou dos brasileiros.

Mas tudo isso esteve o tempo todo aí – e o mesmo tipo de “resgate” que marcou a conversa em dois tempos de Vagner com seu pai aconteceu também comigo, e com outros habitando os mesmos bairros que eu. Eu também pude entender melhor, em tempos recentes, coisas que eram ditas a mim e à minha volta – coisas que eram ditas em mesas de almoço de família, em volta da televisão, em festas de aniversário e casamento. Pude entender melhor a violência que habita nosso país e de que eu, meus familiares, meus amigos somos representantes. Pude entender melhor como a violência atravessa nosso país e cada um de nós.

Um breve exemplo: dei-me conta, pouco tempo atrás, que uma bisavó minha era apelidada carinhosamente de “sinhazinha”; era o apelido dela, e era assim que se referia a ela, sempre – nas vezes em que algum assunto passava por ali diziam “a sinhazinha isso”, “a sinhazinha aquilo”. Levei quase trinta anos de minha vida para me dar conta da violência que isso porta, de quanto isso diz de mim, de minha família, da violência que marca nossa inserção na história deste país.

Em 2019 um adolescente de 17 anos foi amarrado, despido e chicoteado por quarenta minutos. Os chicoteadores que aplicavam o “corretivo” filmaram seus gestos, que eventualmente vieram às redes sociais. (Pense naqueles que optam por não filmar, em quantas vezes mais isso aconteceu antes dessa vez, e quantas desde então).

“Sinhazinha” não é um nome: sinhazinha é indicativo de como a violência atravessa a história de nosso país e de nós todos, como ela faz parte do cotidiano e está presente aqui, hoje.

Por um tempo hesitei em explicitar em meus textos essa vinheta referida à história de minha família. Hoje decido falar disso abertamente por saber que essa é minha história, e por isso me compete nomeá-la e enfrenta-la, mas também por saber que ela não é só minha: é de nós todos.

Bolsonaro não inventou um problema – ele representa um problema, que esteve aí o tempo todo. As coisas que o atual governo faz são inaceitáveis, o impacto dessas coisas para o Estado brasileiro, o povo brasileiro e o futuro do país (e do mundo) são graves, é urgente que façamos crítica e oposição; mas é importante manter em vista que a deflagração de hostilidade e violência a que assistimos não é obra apenas dele ou de seu governo – estava conosco o tempo todo, latente e pulsante em nossas veias e vias e famílias e cidades, nos pequenos gestos e naqueles não tão pequenos assim: nas violências de nossos olhares, de nossas concepções morais, de nossos gestos, nossas falas. O que isso significa, para mim, é que nosso desafio é maior do que apenas vencer Bolsonaro e o bolsonarismo: nosso desafio é enfrentar as marcas profundas de violência que escrevem a história de nosso país e, por consequência, a história de nós todos – nossas famílias, nossos bairros, nossas cidades.

Fiquemos com Vagner.

Decreto

Então fica decretado:

Que nenhuma criança viverá com fome.

Que nenhuma mulher apanhará de um homem.

Que um possa acreditar em Deus,

Outro em Lobisomem.

Que um homem poderá, sim, amar outro homem.

Que Maria, se quiser, poderá virar Johnny.

Que quem trabalhou na terra é dono daquilo que come.

Mas vou ficando por aqui

Antes que alguém me chame

De terrorista, comunista

Ou algum outro nome.

(Vagner Souza: De lágrimas, sonhos e revides. São Paulo: Edições Incendiárias, 2016).

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#Que Se Vayan Todos

9 de setembro de 2019 by Observatório

Renata Carolina Corrêa Vieira* e José Geraldo de Sousa Junior

Foto: acervo autora

As ruas de Lima foram tomadas por uma grande mobilização nesteúltimodia 5 de setembro. Numa convocação por un  Perú con igualdad, justicia y libre de violências y corrupción, a Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos, impulsionou a marcha, junto com diversos coletivos, acadêmicos, organizações estudantis, sindicatos e até partidos sob um forte grito “que se vayan todos, que se cierre el congreso y que se adelanten las elecciones”.

O mote para a mobilização, segundo a chamada é, como dizem, la grave crisis nacional que o país vive e que remonta a julio de 2016, com o resultado contestado das eleições. Mas a sua expressão atual es política, social y ética y revela con crudeza a adoção de políticas que somente têm favorecido aos poderosos e aos donos do país, trazendo, como consequência, o corte e a negação de direitos e se convertendo numa constante que impede o acesso a uma vida plena, com justiça e dignidade.

Pelas ruas, se encontrava desde crianças, estudantes e idosos, coletivos que se posicionam desde à esquerda mais radical à direita liberal, todos envoltos em sua bandeira vermelha e branca, sob o grito de ordem: “Perú te quiero, por eso te defiendo”. No Peru, não lhes foi roubado as suas cores e seu signo.

Foto: Ojo-Publico.com / Alonso Balbuena.

Embora o foco da convocatória tenha ênfase na crise política, o Judiciário do país e o acesso à justiça têm sido alvo de forte crítica, desde o ano passado. Em 27 de julho de 2018, o Congresso peruano aprovou, por unanimidade (118 votos), a destituição dos integrantes do Conselho Nacional da Magistratura (CNM) do País. Os sete conselheiros do órgão estavam envolvidos em um escândalo de corrupção atingindo os mais altos níveis do judiciário peruano.

O CNM tem funções similares ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Brasil, como a de melhorar a gestão e fiscalizar o Judiciário.  Em meio a crise, agudizada por fortes protestos populares, o Presidente do Supremo Tribunal do Peru , acabou por se demitir.

Assim, volta a aparecer nos discursos de crítica aos sistemas de justiça na América Latina, a palavra de ordem que se inscrevia em muros de várias cidades sul-americanas, nos anos 1990/2000: que se vayan todos!

Na América Latina inteira, um pouco por toda parte, em que pesem soluços regressivos de autoritarismo útil ao projeto neoliberal que procura instalar-se em nossos países, a exemplo do que ocorre agora no Brasil, essa disposição democrática por justiça, igualdade, dignidade e respeito aos direitos humanos, enraizou-se definitivamente na cultura de nossos povos.

Na Venezuela de Chávez, em 2002, contra a tentativa de golpe, essa mobilização se fez forte e se expressou em palavras de ordem inscritas nos muros das ruas de Caracas: “Las calles no se calan! Exigimos justicia!”.

Em entrevista à Folha de São Paulo (A 14, 25/4/05) Marta Lagos, Diretora da Latino Barómetro, vê com boa expectativa democrática as movimentações sociais na América Latina atual, salientando o fato relevante de um protagonismo popular que, “de maneira crescente, se dando conta de seus direitos, volta às ruas para exigi-los”. Indica, além disso, que esses movimentos parecem sinalizar às elites que elas “não são adequadas ao momento democrático pelo qual passa o nosso continente”. Para ela, “as populações latino-americanas, hoje, parecem estar um passo à frente das elites que as governam”. Já em 2005 (Folha de São Paulo, A 14, 27/4/05), em Quito a matéria chamava a atenção para a retomada da mesma palavra de ordem que agora se proclama no Perú: Que se vayan todos!! – Que todos partam!!

Surgida pela primeira vez na Argentina, nos piquetes e nos cacerolazos (panelaços) de 2001/2002, a consigna que rapidamente se inscreveu no imaginário latino-americano sublevado, logo passou a traduzir a interpelação popular pelo desmantelamento das estruturas oligárquicas e das instituições por elas criadas e funcionalmente a serviço de seus interesses.

Curiosamente, embora dirigida aos políticos em geral, em coro nas marchas ou pintadas com aerosol em muros e paredes, estas palavras de ordem, lembra Julio de Zan (La Ética, los Derechos y la Justicia. Fundación Konrad-Adenauer, Uruguay, Montevideo, 2004), ganhou maior ressonância quando dirigida “contra membros do Poder Judiciário, em particular contra os próprios juízes” repetida que foi em manifestações massivas,  por exemplo, “diante da Corte Suprema de Justiça em Buenos Aires, quando exigiam a renúncia dos magistrados”.

Foto: Ojo-Publico.com / Alonso Balbuena.

A esse respeito, em questão proposta ao jurista Carlos Maria Cárcova, antigo membro do Conselho de Justiça da Província de Buenos Aires, nesses termos (Observatório da Constituição e da Democracia: Brasília: Faculdade de Direito da UnB/SindjusDF,  n. 20, março de 2008, pp. 12-13):

“O Senhor integrou como membro o Conselho de Justiça da Província de Buenos Aires. Exatamente numa época em que as demandas sociais por justiça acabaram identificando nos juízes, um grande obstáculo às reivindicações de direitos. A expressão “que se vayan todos” traduz bem o repúdio social à incapacidade dos juízes e do direito positivo de assimilarem ou mesmo compreenderemo alcance dessas demandas. Afinal, que fazem os juízes quando julgam?”

Ele afirmou:

“La consigna “que se vayan todos” estuvo claramente dirigida a los políticos, sea del partido que fueran. Era una consigna más que discutible desde una posición democrática y transformadora, con un tufillo algo facistoide, pero que prendió en la gente, frente a una situación de ingobernabilidad extrema, de una crisis económica sin precedentes y de un saqueo ilegítimo de los ahorros de la ciudadanía, cuyos depósitos en cuentas corrientes bancarias, cajas de ahorro, acciones, plazos fijos, etc. fueron incautados. ¿Qué hizo la ciudadanía? Confió en los jueces y colapsó los juzgados con recursos de amparo (mandatos de seguranza). La Corte Suprema de entonces, de mayoría menemista, intentó legitimar las decisiones expropiatorias del Ejecutivo, pero la Justicia de Primera y Segunda Instancia siguió haciendo lugar a los amparos y declarando la ilegitimidad de las medidas. Luego el Gobierno fue dictando medidas tendientes a arbitrar entre ahorristas y banqueros y lentamente se llegó a acuerdos que significaron recuperar parte sustancial de los dineros reclamados. En cuanto al desprestigio de la Justicia, debe consignarse que estuvo fundamentalmente acotado a la denominada justicia federal, que era la encargada de juzgar a los funcionarios y perseguir la corrupción. Esa fue constituida en épocas del menemismo bajo un signo de marcado clientelismo político, (todavía no había concursos para la designación de magistrados). La mayoría de esos jueces ya han renunciado y los nuevos provienen de concursos cuya legitimidad no se ha cuestionado. En mi opinión, para concluir, durante la crisis del 2001/2, la ciudadanía buscó protección en la Justicia y, por lo general, la obtuvo”.

Em 2005, em Quito, a crise se desencadeou logo após a dissolução da Suprema Corte do Equador, colocada no seu epicentro, como um dos fatores políticos que lhe deram causa. Não se trata de forçar uma centralidade, mas de destacar que um apelo à defesa, à sua preservação e à renovação democrática passa necessariamente pela reconstrução das instituições políticas e judiciarias.

O trabalho organizado por Julio Zan, acima citado e a manifestação de Carlos Cárcovatêm por motivação o tremendo embate que se abriu na Argentina após as interpelações que se fizeram na Venezuela, no Equador e agora no Perú. Elas afetam os Tribunais Constitucionais, os Tribunais Eleitorais e as Supremas Cortes, mas também o Executivo e o Legislativo, até chegar ao “fora todos”.Nesses países, foram essas circunstâncias limite, lembra Zan,os determinantes que levaram “amplos setores da própria magistratura argentina a compreender a necessidade de encarar uma profunda renovação ética da justiça e  trazer a instituição para mais perto da cidadania”. E neste momento, a trazer a cidadania para o centro do protagonismo que rejeita a austeridade concentradora a serviço da acumulação das elites, conduzindo com seu protagonismo eleitoral uma retomada democrática de um sistema de mais efetiva dignidade distributivista, como parecem indicar as eleições em curso.

No Brasil, o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e contaminou a própria história do País. Uma cumplicidade nefasta, ardilosa, traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores institucionais e do sistema de justiça engolfaram-se na necropolítica que produz a exceção. Julgavam-se aliados num arranjo semelhante a um partido. Não são, agora se revela, correligionários, são cúmplices, sacrificam a ética funcional configurada como “filigrana jurídica” no descaminho da política e, em última análise, da Justiça. Seu crime é de lesa-pátria e de lesa-Constituição,  imprescritível, imperdoável, inapagável.

Para estes que deram um mergulho sem volta no abismo da iniquidade política, que atravessaram a metade do rio contra a corrente da dignidade e da lealdade com o povo: Que se vayan todos!

*Atualmente em programa de visita acadêmica junto ao IIDS (Instituto Internacional Derecho y Sociedad), Lima, Peru (Programa de Cooperação Interinstitucional UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania e IIDS).

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Destruindo a Amazônia e a Lei

28 de agosto de 2019 by Observatório

Mariana Mota Prado

Nos últimos dias, a comunidade internacional voltou sua atenção para o Brasil devido à quantidade de incêndios na Floresta Amazônica. O governo brasileiro primeiramente anunciou que não tinha recursos para combater o fogo, mas parece inclinado a recusar a ajuda técnica e financeira oferecida pelo grupo dos 7 (G7). Grande parte da preocupação era o fato de que Bolsonaro não parecia disposto a combater o incêndio, dando de ombros para a crise. A urgência vinha não apenas da importância da floresta para a estabilidade climática global, mas também do risco de a destruição atingir um ponto irreversível, quando o ecossistema não consegue mais se renovar. Nesse ponto do não retorno, ainda que se pare toda e qualquer ação de destruição, a floresta se converteria em cerrado através de um processo natural.  

A pergunta que fica é se há algum mecanismo legal para lidar com a crise. A resposta parece ser negativa. Um ex-ministro das relações exteriores do Canadá, juntamente com um ex-embaixador do Canadá nas Nações Unidas argumentaram que o direito internacional, sob a doutrina da responsabilidade de proteger, poderia justificar uma intervenção em território brasileiro. Todavia, a solução parece arriscada. Uma potencial intervenção internacional não apenas alimentaria o discurso do governo sobre colonialismo por parte das nações ricas, mas poderia gerar uma crise de maiores proporções, caso o governo brasileiro resistisse à medida, da mesma forma como resistiu inicialmente à oferta de ajuda técnica e financeira do G7.

No plano doméstico também não parece haver uma solução fácil para o problema. A Procuradoria Geral da República e a Câmara dos deputados pediram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para alocar, para a Amazônia, parte dos R$2,5 bilhões de reais obtidos através de acordo entre a Petrobrás e autoridades norte-americanas. O Ministro Alexandre de Moraes marcou audiência para quarta-feira (dia 28 de Agosto) para discutir o tema. Mas ainda que o STF dê seu aval para a utilização desses recursos para a preservação da Amazônia, não está claro qual seria a entidade responsável por utilizá-los. Como reporta o JOTA, a Câmara argumenta que R$ 200 milhões deveriam ser usados “para descontingenciar o bloqueio orçamentário em programas relacionados à proteção do meio ambiente; e R$ 800 milhões para ações destinadas à prevenção e combate de incêndios florestais.” Isso significa que R$ 200 milhões ficariam à disposição do governo federal para ações de preservação ambiental; o mesmo governo que demitiu o chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), quando o Instituto publicou dados sobre o aumento do desmatamento na região amazônica. “Os R$ 800 milhões, defende a Câmara, devem ser utilizados tanto pela União, por meio do Ministério do Meio Ambiente, quanto pelos estados da região amazônica afetados pelas queimadas“. Ou seja, parte desses recursos está sendo destinado para o mesmo governo federal que se recusa a reconhecer que a situação é crítica. Caso o STF decida pela alocação, vai precisar também de algum instrumento legal que comande ação direta e específica do poder executivo para o uso dos recursos, seguido de monitoramento. Sem isso é pouco provável que esse dinheiro faça diferença.

O pedido da Câmara de Deputados revela uma das formas como o governo tem minado as ações de proteção a preservação da Amazônia: contingenciamento de recursos. O processo de alocação orçamentária no Brasil dá amplo poder para o Presidente para conter a distribuição de recursos alocados pela Lei Orçamentária Anual (LOA). O corte de recursos afetou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e alguns de seus programas como o de combate a incêndio gerido pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo). Mas as ações do governo vão além disso. Uma parte do dinheiro para preservação da Amazônia vinha do Fundo Amazônia, que tinha a Noruega e Alemanha como principais doadores. Os recursos são alocados pelo Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Cofa), que foi extinto em abril pelo decreto presidencial 9.759/2019. Conforme documentado por Heloísa Câmara nesse website, a restruturação de órgãos e extinção de comitês através de decretos basicamente inviabiliza a efetiva aplicação da legislação que existe no país.

Enquanto algumas dessas medidas implementadas via decreto foram revertidas pelo legislativo, há outras, como a demissão de funcionários, que praticamente inviabiliza a operação de órgãos da administração. Em fevereiro, o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, exonerou 21 dos 27 superintendentes do IBAMA. As superintendências atuam nos estados e são responsáveis por operações de fiscalização e emergências ambientais, além de atuar na prevenção e no controle de incêndios florestais. Elas também têm poder de impor pequenas multas por  incêndios (até R$500.000,00), que compõe a maioria das multas impostas pelo órgão. Os funcionários do órgão foram proibidos de dar entrevista à imprensa, mas ainda assim escreveram uma carta aberta, publicada nesta segunda (26 de Agosto) com uma série de reinvindicações para impedir o colapso da gestão ambiental. A carta indica que o órgão perdeu 24% dos seus fiscais entre 2018 e 2019. As multas impostas pelo órgão caíram 34% de janeiro a maio de 2019, a maior queda já registrada na história.

Bolsonaro não inventou uma fórmula nova para engessar a administração pública e com isso inviabilizar a aplicação da legislação do país. Lula também contingenciou recursos e deixou vagos cargos na diretoria de várias agências reguladoras, uma herança das privatizações promovidas pelo governo de FHC.  Essas medidas afetaram negativamente o funcionamento do estado regulador no Brasil. A falta de legitimidade democrática e a questionável legalidade dessas medidas é a mesma, tanto no governo Lula quanto no governo Bolsonaro. O problema é que o desmatamento da Amazônia pode não ser reversível. Portanto, não apenas falta legitimidade, mas há um senso de urgência nesse caso.

Muita saliva e tinta têm sido gastas para discutir quem são os culpados. Discute-se se as queimadas são naturais ou causadas por ação humana e, nesse caso, quem poderia ter iniciado o fogo. O governo chegou a acusar ONGs de serem as causadoras do dano, enquanto os críticos do governo acusam os fazendeiros da região. É possível que alguns desses focos sejam resultado de incêndios naturais, que ocorrem na região na época da seca. Um outro debate é sobre a magnitude do incêndio, com alguns argumentando que nunca a quantidade de incêndios tinha chegado a um patamar tão alto. Muitos atribuem a quantidade de queimadas e facilidade com que o fogo se espalhou ao alto índice de desmatamento nos últimos meses. Nenhuma dessas questões, todavia, muda o fato de que é necessária uma ação urgente por parte do governo. E para aqueles preocupados em buscar soluções, infelizmente, parece que o direito – doméstico ou internacional — tem muito pouco a oferecer. 

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Identidade constitucional e os limites de um governo conservador

3 de agosto de 2019 by Observatório

David F. L. Gomes

Nos meus três textos anteriores publicados por aqui, preocupei-me, em primeiro lugar, em discutir o conceito moderno de Constituição naquilo que se refere a alguns de seus traços mais fundamentais. Em seguida, articulando presente, passado e futuro, procurei refletir sobre o que foram os trinta anos iniciais de vigência da Constituição de 1988 e sobre os horizontes que se apresentam a ela – logo, a nós – para os anos vindouros. A partir deste quarto texto, munido já dessa discussão anterior que permanece como pano de fundo, gostaria de discorrer sobre algumas questões um pouco mais concretas do contexto constitucional brasileiro contemporâneo.

Desde as eleições de final do ano passado, um dos pontos problemáticos que vieram ao primeiro plano foi a insistente afirmação, por parte do grupo político que ora ocupa o Poder Executivo federal, de uma certa essência da nacionalidade brasileira. Sem muita novidade de um ponto de vista histórico, essa essência é apresentada como a de um país cristão, um país que, por conseguinte, seria avesso a compreensões de mundo e a práticas sociais e políticas feministas, LGBT’s, antirracistas e vinculadas em geral à esquerda do espectro ideológico. Essa pretensão quanto a uma suposta identidade nacional brasileira delimita implicitamente a atuação hoje do governo federal, naquele pouco que se pode dizer sobre algo de planejado e coerentemente organizado em tal atuação. Porém, mais do que uma delimitação implícita, a alegada identidade nacional – a suposta essência da brasilidade – vem por vezes explicitamente figurar como motivos de ação governamental. Para não me alongar nos exemplos, basta lembrar-se da célebre justificativa para os cortes orçamentários nas Universidades públicas.

O mais grave de tudo isso é que a alegação de uma essência da nacionalidade brasileira reivindica para si a força da legitimação democrática: se realmente o Brasil é isso, então é porque a maioria de seu povo também é assim; logo, se democracia corresponde à vontade do povo, nada mais correto do que um governo que aja em consonância com essa vontade, ou seja, com aquela essência da identidade nacional.

Essa articulação entre identidade nacional e democracia não é algo novo. Ela é pelo menos tão antiga quanto a própria democracia moderna. Mas será que realmente democracia pode ser compreendida simplesmente como vontade do povo – qualquer vontade – e esse povo pode ser entendido como uma essência dotada de uma identidade homogênea? A resposta é simples: não.

Se a confusão entre vontade do povo, identidade nacional e democracia nasce junto com a democracia moderna ela mesma, isso apenas nos diz que há mais de duzentos anos essa relação confusa vem sendo pensada, problematizada e criticada. Em linhas muito gerais, o problema de reduzir democracia à vontade de um povo tomado como uma essência identitária é acabar fazendo com que a democracia se torne uma ditadura da maioria – ou seja, o oposto de uma democracia.

Mas como pensar democracia sem vinculá-la à ideia de vontade popular? E como pensar o povo de um país sem pensar em uma noção de identidade nacional? Seria preciso abrir mão tanto da ideia de vontade do povo quanto da própria ideia de povo? E, se fosse assim, a democracia não perderia o sentido?

Sem dúvida, não há sentido em uma democracia que não possa ser referida ao poder do povo. O problema está em como compreender o exercício desse poder e em como compreender o povo que o exerce. A resposta a essas duas questões pode ser encontrada nos dois séculos de aprendizagem que caracterizam o Constitucionalismo moderno: a relação entre democracia e povo não desaparece, nem se enfraquece; ela apenas se revela mais bem tratada como relação entre democracia e uma Constituição que o povo dá a si mesmo.

Na medida em que essa Constituição está elaborada por esse povo, porém, ele não pode simplesmente se desfazer dela a seu bel prazer, a qualquer tempo e por qualquer motivo. Afinal, ela estabelece as condições para que o povo ele mesmo possa continuar sua experiência histórica como sociedade que se governa democraticamente, de maneira que abrir mão dela significa sempre uma ameaça a essa possibilidade de autogoverno democrático.

Mas, estabelecida a democracia em sua relação com o Constitucionalismo e com as Constituições, como ficam as noções de povo e de identidade? O primeiro passo é entender que povo nunca é uma massa homogênea, nunca é uma essência unitária. Assim, por mais que haja uma população majoritariamente cristã no Brasil, por um lado isso não significa que toda a população brasileira seja cristã e, por outro lado, não significa que dentre a população cristã todas as pessoas tenham as mesmas concepções de vida e as mesmas visões de mundo. Povo é sempre algo plural, marcado por gerações distintas que convivem num mesmo espaço, por regiões distintas que convivem num mesmo tempo, por convicções variadas quanto a todos os aspectos da vida. O segundo passo, então, é voltar à questão da identidade a partir dessa noção alterada de povo. Se o povo é uma instância múltipla e plural, a identidade que importa para uma democracia lida como vontade do povo não pode igualmente ser uma identidade essencializada – como, por exemplo, se aidentidade da população brasileira, sua únicaidentidade relevante, fosse ainterpretação específica dos valores cristãos feita pelo grupo político que atualmente ocupa o Executivo federal.

Essas duas noções de povo como pluralidade complexa e de identidade relevante para uma democracia como sendo diferente de uma identidade nacional essencializada aparecem reunida no conceito de identidade do sujeito constitucional, ou simplesmente identidade constitucional. Desenvolvida sobretudo por Michel Rosenfeld e, no Brasil, trabalhada por nomes como Menelick de Carvalho Netto, Marcelo Cattoni, Maria Fernanda Repolês e Francisco Prates, a noção de identidade constitucional refere-se exatamente à relação entre povo, democracia e Constituição. Se uma democracia moderna é uma democracia de um povo plural, e se o desafio maior de uma Constituição é assegurar a integração social desse povo, então a identidade constitucional refletirá a pluralidade que caracteriza a noção moderna de povo. Portanto, ela não é essencializada, como a identidade nacional, mas plural, aberta e complexa. Ela certamente não pode deixar de ter relação com as outras identidades coletivas importantes de um país: a identidade nacional historicamente construída – nunca uma essência a-histórica; a identidade religiosa, a identidade cultural, a identidade moral, a identidade política. Mas, ao mesmo tempo, não pode reduzir-se a nenhuma dessas outras identidades, para exatamente permanecer aberta e plural. Logo, ela é também fragmentária e incompleta: compõe-se de fragmentos dessas outras identidades que vão sendo assimilados e, por essa razão, nunca se esgota, nunca se completa porque nunca se fecha. É dessa maneira, como uma identidade aberta, plural, complexa, fragmentária e incompleta que a identidade constitucional possibilita a articulação de povo, democracia e Constituição no transcurso do tempo histórico.

Em termos concretos, porém, o que isso significa? Significa, por exemplo, que as decisões tomadas pelo Poder Judiciário no âmbito do controle de constitucionalidade devem ter por base essa noção de identidade constitucional, e não uma noção qualquer de uma suposta identidade nacional essencializada, de uma suposta essência do povo brasileiro. Isto é, mesmo que determinadas decisões possam contrariar interesses de uma maioria bem assentada, a vontade dessa maioria não pode ser determinante para decidir-se o que é e o que não é direito no Brasil, o que pode e o que não pode ser feito. Se esse é o dever do Poder Judiciário, não é diferente com os dois outros poderes: também eles, na medida em que são poderes constituídos submetidos a uma ordem constitucional moderna, estão inevitavelmente limitados pelo significado dessa ordem constitucional, pelo significado do Constitucionalismo moderno: no caso ora em debate, estão limitados pela noção forte de identidade constitucional.

Por isso, não importa quão grande seja o alegado apoio popular a tais ou quais medidas do Poder Executivo, a tais ou quais propostas do Poder Legislativo: há limites que, independentemente do apoio pontual, sempre marcado pela oscilação e pela transitoriedade, de uma massa ampla da população, não podem ser ultrapassados, sob pena de estar-se ultrapassando o próprio limite estabelecido pelo Estado Democrático de Direito – quer dizer, por aquele mesmo povo, um povo que, na elaboração de sua Constituição, revelou um compromisso claro com o Constitucionalismo moderno como um todo.

É nesse sentido, pois, que se pode falar de limites a um governo conservador. É sem dúvida legítima, em princípio, a eleição de um governo conservador: isso faz parte da democracia. E é, por suposto, legítimo que esse governo, uma vez eleito, procure conduzir sua atuação nos termos das visões de mundo e das concepções de vida de seu eleitorado. Muito disso pode ser feito sem que sejam ameaçados os alicerces fundamentais da democracia. Mas há muita coisa pretendida que simplesmente não pode ser realizada em uma república democrática e constitucional. É impossível estabelecer a priori uma lista com essas impossibilidades, mas um bom critério para avaliar casos concretos que surgem todos os dias é justamente o conceito de identidade constitucional: dentre as muitas coisas que um governo conservador não pode fazer, uma boa parte delas são aquelas que, sob a desculpa da mencionada ideia de uma essência da brasilidade, coloca em risco a pluralidade típica das sociedades modernas: em outras palavras, coloca em risco a integridade de uma identidade constitucional que por nenhum motivo pode ser deteriorada.

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“Fature-se”: Ataque Privatizante à Universidade Pública

3 de agosto de 2019 by Observatório

Renata Carolina Corrêa Vieira e José Geraldo de Sousa Junior,

No dia 15 de março de 1995, em cerimônia emocionante no simbólico Teatro de Arena da UnB, Darcy Ribeiro recebeu o título de Doutor Honoris Causaoutorgado pelo Conselho Universitário da Universidade de Brasília, ao mesmo tempo que ao campus da Asa Norte, no Plano Piloto de Brasília, era conferido o nome do grande antropólogo, escritor, político, criador de universidades, fundador e primeiro Reitor da UnB.

Seu discurso magistral abriu com uma afirmação de lealdade a UnB, “instituição público não governamental livre e autônoma, responsável por sua autoconstrução”. Diante da comunidade universitária, do Reitor (João Cláudio Todorov) e do Ministro Paulo Renato da Educação, representante forte de um governo neoliberal,  mas que aplaudiu contrafeito, Darcy continuou” “Cumpre libertá-la da tutela ministerial. Sim, Senhor Ministro, sei que esse é também o seu propósito, de entregar a universidade a si mesma. Não tem porque continuar recebendo ordens de burocratas do Ministério. Não tem porque aceitar que o orçamento da universidade seja decidido por quem nada sabe dela”.

Com efeito, na linha de reconhecimento da condição sui generisde uma instituição milenar, só no Ocidente, que é anterior ao Estado inscrito num movimento artificial (“as sociedades existem, os estados são feitos”) do processo político racional moderno, em sentido weberiano, de onde procede o seu elemento ontológico de autonomia (governo de si própria), não tem como recusar o fundamento de que as universidades podem se autoconstruir, cuidar de sua própria gestão (administrativa e financeira) e exercitar a sua autonomia, também na criação livre de conhecimentos.

É uma instituição que não precisa de mediação burocrática artificial e alienada de seu ethos político-filosófico e que pode perfeitamente estruturar-se numa modelagem de autogoverno sob a forma de um Conselho Nacional das Universidades Públicas Federais, assim como se estruturam o Conselho Nacional de Educação, o Conselho Nacional de Justiça e outras formas orgânicas de autogestão financeira e administrativa. É muito mais barato e menos tensionada a coexistência institucional, em todo caso, submetida às formas republicanas de controle e fiscalização dos poderes e, inclusive, do controle social.

Longe a abrir-se a esse horizonte de possibilidades, a instalação atualmente no País de um projeto ultraneoliberal, quer antes, funcional e ideologicamente, ferir profundamente, os dois pressupostos que o realizam e que, no tocante às universidades, representam o ponto de clivagem a hostilizar: a mercadorização e privatização de tudo, inclusive no social e na vida e a subordinação de qualquer forma de autonomia que represente, cultural e pedagogicamente, exercitar objeção crítica a tal projeto.

Agora a investida é mais sutil porque disfarçada em ilusão de reforma aperfeiçoadora do sistema.  O Ministro da Educação apresentou nesse dia 17 de julho, o programa ‘Future-se’para, segundo ele, reestruturar o financiamento do ensino superior público. A proposta, amplia a participação de verbas privadas no orçamento universitário. Com o programa, as universidades poderão: celebrar contratos de gestão compartilhada do patrimônio imobiliário da universidade e da União. As reitorias poderão fazer PPPs, comodato ou cessão dos prédios e lotes; criar fundos patrimoniais (endowment), com doações de empresas ou ex-alunos, para financiar pesquisas ou investimentos de longo prazo; ceder os “naming rights” de campi e edifícios, assim como acontece nos estádios de futebol que levam nomes de bancos ou seguradoras;criar ações de cultura que possam se inscrever em editais da Lei Rouanet ou outros de fomento.

Para o MEC, em linguagem de bolsa de investimentos, as formulações se baseiam em uma série de dispositivos do mercado financeiro, formando uma “carteira de ações” que incluem fundos patrimoniais imobiliários, microcrédito para startups e um fundo soberano do conhecimento, tudo isso com abertura para proporcionar oportunidades de negócios com participação da iniciativa privada. Uma situação sem precedentes e sem paralelo com modelagens que valorizem o privado na estruturação de sistemas universitários e que jamais chegam ao despudor de acenar para o ethos acadêmico, como fez o secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação (MEC) ao afirmar na audiência de apresentação da proposta que “o professor universitário poderá ser muito rico. Vai ser a melhor profissão do Brasil”.

Sem ter debatido previamente com os Reitores e Reitoras ou qualquer outra articulação pertinente do social ou das institucionalidades de referência, inclusive sobre impactos impeditivos das propostas no âmbito constitucional, legislativo, e de fiscalização, incluindo o Ministério Publico, o MEC informa que antes da adesão das universidades fará uma consulta pública sobre o Future-senos próximos 30 dias, pela internet, sem espaço entretanto para debate ou diálogo, limitada a consulta à sua leitura “na íntegra na página da consulta pública. Em seguida, é possível acessar, separadamente, os nove trechos do texto e, para cada um deixar, um comentário e dizer se acha que o tópico está totalmente claro, claro com ressalvas ou se não está claro. Ao final, é possível deixar ainda um comentário geral sobre a proposta”.

Na contracorrente de opiniões competentes e experimentadas, o programa expõe suas entranhas nutridas no interesse do mercado, servindo conforme pensa o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, que  vê com “gravidade” a dinâmica de estender a responsabilidade da geração de receitas aos institutos e universidades: “As universidades públicas federais brasileiras precisam cumprir a missão de expansão da educação superior com qualidade. Todas as estratégias de financeirização propostas pelo programa, e que conversam com diversos modelos que ocorreram no mundo, não são capazes de gerar expansão do ensino superior. Elas até podem ser utilizadas em universidades pequenas, como a de Harvard [instituição americana privada], que não tem essa premissa colocada”.

Tudo isso mostra que a proposta mais que representar uma ideia de future-se, apresenta-se mais intencionalmente como um fature-se. O jogo de palavras, ouvido logo que apresentado o programa pelo recém-eleito presidente da UNE tem sido reproduzido pelos primeiros críticos que a examinaram.

Ela retoma no sentido de realizar as teses ultraneoliberais, o objetivo de abocanhar a fatia substanciosa de capitalização até agora protegida contra a ganância do mercado. Em 2002, na cidade de Porto Alegre, ainda sob o impacto da resolução adotada naquele ano pela mesma OMC, de incluir a educação superior como um serviço comercial regulado no marco do Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS, sigla em inglês), Reitores de Universidades Públicas Ibero-Americanas, autoridades governamentais e especialistas se reuniram na III Cumbre de Reitores dessas universidades para discutir os perigos postos pelo modelo neoliberal de mercado. Tratava-se de analisar as ameaças às universidades públicas e a globalização, num encontro radical que teve como eixo a educação superior frente a Davos.

Enquanto nos últimos anos o Brasil, seguindo tendência mundial, conheceu uma grande expansão da educação superior com os efeitos dessa expansão afetando positivamente a qualidade do ensino e da pesquisa nas Universidades públicas e privadas, essaexpansão, compreendida numa ação estratégica de um programa governamental de base democrático-popular, se inscreveu num projeto de sociedade e de Estado (do qual a Constituinte de 1987/1988 representou o seu mais avançado desenho),  e que erigiu a educação e a educação superior, à condição de núcleo estruturante desse projeto.

Esse programa começa  como se define na Constituição que decorreu do processo constituinte, por conceber a educação e a educação superior, como um bem público, voltado para fins sociais, por isso de livre acesso, universal, laico, gratuito e, quando disponível ao mercado, com seu exercício condicionado por esses valores, portanto, preservado em face das injunções do comércio. Antes de tudo, direito e não mercadoria.

Um bem, portanto, estratégico porque necessário ao desenvolvimento econômico, social e político do País, não só para permitir fortalecer a infraestrutura da sociedade, por meio da pesquisa, da ciência e da inovação tecnológica, também para orientar as direções éticas desse desenvolvimento, sobre criar as condições de distribuição justa e solidariamente compartilhada da riqueza socialmente produzida, conforme o horizonte de superação de desigualdades e de participação política definido na Constituição.

Assim é que se compreende a tremenda expansão havida no período, com a criação de universidades e de escolas federais no plano da educação superior, a implantação interiorizada de novos campi, a duplicação do número de vagas principalmente nos turnos vespertino e noturno  das escolas, o apoio às políticas de cotas para ampliar os acessos, nas mais diversas modalidades, sociais, econômicas, étnicas, raciais e uma inversão orçamentária sem precedentes para financiar a expansão, a reestruturação, o acesso, a permanência e as políticas de fomento em todos os níveis, da creche à pós-graduação. Incluindo a contribuição da oferta privada, fiel a esses princípios aferidos em procedimentos de regulação, credenciamento e avaliação do sistema, por sua vez com o apoio de financiamento público para assegurar essa expansão, valendo-se de instrumentos de renúncia fiscal (Reuni, Crédito Educativo, FIES, PROUNI, Ciência sem Fronteiras, todos discutidos minuciosamente pelo Presidente  Lula e pela Presidenta Dilma, com os Reitores e Reitoras, em seguidos encontros com pautas consistentes e com esses conteúdos, até a sedimentação de entendimento comum convertido em políticas públicas).

Não se perca de vista que a retomada política da tensão entre o público e o privado, que agora se assiste quando se examina os fundamentos das reformas em curso, notadamente com a PEC de Teto de Gastos voltada para assegurar financiamento de desempenho econômico-financeiro às custas de investimentos sociais – saúde, educação – recoloca o impasse que em 1988 dividiu os engajamentos sobre seres tais bens, sociais, públicos, responsabilidade do Estado, ou privados, deixados à dinâmica apropriadora, acumuladora,  movida por interesse do Mercado.

Não é coincidência que esse impasse retorne agora quando se busca extrair da “velha” Constituição uma outra Constituição modelada nas reformas em curso no requisito educação. Aqui, a educação e com mais nitidez a educação superior, é tensionada sob esse terrível cabo de guerra.

Portanto, o que ocorre é que num sistema capitalista, de forte desempenho do mercado, conduz a uma disputa sobre o produto social, movendo-se as forças do mercado no sentido de converter o social em mercadoria e a função pública da educação, um negócio.

Não surpreende pois, que ganhem relevo e orientam as políticas do governo ultraneoliberal implantado no País, a partir de 1o. de janeiro deste ano, as investidas prepotentes contra a cultura e a educação. Tal como salientou MANIFESTO DE JURISTAS EM DEFESA DA UNIVERSIDADE PÚBLICA E DA CONSTITUIÇÃO, em toda ação política autoritária logo se instala o horror à crítica e à reflexão, muito fortes, exatamente na afronta ao campo  cultural e à educação, materializando-se em ataques à autonomia do processo de produção de conhecimentos universitário e as medidas de asfixia da sustentação de programas dessas instituições, por meio dos procedimentos de redução do financiamento orçamentário necessário ao seu funcionamento, quando não se chega ao arbítrio com a ativação de formas sutis ou explícitas de intervenção em geral ilegítimas e, especificamente, inconstitucionais e ilegais.

Aqui é a notícia, segundo a qual  o presidente Jair Bolsonaro anuncia através de sua conta no Twitter, que a Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) cancelou o recém-lançado vestibular específico para pessoas LGBTi depois de uma intervenção de seu governo: “A Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Federal) lançou vestibular para candidatos TRANSEXUAL (sic), TRAVESTIS, INTERSEXUAIS e pessoas NÃO BINÁRIOS. Com intervenção do MEC, a reitoria se posicionou pela suspensão imediata do edital e sua anulação a posteriori”, escreveu o presidente que havia ouvido reclamações em reunião realizada na semana passada com integrantes da bancada evangélica no Congresso.

Apenas uma omissão obsequiosa poderia dar curso a essa pretensão, sendo como é dever institucional universitário preservar o bem maior que caracteriza uma universidade, a sua autonomia e da liberdade de ensinar. Tanto quanto busca o governo, violando os mesmos fundamentos, interferir no processo de escolhas de dirigentes das instituições de ensino superior. Mais tímidas nessa conjuntura, as organizações sociais e sindicais do sistema têm se limitado a notas de repúdio ou de protesto. O contrário têm feito parlamentares, juristas e ex-dirigentes, ora por meio de várias representações contra esses atos abusivos de autoridades, em diferentes ocasiões provocando o campo do Ministério Público que se mantêm leal ao mandato constitucional que deu poderes de fiscalização e correcionais ao Órgão. Recomendações, Inquéritos e Ações Civis Públicas têm sido promovidos para conter o excesso gestor dessas autoridades.

O próprio Supremo tribunal Federal chamado a se manifestar nessas circunstâncias tem promovido decisões de caráter pedagógico na salvaguarda da Democracia, indicando queautoritarismo afronta a construção milenar, considerando apenas o Ocidente, de uma institucionalidade que se enraizou na civilização, internalizou-se nas declarações de direitos e tornou-se princípio constitucional.

Em sede de direitos humanos internacionais, basta ver, com base no Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU): “A satisfação da liberdade acadêmica é imprescindível à autonomia das instituições de ensino superior. A autonomia é o grau de auto governo necessário para que sejam eficazes as decisões adotadas pelas instituições de ensino superior no que respeita o seu trabalho acadêmico, normas, gestão e atividades relacionadas”. E, ainda que a autonomia  deva ser consistente com os sistemas de responsabilidade pública, em especial no que respeita ao financiamento estatal, considerando os investimentos públicos substanciais destinados ao ensino superior, o equilíbrio apropriado entre a autonomia institucional e a responsabilidade, é obediente a parâmetros legítimos e equitativos, transparentes e participativos, que não toleram o voluntarismo autoritário e a quebra dos pressupostos administrativos, legais e constitucionais.

Assim é que no ano passado (2018), na ADPF 548, a partir do voto condutor da Ministra Carmen Lúcia, ratificou esse princípio, sinalizando, que a “Liberdade de pensamento não é concessão do Estado. É direito fundamental do indivíduo que a pode até mesmo contrapor ao Estado”, e que ela ainda acentuou, que o  “exercício de autoridade não pode se converter em ato de autoritarismo”.

A Cúpula e a obra vêm a registro para, entre as muitas e agudas reflexões, chamar a atenção para o texto de Marco Antônio Rodrigo Dias, ex-professor da UnB e quadro da UNESCO, e seu ensaio A OMC e a educação superior para o mercado.

Em seu estudo, para o qual carreou cifras inimagináveis levantadas entre outras agencias pelo banco de negócios norte-americano Merril Lynch, o professor Marco Antonio Dias afirma que o mercado mundial de conhecimento, somente através da Internet foi calculado para o ano de 2000, em 9,4 bilhões de dólares, tendente a alcançar 53 bilhões no ano de 2003. E, de acordo com as mesmas fontes, o valor da comercialização de produtos vinculados ao ensino superior nos países da OCDE foi da ordem de 30 bilhões de dólares em 1999. Para o professor, com base nessas informações pode-se dizer que a importância dos serviços, o que vai muito além da educação, representa, na economia norte-americana, dois terços de seus resultados e 80% de seu mercado de emprego.

Esses dados, diz o professor representam números inacreditáveis e, à medida que novos dados são analisados, se constata que todos são extraordinários. E, para os que relutam em aceitar a prioridade ao comércio sobre os direitos humanos, a capacidade dos países de formar seus cidadãos conscientes e com capacidade critica estará efetivamente condenada, se o que rege as ações é uma concepção que dá prioridade aos aspectos comerciais (DIAS, Marco Antônio Rodrigues. A OMC e a educação superior para o mercado. In BROVETTO, Jorge; ROJAS MIX, Miguel; PANIZZI, Wrana Maria (orgs). A Educação Superior Frente a Davos; La Educación Superior Frente a Davos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003).

A questão que se coloca é: há alternativas que possam compor uma agenda e saídas para reverter, na atualidade brasileira, a transformação da educação em fonte de lucro direto para o capital?

Ao final do ano passado (2018), a ANDIFES – Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições de Ensino Superir organizou um importante seminário para marcar 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 30 Anos da Constituição de 1988. Um dos temas em exposição foi “A Universidade Pública, Autonomia e Liberdade de Ensinar:  Valores que a Constituição de 1988 Consagrou (José Geraldo de Sousa Junior, ex-Reitor da UnB, expositor)”.

Partindo do tema, forte na ideia de que a responsabilidade da exigência de defesa da autonomia e da liberdade de ensinar, se imbrica na responsabilidade de defender a Constituição e a estimá-la, defendeu-se a necessidade de resistir aos movimentos desconstituintes e com eles, a redução dos espaços autônomos das universidades, uns e outros, seguidamente afetados, interrompidos.

Em boa medida estão aí os desafios e as tarefas (agenda) que se colocam na conjuntura, em face dos impasses que põem a Constituição numa encruzilhada de apelos privatizantes, assim como os seus principais institutos, a universidade pública entre eles, por isso que esses desafios e tarefas implicam em tomar consciência e posição, ao que Boaventura de Sousa Santos, desde escritos anteriores e mais recentemente (Exposição na Conferencia Regional de Educação Superior da América Latina e o Caribe. Córdoba: CRES, 2018) caracterizou como assedio neoliberal às universidades, para fazer uma séria advertência: “A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor de mercado é o que irá matara universidade. Uma universidade que é ‘sustentável’ porque financia a si mesma é uma universidade insustentável como bem comum, porque se transformou em uma empresa”.  Contra isso opõe-se a história milenar da universidade ocidental que soube manter-se leal aos seus fundamentos civilizatórios e sempre soergueu-se aos assaltos da barbárie, de inquisidores, dos múltiplos fascismos, de todas as formas de autoritarismo e contra a ganância do mercado.

A educação ainda é valor social, bem público, não é negócio. O que se espera é que os movimentos sociais e a institucionalidade estruturada no sistema legislativo e judicial compreenda o alcance e toda a dimensão e significado desses valores inscritos no princípios constitucionais, para protegê-los e para defender a própria Constituição.

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Um governo efetivamente autoritário e anti-democrático

3 de agosto de 2019 by Observatório

Wilson Franco

Em janeiro deste ano, ainda nos primeiros dias após a eleição de Bolsonaro, escrevi alguns textos fazendo ressalvas às tantas declarações que afirmavam que a eleição representava o fim da democracia, a volta da ditadura e por aí vai. Meu ponto à época era que simplesmente não sabíamos como as coisas ocorreriam, e que a eleição, em si mesma, não apresentava evidência significativa de fraude ao processo eleitoral ou ruptura com seu rito. Assim teríamos, até prova em contrário, uma eleição democrática e um governo democraticamente eleito (o candidato eleito tinha, sim, um discurso autoritário, mas isso não significa imediatamente que o governo seria autoritário, essa era a ponderação).

Passados seis meses de governo sinto que há suficiente informação para dizer que há, sim, uma ameaça à democracia no governo Bolsonaro. Veja essa ameaça manifesta em uma série de fatores: recurso sistemático a campanhas de desinformação; desmonte de aparelhos, instituições e sistemas de governança e controle social; apoio retórico (hipócrita, mas eficiente e consistente) à violência policial e à opressão; “normalização” dos mesmos velhos sistemas de corrupção, gangrenando mecanismos de fiscalização, apuração e julgamento e restabelecendo redes de benefício e privilégio; manipulação cínica do aparato de Estado em benefício de interesses defendidos pelo governo; promoção de um discurso opaco e recusa do direito à opinião e à crítica.

É importante notar que a maior parte desses elementos não é novidade no Brasil, mas a forma como vêm sendo dispostos é particularmente agressiva e disruptiva, e o desrespeito ao Estado por parte do governo em exercício que eles representam é inaceitável. Explico: é evidente que todo governante tenta implantar a plataforma que ele representa (plataforma que ele manifesta em sua campanha, mas também que ele representa através da rede de alianças que o sustenta e do enraizamento ideológico, corporativo e partidário que o situa na trama política), isso é próprio do regime representativo. Mas é parte crucial do Estado democrático que essas iniciativas tenham de se compor com o lastro legislativo e com a vontade dos atores político-sociais decisivos – isso é o que faz com que o Estado seja maior que o governo. No caso do governo Bolsonaro, no entanto, toda forma de composição tem sido recusada sob a pecha de “velha política”, e esse tipo de posicionamento compõe com o pendor autoritário que o governo vem crescentemente assumindo. Que a bravata da “nova política” seja absolutamente vazia, que a “velha política” siga sendo acionada pelo governo regularmente, nada disso importa: o fato é que o governo assume uma posição deliberadamente contrária à composição de forças que é, no fim das contas, o lastro da democracia no Brasil. Assim, conforme se opõe ao lastro institucional, legislativo, político e social estabelecido, Bolsonaro deixa claro que governa de forma autoritária.

O posicionamento autoritário do governo, por sua vez, reposiciona o estatuto do governo no contexto da experiência democrática brasileira. Isso porque, a princípio, Bolsonaro era eleito como governante de todos, evidentemente, mas como representante eleito de interesses “conservadores nos costumes e liberais na economia”, lavajatistas, bolsonaristas e antipetistas. Havia um clamor autoritarista entre os eleitores, mas não se poderia pressupor que ele seria decisivo ou que ele viria a ser encarnado pelo governo.

Isso tudo quer dizer que, num primeiro momento, a eleição de Bolsonaro representava acima de tudo uma mudança brusca em termos de “voz das urnas”, e consolidava o movimento da política brasileira em direção a uma hegemonia da direita que já se anunciava desde as eleições legislativas de 2012. O próprio Bolsonaro encampava um discurso autoritarista, evidentemente, mas isso não significava a priorique seu governo era autoritário – nesse sentido sigo com a mesma convicção que tinha em janeiro: dizer em janeiro que a eleição de Bolsonaro representava o fim da democracia e a ascensão do autoritarismo ao poder era afobado e equivocado.

Hoje, em vista de como o governo se compôs e de como ele vem efetivamente agindo, esse juízo me parece justo e preciso: o governo Bolsonaro é, sim, autoritário, promove, sim, violências, injustiças e desigualdades e representa, sim, uma ruptura com a experiência democrática da breve Terceira República brasileira.

Parece-me improvável, hoje, que esse autoritarismo escale a ponto da declaração de estado de emergência ou na suspensão de elementos estruturantes do aparato político brasileiro; o mais provável parece ser a manutenção de um governo que opera na lógica do sequestro de poder, manipulando a lógica da crise permanente e da auto-crise, lançando mão de sabotagens, desmontagens e sucateamentos, destruindo o aparelho de Estado para “livrar-se da máquina”. Ou seja: o governo Bolsonaro age, enquanto governo, destruindo o Estado, com o intuito de “melhor” governar (o que significa, evidentemente, governar como quiser, sem composição, negociação ou oposição).

Isso, então, parece claro: o governo Bolsonaro está se organizando como um governo autoritário. Isso, e as tantas pessoas retornando à pobreza e à miséria, voltando a passar fome, as tantas pessoas sendo mortas e submetidas a opressão e humilhação, os milhões de sonhos e projetos de cidadania e dignidade destruídos, o meio ambiente sendo destruído em escala recorde, todas essas faces da catástrofe também se desenham claramente.

***

Considero, pessoalmente, que textos são gestos, e por isso tenho por compromisso propor textos que incitem afetos ativos e transformadores, suscitem reflexão crítica e engajamento. Em vista disso fico profundamente insatisfeito com este, que aponta para uma situação crítica sem apontar para formas de se engajar criticamente contra essa crise – torna-la nossa, transformá-la. Apesar de meu descontentamento, no entanto, esse é o estado de coisa que enxergo: nenhuma das “crises” atuais do governo parece, efetivamente, crítica, e nenhuma das “alternativas” parece, efetivamente, alternativa viável. Estendo meus parabéns a Glenn Greenwald e ao Intercept-BR pela coragem e dedicação, desejo sorte a Haddad e Ciro em seus movimentos para galvanizar uma oposição contundente, espero que algo improvável aconteça para que Lula seja contemplado com o insólito direito a um julgamento justo – nenhuma dessas frentes, no entanto, parece capaz de fazer alguma diferença efetiva (e é ridículo ter que lembrar que centro não faz oposição, tampouco a mídia tradicional). Isso significa que nós, até onde posso ver, ainda não estamos à altura da tarefa de fazer oposição efetiva ao governo Bolsonaro e a tudo que ele representa.

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Destruição do pacto constituinte por via infraconstitucional

22 de junho de 2019 by Observatório

Heloisa Fernandes Câmara

No ano em que a constituição de Weimar completa cem anos, os direitos humanos, especialmente os sociais, sofrem expressivo retrocesso no Brasil. Desde contingenciamento de recursos, passando pela alteração legislativa, até extinção de conselhos, a rota tem sido no sentido de fragiliza-los.

É razoável que em momentos de mudanças e instabilidades políticas os direitos fundamentais sejam atingidos, especialmente os direitos sociais e econômicos que são os mais custosos e, por isso, mais vulneráveis aos discursos pautados na redução de custos e tamanho do Estado. Mas é fundamental termos no horizonte da análise a forma como esse processo tem se desenrolado. Além de propostas de alteração da constituição e desconstitucionalização em temas como previdência, desvinculação dos gastos com saúde e educação, e a proposta de descaracterizar o princípio da função social da propriedade,  a estratégia principal tem sido de natureza infraconstitucional.

A Medida Provisória 870, convertida em lei, em seu texto original extinguia o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Este órgão é considerado central para que se possa efetivar o direito à alimentação adequada, política de Estado há décadas e prevista na lei 11.346/2006. Diante da inviabilidade de manutenção do sistema, o Ministério Público Federal através da Nota Técnica 04/2019estabeleceu a inconstitucionalidade de tal extinção por violar o princípio de vedação do retrocesso e os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição. A citada extinção foi objeto de emendas parlamentares, e não consta no texto final do projeto de conversão em lei. A mesma medida provisória também estabelecia que a Funai (Fundação Nacional do Índio) sairia da estrutura do Ministério da Justiça e faria parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Já a demarcação das terras indígenas, direito constantemente ignorado, tinha sido estabelecida como competência do Ministério da Agricultura, praticamente inviabilizando novas demarcações. Ambas as mudanças também foram desfeitas por via de emendas parlamentares. Entretanto, o modo de operar através da alteração da estrutura de monitoramento e definição de políticas públicas estava lançada.

O decreto 9.759 de 11 de abril de 2019, a pretexto de desburocratização, extinguiu colegiados na administração federal, o que afetou áreas centrais como o combate ao trabalho escravo. Nessa área foi extinta a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), criada com a função de, entre outras, acompanhar o cumprimento de ações do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, comprometendo a continuidade do atividade, vide nota do MPF. Lembrando que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fazenda Brasil Verde justamente pela falha sistemática no combate ao trabalho escravo.

Também nesta toada, merece destaque negativo o decreto 9.831de 10 de junho deste ano que exonerou os especialistas integrantes do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, órgão composto por  onze peritos com a missão de investigar locais em que há privação de liberdade como cadeiras, presídios, hospitais psiquiátricos, dentre outros. Além da exoneração o decreto estabelece que para os novos integrantes a função não será remunerada e não poderão ser “vinculados a redes e a entidades da sociedade civil e a instituições de ensino e pesquisa, a entidades representativas de trabalhadores”, ou seja, não poderão ser especialistas na área. Portanto, a pretexto de modificação administrativa o órgão foi completamente descaracterizado e impedido de funcionar de maneira adequada. Evidentemente esse movimento é um enorme retrocesso no combate à tortura, obrigação que o país se comprometeu a cumprir tanto internamente através da proibição constitucional à tortura, quanto em âmbito interamericano e global.

Os exemplos trazidos neste texto demonstram que não é necessário desconstitucionalizar direitos para que eles sejam destruídos. O desmantelamento da estrutura administrativa necessária ao desenvolvimento e concretização da política pública tem o mesmo efeito, mas com a facilidade em termos de aprovação pois pode ser feita por via de lei e mesmo decreto executivo, e costuma ser menos controlada publicamente do que mudanças constitucionais. Isso implica a necessidade de desenvolver estratégias jurídicas que atrelem ao direito as condições concretas de seu exercício. Por mais que a definição da estrutura administrativa e orçamentária seja atribuição da esfera política, quando as modificações inviabilizam a continuidade de prestação de direitos fundamentais, deve-se ter controle jurídico sob pena de implosão da constituição. A luta agora é para garantir ao menos a continuidade de direitos como alimentação, combate ao trabalho escravo e à tortura. Como se vê, o retrocesso está sendo veloz, e se não for barrado teremos voltando cerca de meio século em termos de parâmetros de proteção.

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Venha a nós, o nosso reino

24 de maio de 2019 by Observatório

Rafa Carvalho

Eu já fui missionário evangélico.

Me julguem.

Também já fui monge tântrico. Xamã honorário shipibo. Sou ogan. E médium. Fui profeta em Angola, de Luanda à Benguela. Um fantasma nas montanhas geladas da Eslováquia. Colega, de alguns mestres zen na ilha de Kyushu.

Ao contrário do que possa parecer, não abandonei nenhuma dessas essências, pra seguir o meu caminho. Tento só deixar que passem, as nuances da maré. A variação de superfície. As paisagens na aventura. Mais ao fundo, minhas raízes se confirmam pelo misto dessas todas chãs. Um jeito de ter o céu mais perto. O universo mais longo. E infinito.

Dizem de mim, o que já disseram de Tolstói. Barbudo, anarquista, espiritual. Político sempre. Pois, por mais que a prática contradiga ironiquíssima as semânticas e etimológicas questões, “político” é o contrário de “idiota”. Bom, e o resumo cansado disso é: assim como a maioria esmagadora dos representantes políticos do povo não são políticos – nem mesmo representantes; eu não dou a mínima pros rótulos. Não sei o que Tolstói pensava disto. Mas eu tenho a barba bem mais curta e menos branca do que a dele. Escrevo ainda muito pior, que o mestre. E no que diz respeito a este parágrafo – e a todo o resto: só quero viver, contar e ouvir histórias. Ser feliz. Num mundo onde a felicidade seja possível, mundialmente.

O ensaio aumenta muito, em seu tamanho, se começo a desdobrar o que, aqui, significam coisas como: “médium” e “ser feliz”. Portanto, é preciso dizer que fazemos um pacto no encontro que nos proporciona este texto. De elegância, como proponho em silêncio em toda minha escrita. Nossa miudeza, pequenez e insignificância exigem que sejamos um pouco elegantes, no mínimo, diante dos mistérios do planeta.

Não há nada de estranho em se buscar sentido, pra existir. Nem houve nada anormal, ao começar, no meu caso, pela igreja evangélica. Eu nasci numa periferia. Morei e cresci em outras. Sempre a leste. Não posso me cansar de dizer, que vi cabeça pendurada em ponto de ônibus. Que estudei em escola sem livro na biblioteca, mas com homicídio dentro do banheiro. Que no meu bairro criança brincando de correr, como eu já brinquei tanto, levou tiro de polícia pelas costas. Sem brincadeira. 

E a igreja evangélica, protestante, pentecostal, nasceu das periferias. Aqui, como em outros países. Ela foi, no Brasil e a princípio, um contexto de asilo e acolhimento mútuo, a muitas pessoas. Abrigo, consolo. Tanto que meu bisavô, negro, baiano filho de angolanos alforriados, com herança no reino do Congo; e minha bisa, cigana andaluza parida no Atlântico, toda versátil; ambos casados, com legados imensos, renunciaram de alguma forma a essa história toda, pra se converterem. E virarem, posteriormente, pastora e pastor. 

Talvez seja imprudente esquecermos, ou não repararmos, que até não muitos anos atrás, a igreja evangélica era açoitada demais, num Brasil que – agora parece reconhecermos – sempre foi preconceituoso. Desde 1500. Pessoas evangélicas, em sua maioria pobres à época, periféricas, com históricos migratórios, de refúgio e sobrevivência, eram ridicularizadas, pela sociedade normativa, católica apostólica não sei que lá não praticante.

“Não praticante” é o termo que sempre me interessou, nisso tudo.

Somos não praticantes em muitos aspectos, como humanidade. Essa é uma das coisas poucas que nos unem. As outras são: incoerência, um estado subconsciente da vida; e hipocrisia.

Hoje testemunhamos tal reviravolta. Os evangélicos estão por todos os lados. Uma das bancadas mais fortes na política brasileira. Nicho dos mais promissores no empreendedorismo multinacional, líder de franquias pelo mundo. Marketing espiritual. Business abençoado. Gestão de fiéis e indústria da fé. Prosperidade inflacionando às pregações. Amor em plena baixa e recessão. E eu que cresci ouvindo que o Cristo ofereceu a outra face, na igreja da rua Berlim, pertinho da favela da Moscou aonde moleque levava tapa na cara de PM direto sem motivo, vivi pra ouvir igreja aplaudindo liberação do porte de fuzil.

Pior é que nada disso é estranho. Historicamente, quem é oprimido enfrenta, um dia, nos giros do mundo, o desafio tremendo de: não se vingar. E também historicamente, a vingança é o que acaba mais acontecendo. Logo na primeira oportunidade. Assim vivemos nesses ciclos seculares, circulares viciosos, alternando papéis, acumulando pilhas e pilhas, de carma, pra quem acredita. E pra quem não acredita: bastará pensar em raiva, ódio, rancor. Tudo que sangra nos olhos e escorre na baba da gente. Nós somos carentes de transcendência. Mas sim, tudo isso é justificável. E legítimo. Olho por olho, dente por dente. Aquela coisa toda. Todos têm sua razão. Quem tá por cima fazendo de tudo pra não largar o osso. Conservadorismo voando, junto com os lucros dos políticos, igrejas e empresas criminosas. A ordem e o progresso que interessam.

Estranho é não reconhecermos que sempre foi assim. Católicos apostólicos não sei o quê: quem matou Cristo? Um romano? Ouvindo o grito catártico subconsciente do povo? Quem matou a Santa Joana D’Arc, por exemplo? Quem mandou matar? E por que não estender essa lista no tempo? Até os dias de hoje. Até Marielle. Até quando?

Não importa se igreja, governo, empresa, grupo de investimentos: há sempre o dilema entre a ilusão do poder; e a simplicidade absurda do amor, como objetivo único.

Na igreja cristã, os modos farisaicos sempre superaram, em contingente, aos modos genuinamente crísticos. E assim é, ainda hoje. Nesse mundo se mata. Depois se solta uma nota, de imprensa. Se presta um minuto em silêncio, sessão solene. Se ergue uma estátua, um nome, de praça. E tá tudo certo. Todo mundo sabe de onde veio o lastro de ouro das grandes potências econômicas. E quem é que o devolve? Todo mundo sabe como o dólar virou o regulador que é, no mercado pós-moderno mundial. Mas quem é que vem cá e retrata? Hiroshima, Nagasaki, Vietnã, Afeganistão, Kosovo, Síria, Iraque, Somália. Tá tudo aí, pra gente ver. E prever: Venezuela, América Latina, povos nativos. Brasil. Quem tá fazendo algo a respeito?

Somos um bando de não praticantes. E agora vem a novidade. Os púlpitos, altares, palanques e bancadas vivem cheios de mentira, demagogos. Nossos facebook’s e instagram’s: também. Talvez não haja nenhuma diferença entre a pregação ilusionista e arrecadatória de um pastor-lobão, salafrário; a propaganda imunda e o comício criminoso do político representante popular em seu governo; e seus posts. Sim, os seus mesmo. Ou os meus. Os posts de qualquer pessoa que se sinta além do engano deste mundo. Vivemos um super momento de egos. A conectividade nos revela que, provavelmente, nunca houve tanta gente bacana em Terra, ao mesmo tempo. Coisa incrível. Mas, ironicamente: desconexão é o que mais se sente. E: como é estranho um planeta lotado de super-humanos, andar tão distante, mesmo do humano mais básico e simples.

O que praticamos? As manifestações pela democracia em 2016 encheram a Paulista. Mas nas periferias, os trens estavam lotados de gente, seguindo sua resistência diária, indo e vindo do trabalho. Alheias? Ou só desintegradas? Impedidas, quem sabe, por nossos preconceito e condição de incríveis: não praticantes? Nas margens desse país, urbanas, rurais, litorâneas, interiores, em cada rincão, há uma infinidade de igrejinhas. E, cada vez mais, igrejonas. Um contingente incalculável de pessoas identificadas com a igreja evangélica, hoje. Quantidade muito considerável de gente brasileira, que ali se sente quista, importante, contemplada. E aqui, do lado de cá da tela, um tantinho de povo intelectual, crítico, “elucidado”, batendo palma pra idiota dançar. E não feliz: dançando junto. Gente armada com discurso anti-armas, mas que, de repente, com um revólver na mão, pode acabar matando alguém. Por puro preconceito.

Seria bom termos cuidado ao hostilizar a maioria de um povo. E assim também à minoria. Cada pequena parte, de um povo. Sabermos que fazemos isso muitas vezes, quando julgamos, subconscientemente, estarmos criticando só a um governo. As estratégias nunca precisaram ser tão certeiras. Pontes precisam ser construídas entre a gente. Não muros. Não podermos mais ser preconceituosos, pretensiosamente. A humanidade é feita de pessoas, não de partidos, religiões, diretrizes institucionais. As pessoas são complexas, a sociedade é complexa.

E o povo é importante.

Saber conversar é imprescindível. Não preconceituar seria óbvio, além de sábio. A luta sempre foi urgente. Mas carece de ser bem colocada. Aplicada, justamente. Não praticantes não servem. Representam nada além de procrastinação. O mundo gira e: o oprimido que não teve, acreditem, ainda vai ter a sua chance de oprimir em troco.

Pois, fiquemos atentos. Pra nos mantermos vivos. Contarmos e ouvirmos histórias mais felizes, um dia. Sermos, histórias mais felizes um dia. De quem conseguiu usar a inteligência de que nos gabamos tanto, por ter, pra fazer algo além de rodar a mesma rodinha de sempre, como qualquer hamster faria. Superando a estupidez, e a ganância, de quem quer achar um micróbio em Marte, com um discurso em prol da vida, causando deliberadamente a morte de biomas e multidões inteiras na Terra, sem ressentimento.

É hora de aproximar. De aprender a resolver certas questões sem repressão ou violência. Prevenir as repressões e violências às nossas sutilezas, corriqueiras, cada santo dia. Pois sim, elas também estão em nós. De sacar que tudo tem o seu devido lugar: todo ego, inclusive. E perceber, os casos específicos em que o ímpeto seja mesmo necessário. Estudar linguagem. Discernir que coragem: é a capacidade de agir com o coração; nada mais bárbaro ou insano do que isto. Não é hora de meter o pé “no povo”. Nem de usar frases assim, que lhes separem dele. De nós. O único povo.

Na humanidade, somos todas pessoas irmãs. E muitas de nós, estamos doentes. Não é às pessoas que temos que combater. O inimigo é o desamor. Promover a saúde, é o que poderíamos. Conquistar a utopia sem fincar bandeira alguma. Terra livre. Mátria amada. O povo é um.

E é preciso começar na cidade, com o bairro, a vizinha, a família, a mãe e o filho. É preciso começar em si. Praticando. Não foi estranho matarem Cristo. Como não é estranho atualmente, quererem matar Paulo Freire. Nem são estranhas, todas as apropriações que se fazem. Como as que faz o desgoverno de hoje, no Brasil. Como aconteceu com a igreja evangélica, como pode acontecer com a umbanda e o candomblé, muito loguinho.

Por fim: não é estranho ver um idiota tacando pedras em alguém.

Nunca escondi que gosto muito do Cristo. Só que não reivindico ser cristão por isso. Como não preciso ser marxista, por gostar e concordar com Marx. Nem tolstoísta, por ler e preferir Tolstói. Violonista, pra poder tocar meu violão. Ou humorista, pra gozar feliz do humor.

Não deixo de compreender quando vejo essa tacação de pedras entre o planalto, pelo planalto, ou sendo estimulada nas igrejas e botecos das quebradas. Acontecendo em grupos whatsapp de famílias periféricas, como a minha. Não deixo de compreender. Só lamento e perco um pouco de esperança, quando vejo gente que se julga preparada, acima, cá não praticando nada, deixando a política no extremo oposto de suas vidas. E ainda pedindo palma pras idiotices.Pra mudarmos o mundo, pauta mais recorrente em nossos perfis sociais, que nos concursos de miss, talvez devamos ir mais às igrejas. E eu conto com a elegância de vocês, em nosso pacto de texto, pra intuírem, sem mais explicações, o que isso quer dizer.

Eu já fui missionário evangélico.

Me julguem.

Também já fui monge tântrico. Xamã honorário shipibo. Sou ogan. E médium. Fui profeta em Angola, de Luanda a Benguela. Um fantasma nas montanhas geladas da Eslováquia. Colega, de alguns mestres zen na ilha de Kyushu.

Ao contrário do que possa parecer, não abandonei nenhuma dessas essências, pra seguir o meu caminho. Tento só deixar que passem, as nuances da maré. A variação de superfície. As paisagens na aventura. Mais ao fundo, minhas raízes se confirmam pelo misto dessas todas chãs. Um jeito de ter o céu mais perto. O universo mais longo. E infinito.

Dizem de mim, o que já disseram de Tolstói. Barbudo, anarquista, espiritual. Político sempre. Pois, por mais que a prática contradiga ironiquíssima as semânticas e etimológicas questões, “político” é o contrário de “idiota”. Bom, e o resumo cansado disso é: assim como a maioria esmagadora dos representantes políticos do povo não são políticos – nem mesmo representantes; eu não dou a mínima pros rótulos. Não sei o que Tolstói pensava disto. Mas eu tenho a barba bem mais curta e menos branca de que a dele. Escrevo ainda muito pior, em comparação ao mestre. E no que diz respeito a este parágrafo – e todo o resto: só quero viver, contar e ouvir histórias. Ser feliz. Num mundo onde a felicidade seja possível, mundialmente.

O ensaio aumenta muito, em seu tamanho, se começo a desdobrar o que, aqui, significam coisas como: “médium” e “ser feliz”. Portanto, é preciso dizer que fazemos um pacto no encontro que nos proporciona este texto. De elegância, como proponho em silêncio em toda minha escrita. Nossa miudeza, pequenez e insignificância exigem que sejamos um pouco elegantes, no mínimo, diante dos mistérios do planeta.

Não há nada de estranho em se buscar sentido, pra existir. Nem houve nada anormal, ao começar, no meu caso, pela igreja evangélica. Eu nasci numa periferia. Morei e cresci em outras. Sempre a leste. Não posso cansar de me dizer, que vi cabeça pendurada em ponto de ônibus. Que estudei em escola sem livro na biblioteca, mas com homicídio dentro do banheiro. Que no meu bairro criança brincando de correr, como eu brinquei tanto, já levou tiro de polícia pelas costas. Sem brincadeira. E a igreja evangélica, protestante, pentecostal, nasceu das periferias. Aqui, como em outros países.

A igreja evangélica foi, no Brasil, um contexto de asilo e acolhimento mútuo. Abrigo, consolo. Tanto que meu bisavô, negro, baiano filho de angolanos alforriados, com herança no reino do Congo; e minha bisa, cigana andaluza parida no Atlântico, toda versátil; ambos casados, com legados imensos, renunciaram de alguma forma a essa história toda, pra se converterem. E virarem, posteriormente, pastora e pastor.

Talvez seja imprudente esquecermos, ou não repararmos, que até não muitos anos atrás, a igreja evangélica era açoitada demais, num Brasil que – agora parece reconhecermos – sempre foi preconceituoso. Desde 1500. Pessoas evangélicas, em sua maioria pobres à época, periféricas, com históricos migratórios, de refúgio e sobrevivência, eram ridicularizadas, pela sociedade normativa, católica apostólica não sei que lá não praticante.

“Não praticante” é o termo que sempre me interessou, nisso tudo.

Somos não praticantes em muitos aspectos, como humanidade. Essa é uma das coisas poucas que nos unem. As outras são: incoerência, um estado subconsciente da vida; e hipocrisia.

Hoje testemunhamos tal reviravolta. Os evangélicos estão por todos os lados. Uma das bancadas mais fortes na política brasileira. Nicho dos mais promissores no empreendedorismo multinacional, líder de franquias no mundo. Marketing espiritual. Business abençoado. Gestão de fiéis e indústria da fé. Prosperidade inflacionando às pregações. Amor em plena recessão. E eu que cresci ouvindo que o Cristo ofereceu a outra face, na igreja da rua Berlim, pertinho da favela da Moscou aonde moleque levava tapa na cara de PM direto, vivi pra ouvir igreja aplaudindo liberação de porte de fuzil.

Pior é que nada disso é estranho. Historicamente, quem é oprimido enfrenta, um dia, nos giros do mundo, o desafio tremendo de: não se vingar. E também historicamente, a vingança é o que acaba mais acontecendo. Logo na primeira oportunidade. Assim vivemos nesses ciclos seculares, circulares viciosos, alternando papéis, acumulando pilhas e pilhas, de carma, pra quem acredita. E pra quem não acredita: bastará pensar em  raiva, ódio, rancor. Tudo que sangra nos olhos e escorre na baba da gente. Nós somos carentes de transcendência. Mas sim, tudo isso é justificável. E legítimo. Olho por olho, dente por dente. Aquela coisa toda. Todos têm sua razão. Quem tá por cima fazendo de tudo pra não largar o osso. Conservadorismo voando, junto com os lucros dos políticos, igrejas e das empresas criminosas. A ordem e o progresso que interessam.

Estranho é não reconhecermos que sempre foi assim. Católicos apostólicos não sei o quê: quem matou Cristo? Um romano? Ouvindo o grito catártico subconsciente do povo? Quem matou a Santa Joana D’Arc, por exemplo? Quem mandou matar? E por que não estender essa lista no tempo? Até os dias de hoje. Até Marielle. Até quando?

Não importa se igreja, governo, empresa, grupo de investimentos: há sempre o dilema entre a ilusão do poder; e a simplicidade absurda do amor, como objetivo único.

Na igreja cristã, os modos farisaicos sempre superaram, em contingente, aos modos genuinamente crísticos. E assim é, ainda hoje. Nesse mundo se mata. Depois se solta uma nota, de imprensa. Se presta um minuto em silêncio, sessão solene. Se ergue uma estátua, um nome, de praça. E tá tudo certo. Todo mundo sabe de onde veio o lastro de ouro das grandes potências econômicas. E quem é que o devolve? Todo mundo sabe como o dólar virou o regulador que é, no mercado pós-moderno mundial. Mas quem é que vem cá e retrata? Hiroshima, Nagasaki, Vietnã, Afeganistão, Kosovo, Síria, Iraque, Somália. Tá tudo aí, pra gente ver. E prever: Venezuela, América Latina, povos nativos. Quem tá fazendo algo a respeito?

Somos um bando de não praticantes. E agora vem a novidade. Os púlpitos, altares, palanques e bancadas vivem cheios de mentira, demagogos. Nossos facebook’s e instagram’s: também. Talvez não haja nenhuma diferença entre a pregação ilusionista e arrecadatória de um pastor-lobão, salafrário; a propaganda imunda e o comício criminoso do político representante popular em seu governo; e seus posts. Sim, os seus mesmo. Ou os meus. Os posts de qualquer pessoa que se sinta além do engano desse mundo. Vivemos um super momento de egos. A conectividade nos revela que, provavelmente, nunca houve tanta gente bacana em Terra, ao mesmo tempo. Coisa incrível. Mas, ironicamente: desconexão é o que mais se sente. E: como é estranho um planeta lotado de super-humanos, andar tão distante, mesmo do humano mais básico e simples.

O que praticamos? As manifestações pela democracia em 2016 encheram a Paulista. Mas nas periferias, os trens estavam lotados de gente, seguindo sua resistência diária, indo e vindo do trabalho. Alheias? Nas margens desse país, urbanas, rurais, litorâneas, interiores, em cada rincão, há uma infinidade de igrejinhas. Igrejonas. Um contingente incalculável de pessoas identificadas com a igreja evangélica, hoje. Quantidade muito considerável de gente brasileira. E aqui, do lado de cá da tela, um tantinho de povo intelectual, crítico, “elucidado”, batendo palma pra idiota dançar. E não feliz: dançando junto. Gente armada com discurso anti-armas, mas que, de repente, com um revólver na mão, pode acabar matando alguém. Por puro preconceito.

Seria bom termos cuidado ao hostilizar a maioria de um povo. E assim também à minoria. Cada pequena parte, de um povo. Sabermos que fazemos isso muitas vezes, quando julgamos, subconscientemente, estarmos criticando só a um governo. As estratégias nunca precisaram ser tão certeiras. Pontes precisam ser construídas entre a gente. Não muros. Não podermos mais ser preconceituosos, pretensiosamente. A humanidade é feita de pessoas, não de partidos, religiões, diretrizes institucionais. As pessoas são complexas, a sociedade é complexa.

E o povo é importante.

Saber conversar é imprescindível. Não preconceituar seria óbvio, além de sábio. A luta sempre foi urgente. Mas carece de ser bem colocada. Aplicada, justamente. Não praticantes não servem. Representam nada além de procrastinação. O mundo gira e: o oprimido que não teve, acredite, ainda vai ter a sua chance de oprimir em troco.

Pois, fiquemos atentos. Pra ficarmos vivos. Contarmos e ouvirmos histórias mais felizes, um dia. Sermos, histórias mais felizes um dia. De quem conseguiu usar a inteligência de que nos gabamos tanto, por ter, pra fazer algo além de rodar a mesma rodinha de sempre, como qualquer hamster faria. Superando a estupidez, e a ganância, de quem quer achar um micróbio em Marte, com um discurso em prol da vida, causando deliberadamente a morte de biomas e multidões inteiras na Terra, sem ressentimento.

É hora de aproximar. De aprender a resolver certas questões sem repressão ou violências. Prevenir as repressões e violência em nossas sutilezas, corriqueiras, cada santo dia. De sacar que tudo tem o seu devido lugar: todo ego, inclusive. E perceber, os casos específicos em que o ímpeto seja mesmo necessário. Estudar linguagem. Discernir que coragem: é a capacidade de agir com o coração; nada mais bárbaro ou insano do que isto. Não é hora de meter o pé “no povo”. Nem de usar frases assim, que lhes separem dele. De nós. O povo.

Na humanidade, somos todas pessoas irmãs. E muitas de nós, estamos doentes. Não é às pessoas que temos que combater. O inimigo é o desamor. Promover a saúde, é o que poderíamos. Conquistar  a utopia sem fincar bandeira alguma. Terra livre. Mátria amada. O povo é um.

E é preciso começar na cidade, com o bairro, a vizinha, a família, a mãe e o filho. É preciso começar em si. Praticando. Não foi estranho matarem Cristo. Como não é estranho atualmente, quererem matar Paulo Freire. Nem são estranhas, todas as apropriações, que se fazem. Como as que faz o desgoverno hoje, no Brasil. Como aconteceu com a igreja evangélica, como pode acontecer com a umbanda e o candomblé, muito loguinho.

Por fim: não é estranho ver um idiota tacando pedras em alguém.

Nunca escondi que gosto muito do Cristo. Só que não reivindico ser cristão por isso. Como não preciso ser marxista, por gostar e concordar com Marx. Nem tolstoísta, por ler e preferir Tolstói. Violonista, pra poder tocar meu violão. Ou humorista, pra gozar feliz do humor.

Não deixo de compreender quando vejo essa tacação de pedras entre o planalto, pelo planalto, ou sendo estimulada nas igrejas e botecos das quebradas. Acontecendo em grupos whatsapp de famílias periféricas, como a minha. Não deixo de compreender. Só lamento e perco um pouco de esperança, quando vejo gente que se julga preparada, acima, cá não praticando nada, deixando a política no extremo oposto de suas vidas. E ainda pedindo palma.

Pra mudarmos o mundo, pauta mais recorrente em nossos perfis sociais, que nos concursos de miss, talvez devamos ir mais às igrejas. E eu conto com a elegância de vocês, em nosso pacto de texto, pra intuírem, sem mais explicações, o que isso quer dizer.

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Direitos Humanos para Humanos Direitos?

24 de maio de 2019 by Observatório

A construção de inimigos e a legitimação da violência estatal

Tatiana Lionço

Jair Bolsonaro, em sua campanha política para a presidência da República, recorreu amplamente ao discurso anti-corrupção e da necessária implementação de novas medidas de segurança pública. No seu plano de governo se encontra a demarcação do que entende ser o inimigo a ser combatido: o Partido dos Trabalhadores (PT), mas também de forma mais ampla a esquerda, o “marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, (que) se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira” (Plano de Governo Bolsonaro 2018).

Podemos identificar a demarcação de uma distinção no escopo da sociedade: cidadãos de direita versus cidadãos de esquerda. Haveria distinções cabíveis entre cidadãos, justificando a adoção de medidas estatais específicas diante da qualidade distintiva dos sujeitos. No campo do Direito Penal, tais prerrogativas remetem a uma controversa teoria penalista denominada Direito Penal do Inimigo. Criada em 1985 pelo alemão Günther Jakobs, tal teoria serviria para justificar a suspensão de garantias jurídicas para sujeitos identificados como ameaça ao Estado e à sociedade, legitimando um Estado de exceção parcializado sob a justificativa de que, diante de inimigos, a justiça deveria operar de modo mais veemente.

Um exemplo recente da aplicação do Direito Penal do Inimigo seria a condenação sem provas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A condenação midiática prévia e a construção de sua figura política como inimigo político a ser combatido teria decorrido na aplicação da sanção da privação de liberdade, a despeito da ausência de provas materiais que respaldassem tal decisão jurídica. De um modo mais abrangente, podemos também afirmar que o Direito Penal do Inimigo funciona no Brasil na lógica do encarceramento massivo da população negra, construída inimiga pública por meio da estigmatização de pessoas negras como criminosas em si. Foi assim que Rafael Braga foi detido e encarcerado: bode expiatório na condenação de ativistas que tomaram as ruas no levante de Junho de 2013. Um homem negro, pobre, portando uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária, nas redondezas do território em que os protestos ganharam lugar: foi condenado por ser quem é, e não por provas que o ligassem a um ataque a bombas contra o patrimônio público e privado que, no fim das contas, nunca ocorrera.

De maior gravidade ainda é a condenação sumária na forma da execução homicida, impondo a determinados sujeitos penas nunca tramitadas pelo sistema de justiça e que não se justificariam em nosso ordenamento penal. A pena de morte é realidade recorrente para homens negros no país, levados ao óbito por ações policiais que as executam, sob a justificativa da necessidade do punho firme do Estado no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Foi o que ocorreu com Evaldo dos Santos Rosa, alvejado por militares junto à sua família, quando confundidos com assaltantes. Ocorre que a família estava se dirigindo a uma confraternização, mas caso o carro atingido houvesse sido de reais assaltantes a opinião pública sobre o caso seria diferente? Teria legitimidade a ação letal dos militares?

Esta lógica de exceção não é exatamente uma novidade no contexto brasileiro, remetendo à história de manutenção do racismo e do genocídio contra populações negras e indígenas, mesmo durante o regime republicano. É de se notar, no entanto, que a retórica adotada por Jair Bolsonaro endossa a lógica do Direito Penal do Inimigo, com implicações graves em nosso ordenamento normativo, mas também nas representações coletivas sobre diversidade social.

O pacote anti-crimes apresentado pelo atual ministro da justiça Sérgio Moro na gestão Jair Bolsonaro, por exemplo, além de acirrar penalidades (com perspectiva de agravar o já excessivo contingente carcerário brasileiro), propõe a exclusão do ilícito diante de agravos e assassinatos realizados por agentes de segurança em situação de legítima defesa de si ou de outrem, ou, nos termos do projeto, em situações de “medo, surpresa ou violenta emoção”.

Em uma perspectiva ampliada, Jair Bolsonaro prometeu, em seu Plano de Governo apresentado em campanha, enfrentar”os grupos de interesses escusos que quase destruíram o país”, na sequência mencionando “a esquerda”. Vivemos um momento histórico em que está em curso a construção discursiva e política de “inimigos a serem combatidos”. Para além da criminalizarão da pobreza e do povo negro, também são entoadas narrativas de identificação de variados movimentos sociais como inimigos do Estado. O Movimento dos Trabalhadores sem Teto e o Movimento dos Sem Terra enfrentam investidas legislativas para a tipificado de suas estratégias de protesto como crime terrorista. Feministas contam com ampla difamação como sujeitos escusos, cuja política afrontaria os interesses da família e da Igreja. No dia 27 de Março de 2019 ocorreu o Seminário “O Protagonismo da Mulher Jovem no Brasil”, em que a Deputada Estadual Ana Caroline Campagnolo(PSL/SC) apresentou suas ideias sobre “as armadilhas do feminismo”, supostamente desmascarando os danos decorrentes da luta feminista.

Jair Bolsonaro, em sua costura entre os interesses da Bala e da Bíblia, estaria inaugurando uma era de explícita exclusão de parcelas da sociedade brasileira do escopo da cidadania? O que podemos verificar, nesses três primeiros meses de gestão, é a decisão pela demarcação de uma fronteira simbólica entre cidadãos que mereceriam a proteção do Estado e aqueles diante dos quais só restaria o enfrentamento governamental na lógica da destituição de sua legitimidade cidadã. Como costumava entoar Jair Bolsonaro, os direitos humanos seriam para humanos direitos, pregando um deslocamento de perspectiva que destrói o fundamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmado em nossa própria constituição democrática de 1988: o de que todos seriam iguais perante a lei, com igual proteção da lei, sem qualquer distinção.

Ao sedimentar a ideia de que nem todos os seres humanos seriam humanos direitos, o que Jair Bolsonaro dissemina é a ampliação da lógica do Direito Penal do Inimigo para a ampla consideração do status social e político de sujeitos específicos, que passariam a dispor do estatuto da inimizade diante do atual governo federal. Diante de inimigos, a violência estatal (seja esta homicida, omissiva diante de suas necessidades prementes ou difamatória) se justificaria moralmente como medida legítima. Caso os movimentos sociais, opositores políticos, e mesmo funções públicas como a docência, sejam compreendidos pelo senso comum e pela retórica governamental como inimigos a serem combatidos, poderíamos ainda assim afirmar que dispomos de uma condição democrática?

A retórica da inimizade, partindo de um sujeito que ocupa o cargo de Presidente da República, sinaliza para o caráter não democrático da atual gestão. Ainda que busque justificar moralmente seu afã pelo uso da força para a manutenção da ordem social, o que tal retórica impulsiona é uma condição de guerra moral, de sedimentação de estigmatizações não apenas contra sujeitos e movimentos sociais, mas que pretenderia suspender, para determinados sujeitos, seus direitos humanos, sociais e políticos.

Seria Jair Bolsonaro um inimigo para nós, ativistas de direitos humanos? Prefiro argumentar que é um político despreparado para a ocupação do cargo, um mau gestor que descumpre preceitos constitucionais, que carece de recursos emocionais e políticos para lidar com o contraditório, com a oposição a seus próprios posicionamentos, e que precisa investir na destruição das alteridades para afirmar a si mesmo. Nós somos diferentes e podemos fazer melhor: podemos nos manter firmes sem o abuso da força, podemos seguir argumentando nossa diferença de perspectiva ainda que tenham buscado nos destruir moralmente. Não é tão fácil assim nos silenciar e nos reduzir ao inimigo a ser combatido. Nossa dignidade se mantém invicta, disputando imaginários. Nossa potência é a esperança, e não a destruição.

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O Brasil à venda a preço de banana

24 de maio de 2019 by Observatório

Fernando Ramos

Muito embora Jair Bolsonaro nunca perca uma oportunidade de declarar o seu amor e saudosismo pela época da ditadura militar brasileira, em ao menos um aspecto fundamental, ele diverge por completo dos homens de fardas e coturnos que governaram nosso país por vinte e um anos de barbárie: os militares de então eram nacionalistas e nem mesmo cogitavam a venda das estatais e do patrimônio público ao capital estrangeiro, enquanto Bolsonaro e Paulo Guedes são entreguistas e demonstram muito mais respeito e devoção pela bandeira norte-americana do que pela brasileira. Ao contrário dos governos Lula e Dilma, nos quais não houve foco em privatizações, mas em concessões (que atendiam ao interesse público e garantiam a menor tarifa ao usuário), desde o Golpe de 2016, temos visto uma desenfreada sanha privatizadora que inclui setores estratégicos à soberania nacional, em contratos leoninos que configuram crimes de lesa- pátria aos olhos da Lei de Segurança Nacional, de 1983, que traz consigo um ranço ditatorial que não encontra guarida em nossa Constituição Cidadã, mas ainda é aplicada por nossos tribunais vez por outra. Todavia, nem tudo o  quanto previsto em tal lei é, necessariamente, ruim para o país. Tanto que, ao ler os seus artigos, facilmente percebemos que Bolsonaro já poderia ter sido preso uma dúzia de vezes com base nessa norma da ditadura militar. Abaixo, passo a analisar brevemente alguns dos casos mais recentes da espoliação de nosso patrimônio que afrontam a soberania brasileira com crimes de lesa-pátria.

Em 1994, a Embraer foi privatizada. Porém, o governo manteve uma “Golden Share”, que concede poder de veto a algumas operações, como no caso da venda da empresa. Em artigo para o blog Nocaute em 12.07.2018, Fernando Morais protesta:

Sessenta anos atrás, quando o Brasil ainda importava privadas e arame farpado, o marechal-do-ar Casimiro Montenegro sonhou: “Um dia este país ainda será uma potência aeronáutica”. Foi dado como louco, mas realizou seu sonho: criou o ITA e o primeiro embrião do que viria a ser a Embraer. Passado quase meio século, a Embraer é a terceira maior empresa do mundo na fabricação de aviões comerciais, atrás apenas da Boeing e da Airbus. É a única de tal porte no hemisfério sul, e conta atualmente com cerca de 15 mil funcionários de altíssima qualificação. É o maior polo gerador de tecnologia da América Latina. Pois na calada da noite, no breu das tocas, como diz o Chico Buarque, em plena Copa do Mundo, na véspera do jogo do Brasil contra a Bélgica, o governo anunciou a venda da Embraer para a americana Boeing. Mais precisamente, vendeu o controle de 80% da sua divisão de jatos comerciais. Ou seja, vendeu o filé mignon da empresa.

O valor da venda foi de míseros 4,2 bilhões de dólares, cerca de 10% do valor injetado na empresa pelo BNDES ao longo dos anos. Para se ter uma ideia ainda mais precisa, o faturamento anual da Embraer é de cerca de 6 bilhões de dólares. Ou seja, a Boeing recupera seu investimento em menos de um ano. Bolsonaro não fez uso de seu poder de veto nessa venda, autorizando a desnacionalização da empresa sem que haja quaisquer garantias nessa operação, como a manutenção dos empregos dos cidadãos brasileiros e da cadeia nacional de fornecedores. O segmento de aviação comercial, que passará a ser de titularidade da Boeing em 80%, representa quase 90% dos lucros da Embraer. A operação, que foi enquadrada em diversos meios de comunicação como uma “joint venture”ou parceria estratégica, em verdade, trata-se de uma aquisição.

Em entrevista para a “Carta Capital”, quando perguntado se a venda da Embraer é um ótimo negócio para a Boeing, mas um retrocesso para o Brasil, Marcos Barbieri, professor da Unicamp e uma das maiores autoridades brasileiras no assunto, afirma:

Com certeza. A operação amplia as vantagens competitivas da Boeing, pois permite a entrada da empresa no segmento de jatos comerciais com menos de 150 assentos numa posição de liderança. Além disso, incorpora a reconhecida capacidade de engenharia e a moderna estrutura produtiva da Embraer. Por outro lado, a Embraer, tem a perda do seu principal negócio, restando uma empresa com cerca de metade do faturamento, baixa lucratividade e reduzida capacidade tecnológica. O Brasil perde a sua única grande empresa de alta tecnologia, que possuía uma inserção ativa no mercado internacional, devendo impactar negativamente no desenvolvimento de novos projetos estratégicos e na geração de superávits comerciais.

Mas não para por aí, pois o país de Santos Dumont, o único e verdadeiro inventor do avião, quer ainda tripudiar uma segunda vez sobre a sua própria história. Isso porque também estamos vendendo a preço de banana os nossos aeroportos. Leiloados a empresas em três blocos distintos (Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste), os valores de arremate foram ridiculamente irrisórios. Para se ter uma ideia, o bloco do Centro-Oeste, composto por quatro aeroportos, foi vendido por quarenta milhões de reais. Trata-se de apenas cerca de 10% do valor de um avião da Boeing modelo 737-900 ER NG. Ou seja, cada um desses quatro aeroportos vendidos saiu pela bagatela de cerca de 2,5% do preço de um avião da Boeing. Todavia, aqueles que afirmam com segurança que tais aeroportos passarão a funcionar com maior eficiência e profissionalismo por conta dessas privatizações estão redondamente enganados.

Reportagem da revista “Época” de 14.06.2018 afirma que:

As privatizações de aeroportos, seja por venda dos ativos ou modelos de concessão, encareceram os serviços aos consumidores e não trouxeram ganhos de eficiência substanciais. A constatação é da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), em estudo com a consultoria McKinskey sobre os efeitos da entrada do setor privado em quase 90 aeroportos ao redor do mundo. O economista-chefe da Iata, Brian Pearce, afirma que: “Em infraestrutura aeroportuária, as pressões competitivas são, por natureza, muito menores”, destacou durante a 74ª reunião geral da associação de companhias aéreas, em Sydney, Austrália. Neste ambiente que tende ao monopólio, há maior risco de “abuso do poder de mercado” por parte dos operadores privados, já que o foco está no retorno ao investidor, em detrimento do consumidor e de benefícios econômicos de longo prazo, diz Pearce. O estudo da Iata mostra que, embora os custos unitários de operação tenham caído para os aeroportos privatizados, o usuário passou a pagar mais caro pelo serviço, o que levou a um aumento expressivo dos lucros. “Claramente, a privatização dos aeroportos vem com um preço, que os consumidores têm de pagar”, afirma a entidade. O economista-chefe da Iata fez ainda críticas ao pensamento de curto prazo dos governos na hora de privatizar aeroportos – o que, na visão da associação, se soma ao conjunto de fatores que levaram aos resultados decepcionantes pelo mundo.

Em artigo para o jornal “O Globo” de 16.04.2018, Paulo Pimenta afirma que:

Se privatizar resolvesse, o Brasil não teria déficit público desde os anos 90, quando o governo FHC privatizou, a preços irrisórios, empresas estratégicas como Embratel, Vale do Rio Doce e Telebrás. (…) Só o novo programa de refinanciamento de dívidas tributárias (Refis) vai retirar R$ 220 bilhões dos cofres públicos até 2020. Mais grave ainda foi a MP 795, que presenteou petroleiras estrangeiras com R$ 1 trilhão em isenção de impostos. Agora anuncia a venda da Eletrobrás, maior companhia de energia elétrica do país e a garantidora da nossa segurança energética, essencial para manter a conta de luz barata e acessível ao bolso do povo. Custou desde sua criação, nos anos 50, cerca de R$ 400 bilhões, e Temer quer entregá-la por pouco mais de R$ 20 bilhões. (…) Os serviços de distribuição de energia elétrica em países como França e Itália são tratados como assunto de segurança nacional, operados majoritariamente por estatais e com capital de origem nacional. Nos EUA, não entram estrangeiros no setor.

Vale lembrar que, quando candidato, Bolsonaro disse que: “País sério nenhum no mundo faz isso, entregar (o setor elétrico) para outros países”, afirmando ser a Eletrobrás estratégica e vital. A venda das duas últimas distribuidoras elétricas da estatal está praticamente concluída, apenas aguardando uma Medida Provisória que tornará  tais operações ainda mais atrativas aos investidores.

Em 30.07.2018, o jornal “Brasil de Fato” publicou editorial que declara:

Crime de lesa-pátria é a prática de causar prejuízo a um país inteiro, atingindo sobretudo a soberania nacional. (…) As privatizações e o fim da política de conteúdo nacional na exploração do pré-sal transferiu os lucros – que se destinariam à educação e saúde – para as grandes petroleiras como a Shell e Statoil. A nova política de preços assumida pela Petrobras favorece a importação de petróleo refinado, eleva os valores do gás de cozinha, gasolina e diesel. É também um crime de lesa-pátria. (…) A bancada ruralista tem se esforçado para aprovação do projeto de lei dos Agrotóxicos. O PL flexibiliza o uso de mais venenos. Em 2015, o setor de agroquímicos faturou, somente no Brasil, cerca de US$ 9,6 bilhões. Todo este lucro concentra-se em seis grandes transnacionais do agronegócio: Monsanto, Syngenta, Bayer, Dupont, DowAgroscience e Basf. Este setor é isentado, em média, entre 70% a 100% de tributos. Outro verdadeiro crime de lesa-pátria. (…) Retirar Lula das eleições tem o objetivo de impedir que o povo brasileiro interrompa a entrega do país aos interesses econômicos internacionais.

Ainda sobre o tema da Petrobras e do Pré-Sal, vejamos o que diz o artigo de Carlos Zarattini publicado no jornal “O Globo” em 31.10.2016:

A cadeia produtiva de petróleo e gás, sob a batuta da Petrobras, responde por 20% do PIB e 15% dos empregos criados. (…) Hoje, a empresa tem autonomia em relação ao competitivo mercado internacional de petróleo e é líder na tecnologia de exploração em águas profundas. (…) As reservas do pré-sal, tendo a Petrobras como operadora, têm produtividade acima da média mundial, a baixíssimo custo. A curva de produção diária de barris está em ascensão e em 2021 a produção deve atingir 3,4 milhões de barris/dia. A Petrobras produz o barril de petróleo na área do pré-sal entre 8 a 16 dólares o barril; nenhuma empresa produz a menos de US$ 22. (…) A entrada de novas empresas como operadoras vai aumentar o custo de produção e consequentemente reduzir o excedente que fica com a União e que deverá ser usado em educação e saúde. Só no campo de Libra, onde a Petrobras participa no consórcio com 40%, a alteração, se aplicada, gerará uma perda de cerca de R$ 246 bilhões para a União. As áreas de Saúde e Educação vão perder R$ 50 bilhões. Isso vai atingir os mais pobres, que dependem de políticas para o setor.

Outra situação de extrema gravidade, porém menos debatida na imprensa, acontece agora no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). É o que comprova a leitura do artigo de Jorge Bermudez publicado no site da CEE (Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz), em 10.07.2018:

Sob a alegação de que os atrasos, ou backlog, de cerca de dez anos na análise das solicitações de patentes, prejudicam o inventor, o desenvolvimento científico e a inovação, medidas objetivando agilizar a análise dos pedidos de patentes foram incluídas no Relatório da Comissão Mista de Desburocratização do Congresso Nacional, incluindo o denominado Deferimento Sumário, ou seja a aprovação sumária dos pedidos de patentes pendentes, sem exame. (…) Já nos pronunciamos a esse respeito, lembrando da inconstitucionalidade, ilegalidade e violação de tratados internacionais que essa proposta acarreta. (…) O deferimento sumário, ou deferimento automático nas solicitações de patentes pendentes, sem exame, configura nitidamente um crime de lesa-pátria. Causa espécie, portanto, sua inclusão como uma das soluções para tratamento do passivo de patentes no INPI por um de seus diretores. Esse crime fica muito bem constatado no campo da Saúde. Considerando que apenas 10% das patentes solicitadas são aprovadas em primeira instância, o procedimento geraria monopólios equivocados em 90% dos casos de patentes sem mérito e colocaria em risco a economia nacional, com aumento de preços desses produtos, sem competição no mercado, tornando-os inacessíveis a enormes contingentes da população e onerando o setor público. Considerando, ainda, que 80% das solicitações de patentes são de empresas transnacionais, torna-se também um atentado à nossa soberania, com remessas indevidas de royalties para o exterior. Por inibir a competição de mercado de maneira equivocada e injustificada, representa um atentado também à dinâmica de mercado e concorrência, como ao direito econômico e aos direitos de cidadania.

Em artigo do mesmo autor e para o mesmo site, datado de 31.07.2017, já havia sido alertado que:

Os custos imediatos para o SUS da concessão indevida de uma patente são estratosféricos. A lei de propriedade industrial (Lei nº 9.279/96) previu o mecanismo de patentes pipeline, que assegurou a concessão de patentes no setor farmacêutico, entre outros, sem o exame dos requisitos de patenteabilidade, sendo considerada Trips-plus. Estima-se que para apenas seis medicamentos antirretrovirais (ARV), cujas patentes foram concedidas pelo mecanismo pipeline, o governo brasileiro gastou cerca de 420 milhões de dólares a mais, no período de 2001 a 2007, pela impossibilidade de comprar alternativas genéricas mais baratas e disponíveis no mercado internacional. (…) Nos últimos anos, as despesas do SUS em assistência farmacêutica foram crescentes, a exemplo das cifras do Ministério da Saúde, que passaram de R$ 8,5 bilhões, em 2008, para R$ 14,8 bilhões, em 2015, tendo os produtos em situação de monopólio um papel importante nesse aumento.

Crimes de lesa-pátria são todos aqueles que atentam contra a soberania de um país por meio de traição, espionagem, revelação de segredo de Estado, sabotagem, separatismo e quaisquer outras condutas que ponham em risco a própria existência e sobrevivência de uma nação, de seu povo, de suas riquezas e de sua ordem constitucional. Há projetos de lei em trâmite, os quais almejam que os crimes de corrupção sejam considerados crimes hediondos, crimes contra a economia popular e crimes de lesa-pátria. Dessa forma, haveria uma punição mais severa e eficaz para todo e qualquer desvio de finalidade das verbas públicas. Talvez esse seja mesmo um caminho interessante a ser trilhado, buscando manter a classe política sob maior controle por parte do povo. Realmente, faltam-nos mecanismos jurídicos para impedir a espoliação de nosso patrimônio público. Esse poderia ser um dos pontos abrangidos na tão sonhada e urgente reforma política.

É importante frisar, todavia, que nem toda privatização é, necessariamente, desvantajosa ao país. Existem setores estratégicos à nossa soberania, tanto quanto existem setores não estratégicos em que a máquina pública não atende adequadamente aos anseios da população. Uma parte de nossas estatais pode sim ser privatizada. Mas são necessárias garantias ao povo: manutenção de empregos e fornecedores brasileiros, tabelamento das tarifas, impedindo a escalada desproporcional dos preços ao consumidor final, preservação da livre concorrência; assim como o pagamento justo do valor de mercado de tais estatais deve ser observado. O que temos testemunhado desde o Golpe de 2016, entretanto, é uma precipitada corrida para vender a preço de banana ao capital estrangeiro todo o patrimônio público que levamos mais de um século para construir. Foi o povo brasileiro quem pagou cada centavo necessário para a aquisição de tal patrimônio. Sendo assim, não pode esse mesmo povo, agora, ficar de fora desse processo decisório. É urgente que os nossos gritos de insatisfação e protesto ganhem corpo nas ruas para colocar em xeque a venda indiscriminada do nosso país. Ou gritamos agora, ou depois teremos que nos calar para sempre. Ainda é tempo de salvarmos o que restou do Brasil.

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Direito à saúde e participação social: a importância das conferências de saúde

24 de maio de 2019 by Observatório

Ludmila Cerqueira Correia

O ano de 2019 já está sendo marcado pelos retrocessos em diversas políticas sociais, especialmente no âmbito das políticas públicas de saúde. Se é verdade que a Constituição Federal de 1988 continua valendo, o direito à saúde continua sendo um direito de todos e dever do Estado. Significa dizer que o direito à saúde se constitui como um direito social, indissociável do direito à vida, integrando, portanto, o conjunto de direitos humanos, e devendo ser garantido pelo Estado a todas as pessoas através de políticas sociais e econômicas.

Destaque-se que a participação social na área da saúde decorre da luta do Movimento da Reforma Sanitária, enquanto sujeito coletivo de direito, para a conquista e construção do direito à saúde no Brasil, sobretudo em relação à concepção ampliada de saúde. E são os mecanismos de participação social criados após a Constituição de 1988, como os conselhos e conferências de saúde, que configuram o modelo de democracia participativa, do qual não podemos abrir mão.

Este ano também é marcado pela realização da 16ª Conferência Nacional de Saúde, que tem como objetivo principal traçar as diretrizes para as políticas públicas de saúde no Brasil. Na conjuntura atual, esta Conferência ganha ainda mais centralidade, pois além de se constituir como um espaço de defesa da democracia e do Sistema Único de Saúde (SUS), será um espaço de resistência contra a forças conservadoras e autoritárias que estão presentes e atuando nesse contexto.

Daí a importância da participação de representantes dos movimentos sociais e de organizações, que já vêm acumulando forças não só na construção do sistema público de saúde, como também para enfrentar os desafios que estão postos e os que virão. Nesse contexto, a Emenda Constitucional nº 95/2016 representa uma das mais graves intervenções nas políticas de saúde, ao lado da Reforma Trabalhista, da lei das terceirizações e da PEC da Reforma da Previdência, uma vez que possibilita a redução do SUS. Embora seja reconhecida a universalidade do direito à saúde na Constituição de 1988, o SUS não está consolidado como universal, tendo em vista o seu processo de mercantilização.

Atualmente, constata-se o agravamento do subfinanciamento público do SUS, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 95/2016, que reduz progressivamente os seus recursos por vinte anos, e identificam-se retrocessos na estrutura da rede hierarquizada do sistema (organização do atendimento em diferentes níveis de complexidade).

O SUS cabe na Constituição, desde que seja restabelecida a democracia no Brasil e que se reconheça a desigualdade como um dos principais problemas do país. Por tratar-se de um sistema amplo e complexo, faz-se necessária a sua rearticulação com a Previdência e a Assistência Social, além de uma reforma política democrática e uma reforma tributária socialmente justa, visando alcançar os seus objetivos e desempenhar as suas atribuições.

Todas estas são questões importantes para os debates e deliberações nas conferências municipais, estaduais e nacional de saúde este ano. Mais ainda, é imprescindível que tais conferências se revelem como trincheira de luta pela democracia e por um SUS universal, público, integral e de qualidade.

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30 anos – e agora?

24 de maio de 2019 by Observatório

David F. L. Gomes

Em meus dois textos anteriores publicados por aqui[1], procurei resgatar o sentido prático de algumas das dimensões que configuram o conceito moderno de Constituição e, na sequência, busquei a partir disso refletir sobre o que se passou em nossa história como sociedade desde a promulgação da Constituição de 1988 até seu trigésimo aniversário. Neste terceiro texto, inverto a ordem de prioridade temporal, deslocando o eixo de discussão das experiências vividas nos últimos trinta anos em direção às expectativas que se podem vislumbrar quanto aos próximos anos.

A Constituição de 1988 pode, em certo sentido, ser compreendida como uma filha tardia de seu tempo. Promulgada no final da década de 1980, ela expressa em suas linhas fundamentais um compromisso claro com o modelo democrático e social de Estado: ou seja, com o famoso Estado de Bem-Estar Social. Este havia começado a esboçar-se no final da década de 1910 e ganhara robustez nos pós-Segunda Guerra Mundial. A partir de meados da década de 1970, porém, vinha sendo alvo de uma série de críticas que insistiam em apontar como alternativa uma espécie de retorno ao modelo de Estado mínimo que havia prevalecido no século XIX, ainda que com algumas atualizações. Ao mesmo tempo, entre 1987 e 1988 – anos durante os quais foi elaborada – já se anunciava uma globalização que, terminada a Guerra Fria, unificaria cada vez mais o mundo sob os imperativos da economia capitalista, fragilizando a força dos Estados nacionais e sua capacidade de reação como agente político. Nesse cenário, no momento em que surge a Constituição de 1988 reafirma um modelo de relação entre Estado e sociedade que vinha sendo duramente atacado havia já alguns anos, ataques que cresceriam progressivamente nas décadas seguintes.

Entretanto, defini-la como filha tardia de seu tempo não significa dizer que ela seria qualquer coisa de anacrônica, nem que suas normas estariam engessando o Brasil em um projeto ultrapassado e, consequentemente, impedindo seu desenvolvimento. Pelo contrário: como filha tardia de um modelo que soube alinhar democracia e bem-estar social, ela herda exatamente a grandeza desse modelo, ao mesmo tempo em que as pessoas que com ela se identificam recebem como legado o encargo de defender tal modelo num contexto em que assume proporções avassaladoras a tentativa de desmontá-lo.

Essa parece ser, a propósito, a característica central dos próximos anos: um esforço intenso e agressivo de desconstruir aquilo que pôde ser erguido nas três primeiras décadas de vigência da Constituição de 1988. Em sintonia com iniciativas semelhantes em diversos países do mundo, esse esforço pode – e provavelmente vai – no limite atentar contra a própria existência dessa Constituição.

O que tanto incomoda em suas normas a ponto de sua vida ser colocada em risco? Em que pese sua pluralidade e sua complexidade tornem difícil uma síntese adequada, acredito que alguns elementos possam ser destacados. Em primeiro lugar, essa pluralidade mesma, que tanto enfatizei em meus dois textos anteriores. Por circunstâncias e correlações que não tenho condições de esmiuçar neste pequeno espaço, a globalização econômica veio aliando-se mais fortemente nos últimos anos a um projeto de retrocesso conservador. A aliança entre capitalismo financeiro e sociedade individualista multicultural e pluri-identitária – que rendeu bons frutos a ambos os lados ao longo da segunda metade do século XX e deu sua significativa contribuição para o declínio do Estado de Bem-Estar Social – tem sido substituída em boa medida por um novo pacto. Este reúne agora os interesses do mercado, de um lado, e a defesa de uma sociedade homogênea, fincada em uma base de valores que não toleram divergência. Em regra, esses valores têm como núcleo um misto de fanatismo religioso, subalternização de mulheres, racismo, ódio a gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. E tudo isso costuma ainda vir violentamente somado à aversão a algumas populações estrangeiras e a pessoas que se posicionam à esquerda do espectro político-ideológico. Esse pacto, talvez realmente novo para algumas sociedades, não é no Brasil outra coisa senão uma versão atualizada do velho liberalismo conservador que assola o país desde pelo menos seu nascimento oficial como nação independente. Aos olhos de tal pacto, o denso corpus de direitos fundamentais individuais, coletivos e difusos da Constituição de 1988 aparece como uma ameaça que, portanto, deve ser eliminada.

Em segundo lugar, direitos fundamentais trabalhistas e sociais não dizem tanto respeito à moldagem de uma sociedade como a descrita no parágrafo anterior: antes, eles atingem diretamente os interesses do próprio capitalismo global financeirizado, emoldurando uma relação entre Estado e economia que exige forte atuação estatal. Essa atuação não se volta para impedir a economia livre de mercado – esta é claramente assegurada pela Constituição de 1988 -, mas apenas para proteger a sociedade da ação predatória e irresponsável de um mercado conduzido anonimamente em busca do maior lucro. Mas mesmo essa intervenção atenuada do Estado na economia – repetindo: não para impedir a liberdade de iniciativa privada, mas tão só para atenuar seus efeitos colaterais – é um obstáculo que o capital financeiro sem rosto e sem pátria não pode aceitar. Por conseguinte, as garantias trabalhistas, a previdência social e a assistência social, assim como a saúde e a educação públicas, sofrerão assaltos continuados – e não temos a menor condição de afirmar que conseguirão sobreviver.

Esses dois elementos já seriam suficientes para o esboço de um quadro trágico. Todavia, o aspecto mais terrível desse quadro parece-me situar-se em outro elemento. Desde o fim da Segunda Guerra mundial, vigorou nas sociedades ocidentais e alcançou uma dimensão quase global certo consenso sobre a desejabilidade democrática. Como afirmava Karl Loewenstein, esse consenso era tamanho que inclusive governos ditatoriais apressavam-se em afirmar-se na retórica oficial como democracias. Nos últimos três ou cinco anos, essa desejabilidade democrática tem sido colocada em xeque de um modo que, se eu não estiver enganado, não acontecia desde o catastrófico período entre as duas Guerras Mundiais. Dessa maneira, também os direitos fundamentais políticos passam a ser ameaçados: com argumentos variados – que muitas vezes associam motivos teológicos com motivos técnicos, motivos financeiros e até motivos naturalistas – a democracia é colocada em crise. Não este ou aquele sistema democrático específico de um país concreto, mas a democracia ela mesma como regime político. Contudo, se esse é um fenômeno de extensão mundial, o risco de sua efetivação é sem dúvida maior em países como o Brasil, de herança colonial e com um passado recente de governos autoritários.

Esses três elementos elencados basicamente compreendem a totalidade dos direitos fundamentais que se mostram na Constituição de 1988 dos primeiros até os seus últimos artigos. Na medida em que, como direitos fundamentais, eles iluminam a interpretação dessa Constituição como um todo, aquilo que os atinge não atinge somente a eles, mas se difunde pelo projeto constitucional de 1988 alcançando até seus mínimos detalhes: temas mais técnicos – como repartição de competências e receitas entre os entes federativos, segurança pública, controle de contas ou organização dos poderes da república – dificilmente não sofrerão pressões correlatas por mudanças que desfiguram o projeto de 1988.

Se comparado com meu artigo anterior, em que me debrucei sobre a experiência de 1988 até hoje para resgatar nela lampejos de esperança capazes de iluminar os desafios do presente, este terceiro artigo ameaça soar como um golpe fatal em qualquer otimismo – por menor que ele fosse – quanto a nosso futuro. Mas não é assim que ele deve ser lido. Ou melhor, ele deve ser lido precisamente em conjunto com o artigo que lhe antecede. Juntos, eles formam um mosaico complexo que poderia ser retomado em sua potência crítica específica nestes termos: a Constituição de 1988 é um marco de uma sociedade que constitui para si mesma um projeto de profunda conexão interna entre democracia e desenvolvimento social, com garantia da liberdade e promoção de uma igualdade que só faz sentido como igualdade na diferença. Apesar de todas as mazelas que ainda caracterizam gritantemente o Brasil, muito desse projeto constituinte conseguiu vir efetivando-se nas últimas três décadas. O que se pode vislumbrar para os próximos anos, porém, é um ataque maciço a essas conquistas. Logo, o que o olhar teórico apresenta como desafio para a atuação prática contemporânea de cidadãs e cidadãos é a necessidade de uma defesa intransigente do projeto constituinte de 1988, da República de 1988. Sem dúvida alguma, esse é um desafio de proporções titânicas. Mas, no seu enfrentamento, não precisamos vivenciar o desamparo de não saber por onde começar nem para onde ir, pois podemos encontrar um ponto precioso de apoio na história mesma dos últimos trinta anos: é justamente a história das conquistas alcançadas que pode, em um momento como este, alimentar a esperança crítica de sermos capazes tanto de protegê-las quanto de continuarmos avançando.


[1] Conferir os textos publicados nestes dois links: https://constitucionalismo.com.br/o-que-e-uma-constituicao/ e https://constitucionalismo.com.br/30-anos-o-que-se-passou/.

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Limites ao direito de manifestação

24 de maio de 2019 by Observatório

Laila Maia Galvão

Tramita no Supremo Tribunal Federal um recurso extraordinário que possui discussão constitucional das mais relevantes. Trata-se do RE 806.339, que aborda a imposição de limites ao direito de manifestação, mais especificamente a obrigatoriedade de aviso prévio para reunião pública. Ainda em 2015 o Tribunal conferiu repercussão geral à matéria. Assim se pronunciou o Ministro Marco Aurélio, relator do processo, naquela oportunidade:

“Eis tema a reclamar o crivo do Supremo, assentando-se o alcance da norma em jogo, ou seja, cabe ao guarda maior da Constituição Federal definir, a partir do dispositivo apontado, as balizas no tocante à exigência de prévio aviso à autoridade competente, como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião, direito ligado à manifestação de pensamento e à participação dos cidadãos na vida política do Estado”

O STF assumiu a responsabilidade, portanto, de discutir e definir o alcance do artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal, no tocante à exigência de aviso prévio à autoridade competente como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião. Vale destacar que essa é a redação do mencionado inciso: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

Por ser um recurso extraordinário, vale resumir brevemente o caso. Trata-se de um pedido, por parte da União, de um interdito proibitório referente a um suposto esbulho de determinada área da BR-101 no município de Propriá, Sergipe, uma vez que sindicatos, centrais sindicais e um partido – no caso o PSTU – realizaram uma manifestação na rodovia. As entidades envolvidas perderam em primeira e segunda instâncias e apresentaram um RE para buscar a efetividade do direito à liberdade de expressão. Ressaltaram, no recurso, que a manifestação foi noticiada pelos meios de comunicação, que a polícia rodoviária federal estava presente e que não caberia ao Poder Executivo determinar a conveniência ou não de manifestações em locais públicos.

O Relator Ministro Marco Aurélio negou provimento ao recurso alegando que a interrupção do trânsito na rodovia não poderia ocorrer sem prévio aviso à autoridade. Para tanto, o Ministro fez alusão ao direito de locomoção dos cidadãos para encontrar, no caso concreto, uma violação à ordem constitucional. Trata-se de mais um caso em que o chamado direito de ir e vir torna-se protagonista das discussões sobre liberdades (sobre isso, ver texto que publiquei anteriormente nessa plataforma).

O processo encontra-se com o Ministro Dias Toffoli, que pediu vista dos autos. Acompanhando o relator, já votaram os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Para dar provimento ao recurso, votaram os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.

Os votos dissidentes destacaram a relevância do direito de manifestação. A Ministra Cármen Lúcia afirmou que o Poder Público deve fazer com que os direitos de protesto e de ir e vir “convivam” simultaneamente. Chama-se a atenção para o voto que inaugurou a dissidência, do Ministro Fachin. Ele citou o constitucionalista argentino Roberto Gargarella, o qual entende ser o direito de protesto o primeiro direito. Inclusive, em seu livro Carta aberta sobre la intolerância: apuntes sobre derecho y protesta (Siglo Veintiuno Editores, 2015), Gargarella questiona essa suposta colisão entre direitos, ao afirmar ser necessária a determinação de qual dos direitos em jogo estaria mais vinculado ao núcleo democrático da Constituição. Por óbvio, o direito de manifestação e protesto é central em uma comunidade democrática.

O voto-vista de Alexandre de Moraes, proferido na última sessão de 2018, acompanhou o voto do relator. Para o Ministro, a obstrução completa de rodovias configura um abuso de direito. O voto, de certo modo, levava em consideração a crise ocorrida no mês de maio do mesmo ano, quando a greve dos caminhoneiros obstruiu importantes rodovias do país, sendo o mesmo Ministro o responsável por deferir medida cautelar (ADPF 159) para autorizar os Poderes Executivos federal e estaduais a tomarem providências para desobstruir essas rodovias. O temor de um novo movimento daquela proporção e dos impactos negativos desse tipo de manifestação parece ser um dos panos de fundo para o debate travado no STF.

A princípio, os Ministros aparentam estar de acordo em relação a alguns pontos como (i) o direito de protesto deve ser garantido aos cidadãos e (ii) o aviso prévio não pode ser condicionante para o exercício do direito de protesto. No entanto, surgiram nos votos que negavam provimento ao RE desdobramentos como (a) o poder público deve desobstruir vias importantes que são completamente bloqueadas por manifestantes; (b) em caso de danos, é possível uma responsabilização no âmbito civil dos organizadores do protesto. Discutiu-se, portanto, as consequências jurídicas da ausência do aviso prévio. Uma vez que se fala em indenizações e responsabilização, está a se falar de ato ilícito. Afinal, no caso concreto do RE, o fato gerador da multa às entidades organizadoras do protesto foi justamente a falta do aviso prévio às autoridades.

A depender da proclamação final do Tribunal, teremos uma espécie de “regulamentação” do direito de protesto que poderá ser usada, no futuro, para limitar ou bloquear esse direito do cidadão brasileiro. O tema, no entanto, envolve diretamente o exercício da democracia e merece ser debatido com todo cuidado e atenção pela Corte. A depender de como votarão os Ministros que ainda não se pronunciaram, poderemos ter um perigoso precedente que impõe obstáculos ao direito de protesto. Ou, caso a Corte decida por dar provimento ao RE, se constituirá um julgado de referência para a proteção constitucional do direito de manifestação.

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Reforma da Previdência: um debate constitucional, Ministro Barroso!

24 de maio de 2019 by Observatório

Renata Queiroz Dutra

A pauta da reforma da previdência tem sido ponto prioritário da agenda do Ministro Paulo Guedes para o Governo Bolsonaro. O caos em que se encontra inserido o atual governo parece tentar se organizar em torno dessa prioridade, muito embora a mistura entre ignorância e inexperiência da equipe composta venha obstando até mesmo esse objetivo.

Por outro lado, os setores empresariais não tem vacilado em estabelecer essa como uma agenda fundamental e até mesmo inevitável: o argumento, tão característico de discurso neoliberal, de que ou se faz a reforma ou se caminha para o desastre (revelando a inexorabilidade religiosa das pautas neoliberais, como bem denomina Leda Paulani[1]) se faz constante.

Em meio às trapalhadas do governo, à insistência da mídia e do setor empresarial e à resistência do campo de esquerda, o Ministro Luís Roberto Barroso, em evento no Rio de Janeiro, no último dia 29/3/2019, não se furtou em se posicionar:

“O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso afirmou que a reforma da Previdência não deve ser tratada como uma questão ideológica, porque é meramente aritmética. ‘Se não a fizermos, entregaremos um país arruinado para os nossos filhos’, disse repetidamente, durante evento hoje no Rio de Janeiro”[2].

Também de modo coerente com seus posicionamentos anteriores, o Ministro se alinha com à agenda do “mercado” e dispara com a inevitabilidade da realização da reforma: o rombo existe aritmeticamente, ele precisa ser resolvido e isso é inexorável. Para arrematar o perfil ideológico do seu posicionamento, recusa o enfrentamento justamente de questões que denomina, de modo pejorativo, de “ideológicas”. Nada tão parcial quando invocar para si a neutralidade política imputando ao outro a tomada de posição equivocada.

Entretanto, analisando com cuidado as discussões a respeito do suposto rombo da previdência e os questionamentos que se deitam sobre os termos em que proposta a reforma da previdência (PEC Nº 6/2019), curiosamente, o que se percebe é que, longe de um debate objetivo sobre números, a controvérsia se instala sobretudo a partir de conceitos. E de conceitos constitucionais.

É que “a conta que não fecha”, apresentada pelo governo e pelo setor patronal, analisa o déficit do Regime Geral da Previdência a partir da diferença entre as receitas decorrentes das contribuições sobre a folha de pagamento, vertidas por empregados, empregadores e demais contribuintes, e as despesas decorrentes do custeio dos benefícios.

A conta, realizada nesses termos, efetivamente é deficitária há mais de dez anos e seu montante negativo passa da casa dos 200 bilhões, tendo se agravado no último triênio. A repetição desse resultado à exaustão tem-se feito acompanhar do alarde sobre a imperatividade da realização da reforma, sob pena de o sistema previdenciário entrar em colapso a qualquer momento, como também repetiu o Ministro Barroso.

Por outro lado, um conjunto relevante de pesquisadores das mais diversas áreas, juristas e profissionais do campo da previdência[3] tem reivindicado números, contextos e, portanto, soluções diferenciadas para a Previdência Social brasileira.

A divergência reside justamente no fato de que a nossa Constituição não desenha um orçamento próprio para a Previdência Social, mas organiza, em conjunto, as receitas e despesas da Seguridade Social, a qual abrange Previdência, Assistência e Saúde. Assim sendo, desenha uma diversificada base de financiamento para o sistema de Seguridade Social, intencionalmente considerando que é nos momentos de crise econômica que mais se necessita e se onera o sistema de seguridade e que, igualmente, é quando para ele menos se pode contribuir com o rendimento do trabalho: os períodos recessivos costumam se fazer acompanhar de desemprego e de queda dos rendimentos do trabalho[4], razão porque,  estrategicamente, o conjunto de receitas da Seguridade social engloba contribuições com Cofins, CSLL, Contribuições para o Pis/PASEP, contribuições sobre receita de concurso de prognósticos, entre outras.

A partir dessa divergência quanto à compreensão do que seria o conjunto de receitas e despesas da Seguridade Social é que há uma corrente divergente sustentando que o déficit orçamentário que se tem começou apenas em 2016 e é da ordem de cerca de 50 bilhões, sendo passível de ser atribuído às chamadas DRU – Desvinculações de Receitas da União e a outras evasões de receitas que vem ocorrendo desde a juventude do nosso sistema de seguridade.

Nessa esteira, observa-se que a controvérsia, longe de ser aritmética, envolve uma discussão sobre a existência ou não de orçamento próprio da Previdência, a existência ou não de ampla base de financiamento da Seguridade Social e a constitucionalidade ou não da desvinculação de receitas da União.

Um debate, portanto, eminentemente constitucional, cujo desate democrático envolveria um reencontro dos debates públicos com o projeto de sociedade desenhado em 1988.

Infelizmente, integrantes do STF, Tribunal que supostamente deveria ser guardião e intérprete privilegiado da Carta Constitucional, empobrece a cognição do debate constitucional para estreitar sua visão aos números apresentados de forma despolitizada pelo mercado.

Ao mercado se curva, sem sequer reservar o lugar da Constituição Republicana de 1988 no debate ou sem sequer se preservar para um futuro e eventual controle de constitucionalidade da matéria, demonstrando psicanaliticamente o exato oposto do que nega: a ideologicamente orientada razão neoliberal, que não transige com a esfera pública e seus anseios democráticos, mas sentencia com os números que arbitrariamente impõe, publica e atropela.

O recado é claro: a defesa da Constituição de 1988 e do seu conteúdo social, produto de construção popular que são, não contará em suas filas com as elites togadas.


[1] PAULANI, Leda Maria. Neoliberalismo e individualismo. In: Economia e Sociedade. Campinas. 115-127, dez/1999.

[2] Disponível em:  https://www.valor.com.br/politica/6189263/ministro-do-stf-diz-que-reforma-da-previdencia-e-questao-aritmetica

[3] Por todos, indico a leitura do material produzido pela Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal – ANFIP, disponível em https://www.anfip.org.br/publicacoes/analise-da-seguridade-social-em-2017/

[4] SILVA, Maria Lúcia Lopes da. (Des)Estruturação do trabalho e condições para a universalização da previdência pública no Brasil. Tese defendida perante o Programa de Pós-Graduação em Política Social do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília. 2011.

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Diálogos constitucionais e constitucionalismo multinível: garantia em época de retrocessos

24 de maio de 2019 by Observatório

Melina Girardi Fachin

A concepção contemporânea da proteção dos direitos humanos inagugurou uma nova esfera da responsabilidade dos Estados na implementação desses direitos que deixaram de ser tema exclusivo da soberania constitucional e estatal. Isso impactou o modo de pensar e conceber o direito constitucional.

Todavia, ainda é certo que a responsabilidade primária na realização dos direitos humanos, de modo geral, recai sobre os Estados, que em abstrato possuem maiores condições de dar uma resposta satisfatória às vítimas de violações de direitos humanos.

Eis a razão pela qual o direito internacional dos direitos humanos opera por meio do código da subsidiariedade: apenas quando o Estado não possui estruturas internas suficientes ou não deu conta de resolver satisfatória, adequada e tempestivamente a demanda que lhe foi exposta, é que o aparato internacional entra em cena.

Emerge, dessa forma, um novo direito constitucional, multinivelado porque lastreado na coexistência de diversas ordens paralelas e harmônicas entre si que devem dialogar entre si em torno do princípio pro persona, ou seja, da centralidade da dignidade humana.

Isto se torna de fundamental importância em período de retrocessos nos quais muitos dos avanços constitucionais consolidados em matéria de direitos, sobretudo em relação à grupos vulneráveis, são colocados em cheque por ascenção de grupos conservadores e excludentes, como se observa de modo mais ou menos generalizado nas Américas. É, portanto, imprescindível que os ângulos interno e externo se articulem em prol da consolidação do constitucionalismo democrático e da expansão dos direitos humanos.

O direito internacional dos direitos humanos funciona assim como um mecanismo de salvaguarda e garantia em relação aos backlashes internamente operados, provenham estes autoritarismos do Estado (em quaisquer de seus poderes constituídos) ou mesmo da esfera privada.

Avulta, assim, a coexistência complementar dos sistemas de direitos humanos que interagem sempre em benefício dos sujeitos protegidos.

Importa esclarecer para afastar-se das críticas relevantes acerca da universalidade dos sistemas internacionais que não é a mera limitação do poder constituinte estatal pelos princípios internacionais – até porque isso não configura nenhum diálogo, senão imposição. O que se está aqui a tratar é uma verdadeira via de mão dupla que não opere de cima para baixo.

Dialogar não implica reproduzir nenhum projeto neocolonialista. Ao revés, quer-se dar voz e vez, em igual medida e destaque, para os constitucionalismos locais e periféricos articularem suas demandas de modo a privilegiar a expansão e emancipação do humano. Tal não significa uma colonização do direito interno pelo direito internacional, como no geral acusam os mandatários de plantão quando querem afugentar a proteção internacional dos direitos humanos.

Dialogar também não implica em cherry picking. Não pode-se escolher valer do direito internacional dos direitos humanos apenas quando convém; como os conservadores costumam fazer em relação ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos em relação à proteção do direito à vida vis a vis a problemática do aborto e o direito à educação das crianças e adolescentes pelos pais diante da propalada ideologia de gênero (em uma leitura míope do texto normativo da Convenção, registre-se).

O intento dessa convivência dialogal entre os sistemas, configurando o espaço do direito constitucional multinível, é expandir e engrandecer a proteção dos direitos humanos, a partir de uma lógica plural e garantista. É uma segurança que se dá aos sujeitos – seja quando o direito constitucional interno, seja quando o direito internacional dos direitos humanos andar mal.

No nosso caso, convém relembrar nestas derradeiras linhas, não é apenas uma faculdade, mas um dever instituído pelo comando constitucional e pelos comandos internacionais de direitos humanos que o Estado Brasileiro faz parte. O direito constitucional brasileiro, portanto, não se encerra no direito brasileiro somando-se a ele demais níveis protetivos sempre em prol do comando que melhor atenda, no caso concreto, as necessidades humanas em jogo. Isto em épocas de crescentes intolerâncias e mandonismos é uma caução que precisamos reiterar.

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“Pelos poderes de Montesquieu, eu tenho a força!”

24 de maio de 2019 by Observatório

Carina Barbosa Gouvêa

No texto anterior “Democracia e as crises dos sistemas democráticos: e agora, quem poderá nos defender?”[1], apresentei algumas ideias que merecem atenção no atual cenário da crise dos sistemas democráticos.

Nesta retrospectiva, rememoro as seguintes premissas apresentadas: democracia é uma técnica de liberdade, um espírito livre e igualitário com inúmeros núcleos semânticos e que abraça todos os povos, culturas, línguas e ideais; a democracia está decantada em sistemas democráticos e são eles que a corrompem, violam e deturpam; as crises não são da democracia em si, porque ela é imaculada em sua essência, mas são dos sistemas democráticos; e, por fim, foi apresentado um modo de viver constitucional denominado “democracia cooperada”, onde existe necessariamente uma conexão entre o direito e a parte orgânica da carta fundamental – abrindo a sala de máquinas da constituição[2], entre o constitucionalismo político e jurídico[3], entre as pessoas constitucionais e as instituições democráticas.

Os sistemas democráticos incorporaram alguns mecanismos de natureza instrumental, como a teoria da separação dos poderes de Montesquieu[4], teoria esta quevem acompanhando o estudo do constitucionalismo e das constituições ao longo dos tempos. Pode-se dizer que representa uma ideia básica para a modelagem do desenho institucional, eis que se centra em torno de três ramos governamentais: poder executivo, legislativo e judiciário – aqui pensado como uma separação necessária para prevenir e controlar o poder[5]. Por que reacender a clássica teoria da separação dos poderes? Estamos diante de uma teoria já consolidada ou ainda não entendemos o “espírito das leis”?

Para Montesquieu[6], todas as leis, o que inclui a constituição e seu funcionamento, possuem relações necessárias que derivam da natureza das coisas, ou seja, todas elas possuem um espírito, uma natureza, um sentido de existir. Desta forma, existem pré-condições para sua existência: elas devem ser próprias do povo para o qual foram estabelecidas – em consonância com a identidade, cultura, multinação, dentre outras; deve estar conectada com sua natureza, ou seja, seus princípios fundamentais, e com o princípio do governo que foi estabelecido ou que se pretende estabelecer – leis fundamentais, modelo de desenho institucional, sobre o qual ela irá reger; e, por fim, deve estar concatenada com as condições orgânicas do país, como o clima, situação econômica e social, gênero de vida, grau de liberdade, religião, costumes, dentre outros – estas relações possuem dependência entre si.

Para Gouvêa[7], a teoria da separação dos poderes de Montesquieu, por vezes interpretada de modo simplista como divisão entre executivo, legislativo e judiciário, contempla quatro espíritos independentes e fundamentais que se conectam num todo perfeito: separação ou independência do exercício do poder por órgãos específicos; a distribuição de suas competências ou funções; a liberdade política[8]; e a cooperação. Estes núcleos semânticos com suas representações variam no universo contextual e se materializam pela via do desenho institucional a partir de múltiplas ferramentas.

Segundo Fiuza e Costa[9], a separação dos órgãos de poder não pode ser entendida de modo absoluto, mas de maneira formal. A clássica doutrina não estabelece a independência plena dos três órgãos de poder[10]– o que ocorre é uma “constante interpenetração entre os órgãos de poder, como uma engrenagem de relógio, de maneira que nenhum ato de governo seja de responsabilidade de um só órgão”[11]. Eles se entrosam e se subordinam mutuamente na consecução dos ditames fundamentais, dentre eles a proteção e promoção do desenvolvimento social e do homem. Desta forma, a cooperação limita e controla, também, o exercício do poder. Para Montesquieu[12], estes são três órgãos – executivo, legislativo e judiciário – que fazem parte de um mesmo Estado para o exercício do mesmo poder, sendo preciso, portanto, que colaborem entre si.

Ressalta-se que, mesmo naquelas constituições que absorveram a teoria da separação dos poderes e seus princípios instrumentais, estas nem sempre incorporaram todos os seus elementos essenciais. O que significa dizer que houve uma incorporação deficiente, na maioria das vezes, o que pode afetar diretamente o desenvolvimento estruturante e progressivo, principalmente dos direitos fundamentais de cariz social[13].

A teoria da separação dos poderes no universo da constituição brasileira representa um princípio fundamental e encontra-se engessado como cláusula pétrea. É uma engrenagem importante para o funcionamento das estruturas de poder. Embora absorvida pelo desenho institucional brasileiro, essa teoria foi operacionalizada de maneira deficiente. Dentre seus núcleos fundamentais, incorporamos somente a harmonia e a independência. Deixamos de lado a liberdade política e a cooperação como elementos estruturantes essenciais, o que acabou, consequentemente, levando ao agravamento da crise do sistema democrático brasileiro. A deflagração do “estado de coisas inconstitucional” – violação massiva dos Direitos Humanos – pelo Supremo Tribunal Federal, relativa ao sistema prisional nacional, representa um destes efeitos.

No tocante à dialética da separação/harmonia das funções estatais, tal qual expressa em todas as Constituições brasileiras, em especial no artigo 2º da Carta atual, é preciso que descortinemos outros aspectos, para que, desde fora, possamos perceber os influxos sentidos pela ação especializada do Estado.[14]O contexto eminentemente descentralizado, marcado pelo princípio da separação dos poderes, ou seja, posto sob a visão exclusiva da harmonia e independência, acaba por projetar o que se passou a nomear como judicialização da política, especialmente desde a centralidade assumida com a ascensão da função jurisdicional[15], particularmente ante o crescimento do seu papel como jurisdição constitucional.[16]

Um dos efeitos desta crise pode ser refletido, por exemplo, no efeito backlash exercido pelos poderes. No plano coloquial, para Valle[17], a palavra tem como significado primário um súbito e intenso movimento de reação, em resposta a uma mudança igualmente brusca na trajetória do movimento, isto é, uma reação em sinal contrário. Por exemplo, reações legislativas às decisões do Supremo Tribunal Federal, fenômeno que no universo doutrinário brasileiro é conhecido como “correção legislativa das decisões judiciais”.

Outro efeito decorrente pode ser percebido no desafio de superação dos bloqueios institucionais. Segundo Valle[18], estes bloqueios, em verdade, se verificam a todos os países que o universo da doutrina entendeu qualificar como integrante do Global South[19]e que apresentam constituições marcadamente transformativas[20]. A recente evocação pelo Supremo Tribunal Federal da categoria “estado de coisas inconstitucional”, no julgamento da ADPF 347, com seguidas referências à experiência pretérita da Corte colombiana relativa à decisão da SentenciaT-153/98, evidencia a percepção da Corte da necessidade do desenvolvimento de provimentos jurisdicionais que se revelem aptos a determinar uma resposta mais eficaz ao complexo bloqueio institucional que deu causa às maciças violações de direitos humanos havida nas prisões brasileiras[21].

Estamos aqui a reivindicar a incorporação de todos “os espíritos” do princípio da teoria da separação dos poderes de Montesquieu e prevista na Constituição brasileira: a independência, a harmonia, a liberdade política e a cooperação.

Será a abertura à cooperação, aqui pensada como ampliação no cenário de deliberação quanto ao conteúdo dos direitos, que permitirá superar problemas atinentes ao pluralismo baseado em um consenso construído, que não repousa em um único ator[22], seja ele Judiciário, Legislativo ou Executivo. O compartilhamento com as demais estruturas do poder para a conclusão das tarefas determinadas pela Constituição e que envolvem “a efetividade de direitos” revela-se a estratégia mais legítima a superar a crise vivenciada pelos poderes da República que estão, por um lado, agravando a crise do sistema democrático e, por outro, encerrados no isolacionismo hermético e não cooperativo[23].


[1] Disponível em < https://constitucionalismo.com.br/democracia-e-crises-do-sistema-democratico/>.

[2] Para Gargarella, esta distinção entre dogmática, que abraça os direitos, e orgânica, que envolve o “maquinário do poder”, reflete a principal tensão que existe em qualquer Constituição. (GARGARELLA, Roberto. Qué són los derechos? Canal Justicia. Disponível em <https://youtu.be/-x3CzQbQgYU>. Acesso em 20 de mar. de 2015.

[3] Para maiores informações, consultar GOUVÊA, Carina Barbosa; DANTAS, Ivo. Os caminhos para o desenvolvimento de uma interconexão entre o constitucionalismo político e jurídico: abrindo a “sala de máquinas da Constituição”. AREL FAAR, Ariquemes, RO, V 5, N 01, p.82-110, jan. 2017, p. 84. Acesso em 20 de setembro de 2018.

[4] MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. O espírito das leis. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Marins Fontes, 1996.

[5] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro. Vol 1. Brasília: Biblioteca do Exército, 2018.

[6] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Trad.Cristina Muracho. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11.

[7] GOUVÊA, Carina Barbosa. Poder constituinte híbrido. Texto cedido pelo autor.

[8] A liberdade política constitui um dos elementos essenciais da teoria formulada por Montesquieu. Esta liberdade não é entendida em termos participativos, senão, como um elemento que representará um sentimento de confiança na segurança individual do sujeito. Para que exista esta liberdade é necessário que o governo seja tal que nenhum cidadão possa temer nada de outro. No livro XI, Montesquieu havia proposto uma outra definição no qual a liberdade política parece identificar-se com a obediência à lei, à constituição. Em apartada síntese, a liberdade política, considerada com relação ao cidadão, consistiria na segurança pessoal que este experimentava ao abrigo das leis e de uma Constituição que, entre outras coisas, assinala limites preciosos à ação do governo. (AGUILAR, Enrique. La libertad política en Montesquieu: su significado. Atilio Boron,(comp.), La filosofía Política Contemporánea, Buenos Aires, CLACSO, 2003.)

[9] FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros; COSTA, Mônica Aragão Martiniano. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 219.

[10] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro. Vol 1. Brasília: Biblioteca do Exército, 2018.

[11] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro; Gouvêa, Carina, “A teoria da separação dos poderes em 30 anos de constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional” (The Theory of the Separation of the Powers in 30 Years of Brazilian Democratic Constitution: The Forgotten Role of Cooperation to Contemplate the Perfect All in Institutional Design) (February 6, 2019), p. 1-20. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=3329942> e < http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3329942>. Acesso em 17 de fevereiros de 2010.

[12] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Trad.Cristina Muracho. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 165-196.

[13] GOUVÊA, Carina Barbosa. Poder constituinte híbrido. Texto cedido pelo autor.

[14] BOLZAN DE MORAIS, Jose. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaço-temporal dos Direitos Humanos. 2 ed. Porto Alegre: Revista dos Tribunais, 2011, p.57.

[15] A doutrina vem há muito tratando da temática, dentre eles, ver VIEIRA, Oscar Vieira. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, n. 2., p. 441-463; VALLE, Vanice Regina Lírio do; SILVA, Cecília de Almeida. Constitucionalismo cooperativo ou a supremacia do Judiciário. Jurispoiesis, Rio de Janeiro, v. 12, p. 321-348, 2009; LEITE, Glauco Salomão. Juristocracia e constitucionalismo democrático: do ativismo judicial ao diálogo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017; GOUVÊA, Carina Barbosa; DANTAS, Ivo. Os caminhos para o desenvolvimento de uma interconexão entre o constitucionalismo político e jurídico: abrindo a ‘sala de máquinas da constituição. AREL FAAR, Ariquemes, RO, V.5, N1, p. 82-110, Jan.2017. Disponível em:  https://ssrn.com/abstract=3124507 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3124507.

[16] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro; Gouvêa, Carina, “A teoria da separação dos poderes em 30 anos de constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional” (The Theory of the Separation of the Powers in 30 Years of Brazilian Democratic Constitution: The Forgotten Role of Cooperation to Contemplate the Perfect All in Institutional Design) (February 6, 2019), p. 1-20. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=3329942> e < http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3329942>. Acesso em 17 de fevereiros de 2010.

[17] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Backlash à decisão do Supremo Tribunal Federal: pela naturalização do dissenso como possibilidade democrática. Palestra proferida no II Seminário Internacional da Teoria das Instituições. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.

[18] VALLE, Vanice Lírio do. Estado de Coisas Inconstitucional e Bloqueios Institucionais: Desafios para a Construção da Resposta Adequada. Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo, 2016, p. 332.

[19] Para Valle, a expressão pretende enunciar um traço comum entre países que ostentam um exercício bastante particular de jurisdição constitucional, marcadamente comprometida com a efetividade de direitos fundamentais, mesmo os de cariz socioeconômicos. Originalmente cunhada por Maldonado, a expressão foi veiculada em obra dedicada a análise da atuação das Cortes Constitucionais da Índia, África do Sul e Colômbia (MALDONADO, Daniel Bonilla, ed. Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia. Cambridge University Press, 2013). VALLE, Vanice Lírio do. Estado de Coisas Inconstitucional e Bloqueios Institucionais: Desafios para a Construção da Resposta Adequada. Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo, 2016, p.335.

[20] O constitucionalismo de transformação diz respeito ao conteúdo substantivo da proposta de constitucionalismo manifestada em um texto que pretende ser o motor de alteração de uma realidade social. Ou seja, designam os esforços que abraçam o projeto de longo prazo de promulgação, interpretação e a implementação constitucional, dirigidas a transformar as relações sociais e instituições de poder em uma sociedade democrática, participativa e igualitária. (GOUVÊA, Carina Barbosa. As intervenções da ONU no processo de constitution-making nos Estados em transição política: o papel das Nações Unidas no resgate da ordem democrática. Curitiba: Juruá, 2016, p.32. Aproxima-se da ideia de bloco constitucional dirigente, eis que fornece um impulso permanente e consagra uma exigência de atuação pelo Estado como agente promotor destes direitos. Observa-se natransformação, um conjunto de tensões que facilitam o desenvolvimento da sociedade, marcadas pelas ações planejadas e não pela ascendência do instituto pragmático. (DA SILVA, Alfredo Canellas Guilherme; GOUVÊA, Carina Barbosa. Constitucionalismo e seus modelos contemporâneos de transformação e transição. Revista Interdisciplinar de Direito, v. 10, n. 1, 2017, p. 202-220, p. 218.

[21] VALLE, Vanice Lírio do. Estado de Coisas Inconstitucional e Bloqueios Institucionais: Desafios para a Construção da Resposta Adequada. Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo, 2016, p.346.

[22] SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010, p. 55.

[23] SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010, p. 55.

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Lula, o pato manco e a disputa do caos

24 de maio de 2019 by Observatório

Wilson Franco

Passado o período eleitoral e o Carnaval, permitiu-se enfim que Lula fosse entrevistado. Algumas semanas atrás, dia 27 de abril, a Folha de São Paulo e o El País conduziram a primeira; pouco depois foi a vez da BBC e, enfim, ontem (21 de maio) foi ao ar a entrevista realizada por The Intercept Brasil e conduzida por Glenn Greenwald. Um dos pontos interessantes desta última foi a insistência em pautas internacionais, relacionadas ao neoliberalismo, à derrocada dos governos de esquerda e à ascensão da direita conservadora; pareceu-me inclusive que Greenwald retomava por aí a imagem de um Lula “líder e estadista”, construída durante as gestões presidenciais 2002-2010 e que andava um pouco soterrada pelos desenvolvimentos recentes em torno da imagem do ex-presidente.

Um ponto curioso nesse aspecto da entrevista é a plataforma de raciocínio que rege as respostas de Lula referidas a esse campo: Lula não recorreu à retórica usual dos teóricos políticos e sociais na crítica do capitalismo neoliberal, mas também não refutou o papel desses desenvolvimentos – o que ele propõe, até onde pude compreender, é que se compõem na determinação desse movimento recente 1. a alternância de poderes peculiar a sistemas democráticos representativos, 2. a interferência de atores internacionais (como os EUA) e 3. a articulação de uma estratégia bem-sucedida de coaptação do imaginário popular.

A maneira como Lula analisa a conjuntura me pareceu bastante provocativa. Uma das grandes vantagens da maneira como ele apresenta o cenário é que ela não fica cativa de uma perspectiva única: não aprisiona a análise na conjuntura nacional, mas também não se a aprisiona na teoria social “global” (leia-se ocidentalista). O que acho que transparece nessa plataforma analítica é a figura do pensador político, no sentido forte do termo: alguém que não vê sentido nas distinções toscas entre “velha” e “nova” política, entre negociação e negociata – alguém que entende como a política funciona e não se ocupa além da conta com joguinhos e infantilismos.

Ainda que isso obviamente não signifique que ele não joga: na entrevista fica claro que ele está preparado e trabalhando, nada ali é casual, os movimentos são estudados. Lula está longe de ser um idealista ingênuo ou um líder desinteressado, movido apenas por pautas altruístas: ele é um político, e o que ele faz é política. Quando Greenwald pergunta sobre Ciro, sobre as “traições” que Ciro sofreu por parte do PT no processo da campanha de 2018, a linha de raciocínio de Lula vai claramente nessa direção: resumidamente o que ele diz é que “estivemos fazendo política, Ciro, eu, o PT, todos nós” (Ciro, por sinal, está também fazendo política inclusive quando diz que foi traído – a retórica da traição o alça, por contraste, à condição de “herói patriótico”, líder desinteressado: Bolsonaro teve a facada dele, Ciro teve a facada dele).

Não quero dar a entender que Lula “está certo” – mas acho importante ver um ator político de primeiro nível recusar a plataforma da politização seletiva, da circunscrição do que é ou não política, e acima de tudo recusar a ideia bizarra de que política é um adjetivo pejorativo. Lula discute políticas, e defende as políticas que ele representa (defende a si mesmo e faz palanque também, obviamente – afinal, ele é um político).

Uma das vantagens da plataforma de análise de conjuntura que Lula mobiliza é a possível superação de um imbróglio crítico dos mais inúteis e que infelizmente tem grassado na análise política nacional “progressista”: a tentativa de entender onde Bolsonaro e o bolsonarismo é “desastrado” e onde é “diversionista”. Ou seja: Bolsonaro é bobo mesmo ou é só faceiro? Essa gestão caótica é pura incompetência ou é estratégia de gestão para confundir e distrair?

Entendo que podemos implementar aqui uma leitura política programática, rigorosa e sem concessões fantasiosas, similar a essa que eu disse que Lula exerce em sua entrevista. Se o fizermos, a resposta a essas questões será simples: pouco importa, porque o que importam são os efeitos; ou seja: a gestão é política, porque ela não tem como não ser – nosso trabalho, então, é entender o que está efetivamente acontecendo no cenário político em virtude dessa conjuntura, que governo está sendo feito independente de quanto ele é “deliberado” e quanto ele é “desastrado”.

Nesse sentido, tudo indica que a figura de “pato manco” que Bolsonaro têm feito se oferece efetivamente como forma de composição de interesses incompatíveis. (Explicando o “pato manco”: dizem que alguns setores da economia apostam que a gestão Bolsonaro pode dar certo justamente em função de sua relativa incompetência, na medida em que ele abriria espaço para que decisões estratégicas fossem tomadas “a despeito” dele – como se ele fosse um figurante, um palhaço a ocupar a cena enquanto os profissionais fazem o trabalho; notável, nesse aspecto, é que Bolsonaro defende explicitamente essa linha de raciocínio em sua relação com Paulo Guedes).

É evidente que a estratégia do pato manco seria ruidosa e ineficiente demais se estivéssemos pensando em uma composição de interesses no sentido mais usual, uma composição racional, estratégica, negociada; mas a impressão que se fica é que a lógica do pato manco permite justamente acomodar interesses incompatíveis – afinal, promover ruído é a única maneira de pôr sinfonias distintas para tocar peças distintas concomitantemente. O que isso significa é que os conflitos entre interesses divergentes que detêm stakesna gestão Bolsonaro são acomodados por meio de abalos sísmicos mais ou menos sistemáticos – e é assim que se consegue “compor” um governo militarista, paramilitarista (miliciano), revanchista, liberal-privatista, entreguista, financista, nacionalista, conservador, armamentista e pecuarista. Estou dizendo que isso é deliberado? Não: estou dizendo que tanto faz, mas que uma das consequências é essa.

A peça fundamental no giro dessa máquina é, até onde posso ver, a estratégia de mídia. Nesse sentido convido o leitor a assistir ao documentário “Driblando a democracia”. O vídeo ajuda a compreender como a pulverização do panorama informacional, aliada ao controle de informações por parte das grandes corporações, permite agir politicamente de forma incisiva em meio ao caos (e o caos, nesse contexto, deixa de ser um problema e passar a ser um habitat privilegiado da ação política – afinal, quanto mais galvanizado o debate, mais marcadas as posições e mais “fácil” o mapeamento e manuseio das nuvens informacionais). É como se Bolsonaro capitalizasse sobre a conhecida máxima política segundo a qual uma crise é uma oportunidade em potencial, transformando essa máxima em plataforma de ação por meio de uma fabricação de caos em escala industrial (uma indústria evidentemente caótica, mas não por isso menos eficiente).

Uma das coisas que isso significa é que é um erro crasso pleitear estabilidade, compreensão e razoabilidade como condições para que se comece a contra-atacar o avanço bolsonarista – no momento, pelo contrário, é necessário disputar o caos, em si, ao mesmo tempo em que se mapeia e denuncia as manipulações ilegais do caos e a fabricação deliberada de caos por parte do conglomerado neoliberal bolsonarista.

Três exemplos fáceis: 1, o fato de haver agentes financeiros dos dois lados da bancada – comprando e vendendo ações, mas também comprando e vendendo estatais e programas de Estado – me parece inaceitavelmente conveniente para esses agentes, e estou seguro de que eles estejam, em algum momento, incorrendo em crime fiscal; o ministro da Educação, por exemplo, certamente está auferindo lucros vultosos ao sabor das crises na Educação, e acho altamente improvável que ele o esteja fazendo apenas de maneira legal. 2. Similarmente, tenho por certo que houve agentes ilegais atuando na campanha presidencial bolsonarista e que haja intervenção transnacional (e norte-americana) na própria administração – mas para que isso seja diagnosticado, provado e denunciado, é necessário que contemos com um know-howde programadores, hackerse analistas de sistema para proporcionais um Wikileaks do bolsonarismo. 3. Também estou certo de que parte do desmonte do aparato de Estado promovido pelo governo Bolsonaro ultrapassa as raias da legalidade – mas para apurar e denunciar esses abusos seria necessário que houvesse trabalho técnico acompanhando as movimentações tumultuadas e pouco transparentes na máquina.

São apenas três exemplos, haveria outros – a tensão entre armamentismo legalista, apoio ao policiamento ostensivo e agressivo, pauperização sistemática e retirada de garantias de seguridade seria mais um digno de atenção, a que talvez retorne num próximo texto.

O problema crucial para o qual estou apontando é que é necessário compreender a política de governo Bolsonaro como política, independente de quão perturbadora ela possa parecer; independente do ruído, das ofensas, obscenidades e do palavrório, há movimentos políticos acontecendo – se eles não são sistemáticos e programáticos, nosso compromisso segue sendo apurar sua dinâmica, observar seus limites, denunciar seus abusos e organizar oposição, resistência e retomadas. Nossa maior fraqueza no atual contexto, até onde posso ver, é que boa parte do engajamento crítico ao governo Bolsonaro tem vindo de setores pouco qualificado para o trabalho focado e técnico – a maior parte das críticas se esgota em análises de conjuntura e apontamentos programáticos (eu mesmo sou representativo dessa tendência). Acontece que nesse momento, precisamos urgentemente de especialistas em tecnologia e programação, especialistas em análise financeira e especialistas em administração pública – para entender como o caos está sendo cultivado, de forma a denunciar as ilegalidades, com uma mão, enquanto com a outra nos reapropriamos do poder criativo do caos.

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O Direito Achado na Rua como horizonte democrático-participativo: do espaço institucional à rua

24 de maio de 2019 by Observatório

Renata Carolina Corrêa Vieira

José Geraldo de Sousa Junior

Há dias (entre 24 e 26 de abril deste ano), contra todas as ameaças e o simbólico repressor, realizou-se em Brasília, em plena Esplanada dos Ministérios, o XV Acampamento Terra Livre, mobilização indígena anual,  “para dizer ao Brasil e ao mundo que estamos vivos e que continuaremos em luta em âmbito local, regional, nacional e internacional”, porque  “Nossa história não começa em 1988! Marco Temporal Não! Estamos aqui mobilizados para dizer ao Brasil e ao mundo que estamos vivos, que continuamos em luta pela conquista e defesa dos nossos territórios e de políticas públicas que respeitem nossos modos de ser, que resistiremos custe o que custar. Seguiremos dando a nossa contribuição na construção de uma sociedade realmente democrática, plural, justa e solidária, por um Estado pluricultural e multiétnico de fato e de direito, por um ambiente equilibrado para nós e para toda a sociedade brasileira, pelo Bem Viver das nossas atuais e futuras gerações, da Mãe Natureza e da Humanidade”.

Em 2018, o então candidato hoje Presidente da República anunciou: “vou acabar com todo ativismo no Brasil”. Desde então os registros são contundentes, no plano das políticas de gestão e de inciativa legislativa, fortes na criminalização do protesto e da reivindicação de direitos e na reconfiguração das categorias e dos institutos que orientam as atitudes e o comportamento dos agentes públicos, numa clara inversão de valores a partir do que a propriedade volta a prevalecer sobre a vida (sugestão de defesa armada do latifúndio) e os bens sociais são subjugados à lógica econômica com a mercadorização (saúde, educação) e a privatização do público (transferência para o privado da infraestrutura de bens econômicos, dos equipamentos e dos serviços de interesse social) com o desmantelamento da base política de participação, de deliberação, de avaliação e de controle social previstos na Constituição.

Contudo, essa clivagem alienadora da soberania nacional e das reservas estratégicas de apoio social, não se fará sem que a esse movimento entreguista e vicário seja fortemente inibido por meio de respostas igualmente contundentes dos movimentos sociais e de articulações mobilizadas das organizações sociais.

Assim é que já se põem na rua, em protesto, estudantes, professores e seus segmentos de apoio, contra as iniciativas de cortes e de redução dos investimentos e das inversões orçamentárias de financiamento e de fomento da educação, da ciência e da tecnologia. Se a institucionalidade se reduz como espaço político, a rua passa a ser o lugar de protagonismo para afirmar a cidadania e os direitos.

Com sua presença orgulhosa e consciente, as comunidades indígenas brasileiras confrontaram a hostilidade de uma governança encastelada na desfaçatez de sua vassalagem a uma agenda ultra-neoliberal, e com a capacidade instituinte de suas organizações –   Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Mobilização Nacional Indígena (MNI) –reafirmaram o seu “compromisso de fortalecer as alianças com todos os setores da sociedade, do campo e da cidade, que também têm sido atacados em seus direitos e formas de existência no Brasil e no mundo” e de seguir dando a sua “contribuição na construção de uma sociedade realmente democrática, plural, justa e solidária, por um Estado pluricultural e multiétnico de fato e de direito, por um ambiente equilibrado para nós e para toda a sociedade brasileira, pelo Bem Viver das nossas atuais e futuras gerações, da Mãe Natureza e da Humanidade: Resistiremos, custe o que custar. Não é nesse governo que os povos indígenas vão baixar a cabeça!”.

E se nesse movimento dialético social do direito se reconhece o protagonismo dos sujeitos coletivos, representados aqui pelos povos indígenas, conforme temos sustentado nesta Coluna, é a partir do referencial teórico denominado O Direito Achado na Rua que se apresenta um horizonte que aponta novas alternativas para a emancipação e a construção de um direito como liberdade em meio a este cenário de desmonte de direitos e consolidação de um estado colonizador.

Não se trata aqui, como adverte Marcelo Semer, de usar o álibi da voz das ruas, num processo que sirva de componente perigoso para dar curso a vocações iluministas e autoritárias de memória cruenta no curso da história, mas, como ele próprio adverte, de zelar pela Constituição.

Cuida-se, antes, de recuperar democrática e legitimamente o espaço publico, a rua, e de dar atenção ao quadro de “disputas hermenêuticas” pela hegemonia narrativa das promessas constitucionais, atraindo para o palco da política de modo instituinte o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, para lhes atribuir nova institucionalidade, as divisões e os conflitos da sociedade brasileira. Dar conta, ao final, que os direitos e as subjetividades que lhes dão concretude “não são quantidades, mas relações”, e que, portanto, não podem ser esvaziados de sentido pelo seu reconhecimento apenas formal e enumerativo, nem na legislação, nem na jurisprudência, nem pela manifestação delirante de um salvador da pátria, de um Führer ou de um messias que se substituam aos processos de legítima organização social da liberdade, na medida mesma da transformação da  multidão transeunte em povo organizado.

Mesmo em sede de interpretação da Constituição, pode-se conferir definição jurídica diferente à realidade fática sob julgamento. Exemplo disso é o voto paradigmático, em seu refinamento técnico ou seu profundo sentido humano, proferido pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, quando do julgamento no STJ do habeas-corpus no. 4.399-SP, em que foram pacientes Diolinda Alves de Souza e outras lideranças do MST.

O Tribunal como é sabido, e como se pode ver do acórdão a cargo do relator ministro William Patterson, concedeu a liberdade aos pacientes. Em voto de larga repercussão, inclusive com divulgação próxima a uma dezena de idiomas, o ministro Cernicchiaro (que à época presidia a Comissão de Reforma do Código Penal), não perde de vista o conceito histórico no qual são designadas as circunstâncias factuais do tema em discussão. O ministro põe em relevo a condicionalidade da atuação das “chamadas instâncias formais de controle da criminalidade, sujeitas, segundo ele, à posição política, econômica e social da pessoa”.

Finalmente, como membro legítimo da comunidade aberta de realizadores da Constituição, pondera judiciosamente a condição prejudicial na qual se encontram os pacientes, reconhecendo que “as chamadas classes sociais menos favorecidas não têm acesso político ao governo, a fim de conseguir preferencia na implantação de programa posto na Constituição da República”.Sua decisão é descriminalizadora, acentuando novas dimensões da subjetividade jurídica em cujo âmbito Mauro Almeida Noleto situa “a titularidade de direitos em perspectiva emancipatória”. Decide, pois, “não poder ser considerado esbulhador aquele que ocupa uma terra para fazer cumprir a promessa constitucional da Reforma Agrária”.

Mas o Ministro disse mais em seu voto, depois configurado como voto condutor do acórdão porque ele foi designado redator por ter conduzido a divergência vencedora na decisão. Ele trouxe a crucial distinção, exposta já em 1996, ano em que a decisão foi proferida, entre o direito que é achado na rua, de modo instituinte, formulado por organização social legitimamente reconhecida, um movimento social no qual se inscreva um sujeito coletivo de direito (MST), e as vozes difusas da rua,na forma, diz ele, clamor público. Contrapondo à condição de classes sociais, com modo de atuação que lhes confere posição política, econômica e social, o Ministro ressalva que “ordem pública, clamor público precisam ser recebidos com cautela. Podem ser gerados artificialmente, para dar ideia de inquietação na sociedade. Clamor público, ademais, não se confunde com reações (as vezes organizadas) de proprietários de área que possam vir a ser desapropriadas para a reforma agrária”. No caso dos pacientes, “há sentido, finalidade diferente. Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja, a implantação da reforma agrária”, objeto de promessa constitucional.

Se por um lado temos o estado colonizador, racista e sexista, por outro temos a luta dos movimentos sociais que se posicionam frente às ameaças de seus direitos, garantindo a manutenção daquilo que está inscrito nas declarações de direitos humanos e reivindicando o protagonismo enquanto sujeitos coletivos enunciadores de seus próprios direitos. Portanto, voltemos à rua, como nos versos de Cassiano Ricardo, em Sala de Espera, “onde cada um de nós é um pouco mais dos outros do que de si mesmo”, “a rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo”.

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Nenhum Direito a Menos. Em Defesa da Constituição e da Democracia

3 de abril de 2019 by Observatório

Renata Carolina Corrêa Vieira
José Geraldo de Sousa Junior

Pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.

Na data de 23 de março do corrente ano, tornou-se de conhecimento público o Ofício-Circular N2 1/2019/CC/PR, de origem da Casa Civil destinado ao Sr. Ministro do Meio Ambiente. O teor do ofício causou espanto aos militantes, ativistas e organizações da sociedade civil que lutam pela causa socioambiental no Brasil. O documento sugere a extinção, adequação ou fusão de Comissões, Comitês, Conselhos, Grupos de Trabalho e assemelhados listados em anexo, com o objetivo de “aumentar a eficiência” das atividades desempenhadas pelo Governo Federal.

A justificativa seria de que “que tal medida se coaduna com o objetivo do Governo relacionado à diminuição da burocracia na Administração Pública, objetiva reduzir níveis e instâncias de decisões para viabilizar a modernização da gestão pública, de maneira a fomentar a eficiência, intensificar as atividades de políticas públicas e fortalecer os princípios administrativos da transparência e da economia processual e procedimental”.

Na lista anexa ao documento, destacamos um Conselho específico: o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), criado pela Lei 13.123, de 20 de maio de 2015, que incorporou a Convenção de Diversidade Biológica (CDB), tratado da Organização das Nações Unidas e um dos mais importantes instrumentos internacionais relacionados ao meio ambiente, assinado e ratificado pelo Brasil em 1998.

A recente lei que incorporou a CDB no Brasil foi fruto de um debate intenso no Congresso Nacional, e embora tenha sido construída dentro dos marcos da denominada Colonialidade do Poder, tese do escritor peruano Aníbal Quijano, (vide a tese de doutoramento de Pedro Brandão, Faculdade de Direito da UnB, 2018: Colonialidade do Poder e Direito: uma análise da construção do novo marco legal de acesso à biodiversidade (Lei nº 13.123/2015), a Lei assegurou algumas garantias a povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.

Uma das garantias da Lei é a criação de um Conselho, com participação da sociedade civil, (“setor empresarial”, “setor acadêmico” e “populações indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais”). Além de coordenar a elaboração e a implementação de normas e políticas para a gestão do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, o CGEN é responsável, também, pela repartição dos benefícios.

Os povos indígenas, as comunidades tradicionais e os agricultores/as familiares desenvolveram modos de vida particulares que envolvem um grande conhecimento sobre os ciclos naturais, os ciclos biológicos e dos recursos naturais, tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e até uma linguagem específica, que traduzem um outro tipo de relação entre o homem e a natureza (DIEGUES, Antônio Carlos. 0 mito moderno da natureza intocada. São Paulo: HUCITEC, 1996). Estes saberes são designados como conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Exemplos de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade são os conhecimentos sobre plantas, raízes, troncos, que envolvem desde suas propriedades à formas de manipulação que resultam em uso para fins medicinais, cosméticos, etc. Tais conhecimentos ancestrais são repassados de geração em geração de acordo com práticas, usos e costumes de cada povo.

Segundo a CDB, o acesso ao conhecimento tradicional de cada povo deve ser realizado respeitando-se dois princípios internacionais: o consentimento prévio e fundamentado e a repartição de benefícios. Não são poucos os casos de biopirataria e de acesso indevido a estes conhecimentos. Indústrias do ramo farmacêutico e de cosmético, não raro, utilizam-se de tais conhecimentos para criação de produtos, expropriando a comunidade de seu saber, tampouco dividindo os benefícios do lucro obtidos a partir de seus conhecimentos.

Nesse sentido é que a Lei da Biodiversidade criou o CGEN, que visa ampliar a participação da sociedade civil, e especificamente, dos detentores dos conhecimentos tradicionais para que possam atuar efetivamente na proteção de seus direitos. É nesse ponto que recai a investida do Governo Federal em retirar os direitos conquistados pelos povos e comunidades tradicionais, representando claramente uma ruptura democrática e violação às garantias constitucionais.

Segundo Luciana Tatagiba, os conselhos gestores de políticas públicas têm assumido um importante papel como espaço participativo desde a Constituição de 1988, representando uma importante vitória na luta pela democratização dos processos de decisão, já que são “espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais” (TATAGIBA, Luciana. Os Conselhos Gestores e a Democratização das Políticas Públicas no Brasil. In: DAGNINO, Evelina (Org.) Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 47-103).

Sob manto da “desburocratização e eficiência” estatal, a investida do Governo Federal se soma às já constantes ameaças internacionais e nacionais de setores do empresariado, que visam mercantilizar o conhecimento tradicional de povos e comunidades tradicionais, agora afetando diretamente a participação democrática de que esses povos possam atuar na preservação de seus direitos, assegurados constitucionalmente e por meio de tratados internacionais de Direitos Humanos.

Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, nesta e em quase todas as ações de intuito reformista, com a Constituição argüida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, sob a ilusão de uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, o tremendo interesse de apropriação do sistema constitucional-jurídico, em atentado à democracia, num modo de tradução, sem nenhuma sutileza, do que se tem denominado Estado de Exceção, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas, gerando por sua vez um estado de coisas inconstitucional.

Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar essa investida contra a Constituição e contra a Democracia, numa disponibilidade desnudada para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.

Por isso que Rudolf von Jhering, ao afirmar a Luta pelo Direito, insiste não ser “suficiente, portanto, ocupar-se do mecanismo exterior do direito, porque pode estar de tal modo organizado e dirigido que impere a mais perfeita ordem e que o princípio que consideramos como o mais elevado deva ser completamente desprezado”. Na sua metáfora, de nada adianta reconhecer-se o direito de passagem se se interdita marcar o chão com as pegadas do caminhante.

Se por um lado temos a retirada de direitos por parte do estado colonizador, por outro cresce a unidade da organização da sociedade civil, de pesquisadores e pesquisadoras, de ativistas em frentes de luta e resistência pela proteção dos direitos socioambientais, cujas reflexões tem indicado o fortalecimento de redes e espaços alternativos para além do Estado. Sigamos na luta.

Ninguém Solta a Mão de Ningúem.

Nenhum Direito a Menos.  Em defesa da Constituição e da Democracia.

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Sobre 31 de março: ditadura nunca mais!

1 de abril de 2019 by Observatório

Bianca Dias

A ditadura chegou em minha vida pelos destroços e ruídos encarnados em uma não-relação com meu avô paterno: pequenos encontros que disseram do que eu deveria abrir mão para alçancar alguma leveza e sensibilidade. No limbo entre o não-dito e o interditado, entendi que algo pavoroso acontecia e que a transgressão seria uma saída, um ethos a guiar minha existência.

Mineira de criação católica e assimilação rebelde, cedo compreendi que havia uma maneira fascista de se entrar na linguagem, de cifrar o mundo. Tive ajuda da minha mãe para que a saída religiosa acontecesse pela mística: ela me levou a encontros em que as pessoas falavam em línguas. Tive à disposição a loucura dos santos e uma biblioteca intrigante que dividia com meu pai. Era tudo muito absurdo e estranho, uma forma absolutamente incomum de ler o mundo e de habitar uma pequenina cidade da Zona da Mata com nome enigmático: Descoberto.

As ancestralidades espanhola e portuguesa somadas ao barroco mineiro ativaram uma relação com o excesso e com a dobra: lá onde escutei a palavra “tortura” inventei a vida e a alegria – demasiadamente e em vertigem. Se havia algo aterrador num imenso descampado que eu não compreendia, havia também uma pulsação de vida que me arremessava para fora a ponto de esquecer que meu avô era um simpatizante da ditadura, que fazia parte daquilo e que carregava no olhar uma crueldade apavorante. Lembrei disso mais tarde, só num depois, onde essa ameaça de retorno se colocou clara e quando o país em convulsão pedia por intervenção militar.

Diante do terror e da naturalização de uma violência, cavei uma maneira profundamente amorosa de estar no mundo, exortando a “promessa do bem” e da ordem aniquiladora da invenção, decidindo-me, ainda jovem e desavisada, pelo avesso de toda homogeneidade despótica, tomando para mim a democracia como tarefa de vida, como causa de desejo, encarnando na minha existência uma plasticidade e um amor ao não-sentido que me movem pela vida.

Meu pai me transmitiu algo de uma abissal relação com a arte e com a literatura, reconheceu e ativou em mim os restos da relação com seu pai, e é por esta firme e sólida razão que repudio e repudiarei sempre qualquer tentativa de se minimizar o que aconteceu e o que insiste em retornar.

Nesta contradição latente fui reescrevendo minha historia, mas a decisão implacável tomou minha vida quando meu pai, já em seu leito de morte, travou comigo uma última conversa de intensidade impalpável, dizendo baixinho perto do meu ouvido: “Quero que você possa fazer diferente de tudo que viu e ouviu”. Perguntei assustada: “Onde?”. Ao que ele respondeu: “Você saberá encontrar a sua resposta, à sua maneira”.

Hoje é 31 de março: o dia que não pode ser esquecido, que deve ser lembrado para que nunca mais aconteça. Afirmo, a partir da minha historia e do que pude muito tenazmente apreender, o meu desejo inabalável de inscrever algo novo perpetuamente. Acolho aquilo que foi possível ser transmitido no amor e na loucura e, no limite do impossível, o meu encontro decidido com a dimensão política que leva à experiência da diferença, com a possibilidade da liberdade como um bem inalienável.

Há pouco a dizer diante das barbaridades que estão sendo ecoadas por milhares de brasileiros. Meu silêncio respeitoso e profundo às vitimas da ditadura e a promessa inquebrantável de lutar pela espessura da vida, pela possibilidade aguda da alteridade.

Devemos responder simbolicamente ao horror, tocar o real para, no desvio, encontrar o tremor da vida que não se deixa aniquilar nunca. Pela memória de todos que lutaram pela nossa possibilidade – ainda que precária – de liberdade, deixo a lembrança do essencial num verso de Wislawa Szymborska:

Somos filhos da época e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas diurnas e noturnas, são coisas políticas.

Então, amigos, escrevamos com a força de nossos corpos, gritemos com a potência do comum de nossas vozes: ditadura nunca mais!

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Dilemas democráticos da corrupção sistêmica

1 de abril de 2019 by Observatório

Mariana Mota Prado

A literatura acadêmica sobre corrupção tem cada vez mais se dedicado à análise da corrupção sistêmica. O conceito, em “economês”, é que corrupção é resultado de um equilíbrio estável, onde a maioria das pessoas são corruptas. Os economistas chamam isso de equilíbrio estável porque ainda que todas as pessoas prefiram viver sem corrupção, elas encontram-se imersas em um sistema que não permite que isso ocorra.

Por exemplo, um indivíduo imerso em um país com corrupção sistêmica precisa pagar propina para conseguir tratamento médico, pra garantir uma vaga para os filhos em uma escola e para conseguir um emprego. Ainda que o individuo se oponha moralmente a isso, ele não tem como recusar o pagamento dessas propinas. Fazê-lo resultaria apenas em sua completa exclusão do tecido social. Esse problema aflige países do leste europeu e muitas nações africanas, mas a maioria dos cidadãos brasileiros não encontra as situações descritas acimas com regularidade.

O problema do Brasil é grande corrupção. Ou seja, corrupção em contratos governamentais, obras públicas, financiamento de campanhas, etc. É possível descrever esse problema como corrupção sistêmica, na medida em que é impossível concorrer em uma eleição ou participar de uma licitação sem pagar ou receber suborno. Ou seja, a ideia é a mesma: os agentes não têm escolha a não ser engajarem-se com corrupção, mas nesse caso se aplica a agentes políticos e grandes empresas, e não ao cidadão comum.

Sendo grande ou pequena, o problema da corrupção sistêmica é o mesmo: é um equilíbrio estável, do qual é muito difícil sair. Para entender a complexidade do problema, imagine uma pessoa que vive em uma sociedade na qual as pessoas nunca chegam na hora. Essa pessoa pode mudar seu comportamento individual, e chegar pontualmente para reuniões. Todavia, o único resultado é que ela vai ficar plantada esperando os demais chegarem. Ou seja, a não ser que todos mudem seu comportamento ao mesmo tempo, não é possível sair desse círculo vicioso. Se um único agente mudar seu comportamento, o restante do sistema continua a funcionar como antes. E a pessoa que decidiu ser pontual (ou não pagar propina) vai arcar com os custos disso.

Obviamente, tudo isso pode ser resolvido com regras. Por exemplo, uma empresa poderia decretar que os funcionários que chegarem atrasados a reuniões serão punidos com um desconto no salário. E se eles se atrasarem cinco vezes serão demitidos. O desafio, todavia, é assegurar que a punição seja aplicada. Se há dentro da corporação uma cultura que aceita o atraso, os agentes que deveriam aplicar essas punições podem não se sentir compelidos a fazê-lo de maneira consistente e efetiva. Isso, por sua vez, poderia minar a efetividade da iniciativa.

Se transferirmos a discussão para o plano da corrupção sistêmica, o problema fica ainda mais complicado. Primeiro, diferentemente de pontualidade em reuniões, é difícil detectar corrupção. Portanto, a probabilidade de que esses atos continuem sem punição é alta. Diferentemente de outros crimes, no qual há uma vítima que pode relatar o ocorrido para as autoridades, a vítima aqui (o contribuinte) nem sabe que foi roubado. E as partes que participaram do ato têm incentivos para escondê-lo. Portanto, a simples aplicação da punição, em si, já é um desafio. Mas mais do que isso, é difícil mudar as regras. Em países com corrupção sistêmica, com frequência há leis, decretos e regulamentos que poderiam se alterados para reduzir os incentivos e as oportunidades para que indivíduos se envolvam com corrupção. Todavia, em um ambiente de corrupção sistêmica, quem faz as leis são as mesmas pessoas que se beneficiam da corrupção. Portanto, os incentivos para muda-las é mínimo.

Um bom exemplo dessas dificuldades é a lei de organizações criminosas (Lei 12.850/13). Essa lei criou a delação premiada no Brasil e acabou sendo um dos grandes instrumentos usados pela Lava Jato. Para entender a importância dessa inovação, a economia fornece um conceito importante: o dilema dos prisioneiros. Imagine que dois suspeitos estão em uma delegacia, sendo interrogados em salas separadas. Ambos sabem que, se confessarem, vão para a cadeia. Se ficarem em silêncio, a polícia não tem provas e eles saem em liberdade. O incentivo é que eles fiquem em silêncio. Todavia, com a delação premiada, a polícia pode oferecer a quem confessar primeiro uma pena atenuada, ou mesmo liberdade. O resultado é uma mudança de incentivos. Ambos sairiam em liberdade se ninguém falasse. Mas como eles não sabem o que o outro vai fazer, é mais seguro ser o primeiro a confessar.

Se os membros do Congresso brasileiro tivessem visto que eles seriam as principais vítimas dessa lei, provavelmente não a teriam aprovado. Todavia, como mostra Fausto de Assis Ribeiro, a lei foi apresentada como uma iniciativa para combater o crime organizado. Os legisladores aprovaram, pensando que o instrumento seria primordialmente utilizado para combate ao tráfico de drogas. E, assim como na lenda do cavalo de Tróia, se surpreenderam quando o objeto supostamente inofensivo se voltou contra eles. Ou seja, se a legislação tivesse sido apresentada como um mecanismo de combate a corrupção (ou se os membros do legislativo tivessem antevisto seu potencial uso para esse propósito), há uma grande probabilidade de que não tivesse sido aprovada.

Otimistas poderiam argumentar que o sistema democrático pode resolver o problema. Cidadãos, imersos em um sistema que eles não aprovam, e cansados de arcar com os custos da corrupção, votariam em uma nova liderança. Essa geração renovada de políticos, por sua vez, poderia renovar o sistema como um todo.

Infelizmente, o sistema democrático não oferece uma solução, por três razões.

Primeiro, o voto não é unidimensional. Talvez o candidato corrupto seja o que tem a política econômica preferida do eleitor. Para alguns eleitores, eliminar corrupção pode ser prioridade. Para esses, votar no candidato honesto é mais importante que a política econômica. Mas para outros, emprego e estabilidade econômica pode ser a prioridade, e a preocupação com a corrupção passa para o segundo plano. Segundo, os eleitores podem decidir não priorizar o combate a corrupção por falta de alternativas. Ou seja, pode haver uma crença (fundada ou não) de que todos os candidatos são corruptos. Essa crença automaticamente faz com que a preocupação com corrupção passe para o segundo plano. O pressuposto é que corrupção sistêmica não permite que ninguém consiga ser bem-sucedido sem “entrar no jogo”. Ou seja, as regras de financiamento de campanha e o sistema eleitoral não permitem que candidatos honestos ganhem a disputa. Por fim, algumas pesquisas mostram que acesso a informação sobre corrupção não influencia mudança de voto, mas sim afeta a probabilidade de os eleitores irem as urnas. Ou seja, os eleitores mais informados são também os que seriam os menos inclinados a exercer seu direito de escolher seus líderes. Curiosamente,segundo um estudo, isso ocorre mesmo no Brasil, onde o voto é obrigatório.

Como Wilson Franco descreveu em um post nesse blog, uma das soluções para esse problema seria “reformatar o disco rígido”. Isso é frequentemente descrito como a solução “big bang”: vamos começar tudo de novo, do zero. Há, todavia, poucas oportunidades na história em que tal opção é viável. Revoluções podem criar tais oportunidades. Na Geórgia, a Revolução Rosa retirou o partido que estava no poder e o novo governo demitiu toda a força policial, que era conhecida por ser uma instituição corrupta. Todavia, oportunidades como essa não se concretizam todo dia. E nem sempre a história tem um final feliz: a nova polícia na Geórgia acabou sendo vista como violadora das leis e dos direitos dos cidadãos e o governo revolucionário acabou caindo também.

Uma outra alternativa viria de fora. Se o sistema todo está contaminado, ter um agente externo a cargo do combate a corrupção pode ser uma solução. A Guatemala aceitou uma agência de combate a corrupção da ONU (CICIG),que era independente e dava suporte para o ministério público e a polícia local. Todavia, em 2018 o Presidente da Guatemala decidiu não renovar o mandato da agência. Há motivos para acreditar que a decisão foi motivada pelo fato de que as ações da agência estavam ameaçando a elite política do país. Isso ilustra, mais uma vez, que quem faz as regras não tem incentivos para aceitar reformas que ajudem a combater corrupção.

Fora isso, as alternativas são mudanças pequenas, complementares, que podem gerar resultados no longo prazo. Um órgão independente sempre é um bom começo, mas não há garantias. Se esse órgão não tem como mudar leis e regras, provavelmente será pouco efetivo sem mudanças estruturais (especialmente legislativas e do sistema de governança). E para tornar uma história pouco esperançosa em algo ainda pior, uma análise empírica sugere que jovens democracias tem altos índices de corrupção.

Todavia, isso não é uma razão para desistir da democracia. No longo prazo, o sistema democrático tende a reduzir corrupção. Portanto, resta-nos achar maneiras de garantir que nosso sistema democrático sobreviva a esse período de turbulências e tenha forças para continuar a procurar formas de combater esse mal que é a corrupção sistêmica.

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4 dicas para não ser um alienado

1 de abril de 2019 by Observatório

Wilson Franco

As primeiras semanas de governo Bolsonaro têm sido intensas. Dentro da bolha por onde eu circulo, o clima é de revolta, estupefação e risos nervosos; não parece haver consenso em parte alguma a respeito do que está se passando, mas a ênfase nos entendimentos críticos oscila entre diversionismo e amadorismo, submissão olavista, militarista e/ou paramilitarista, conservadorismo e autoritarismo, retrocesso reacionário e avanço neoliberal, entre desastre despreparado e firehosing pós-verdade.

Um olhar mais detido sobre as notícias indica que a leitura mais precisa provavelmente concilia esses fatores todos num sistema complexo – mas não acho que algum de nós vá poder articular uma compreensão crítica desse tipo tão cedo sem recair na teoria da conspiração. O que proponho nesse texto, então, é algo bem mais simples e circunscrito: gostaria de compartilhar com o leitor posicionamentos possíveis para minimizar o efeito dispersivo que a torrente de notícias impactantes traz, pensando que com isso será possível construir um engajamento mais claro e (potencialmente) mais contundente e efetivo.

Por que acho que isso é pertinente? Explico: a maioria das pessoas com quem tenho interagido (e a maioria dos leitores que imagino para esse texto) têm algumas características em comum: um posicionamento alinhado à esquerda, sem inserção consistente em grupo político organizado, em busca de fontes de informação sólida e da construção de um entendimento crítico abrangente; um ponto que parece crítico para atingir esse propósito é que as fontes de informação passaram a ser muito evidentemente marcadas por seus vieses, e a fonte privilegiada de acesso à informação a que as pessoas têm recorrido passaram a ser muito evidentemente marcadas pelas filter bubbles (bolhas de acesso a dados construídas por algoritmos). O que quero dizer com isso? A pessoa não concorda com o bolsonarismo e o governo Bolsonaro, e procura se manter informada, mas percebe que o jornal na televisão é enviesado; as notícias que chegam a ela via Facebook, Twitter e Instagram são enviesadas; os sites de notícia são enviesados. Percebe, enfim, que quando vai tentar se informar tudo que encontra são denúncias veiculadas de forma agressiva por pessoas que pensam como ela, e isso vai tornando-a mais irritadiça e descrente, desejando a despeito de si mesma virar as costas para tudo isso.

Resultado? Muita gente já desistiu de se informar: em tempos de pós-verdade e cultura do ódio, a alienação voluntária vai parecendo uma saída honrosa. Acontece que isso é um problema imenso para o funcionamento de nossa (vamos chamar de) democracia. Afinal, a democracia implica em um regime onde o poder emana do povo, tendo nas autoridades seus representantes por delegação; ora, se os representantes não nos representam, se o governo não nos contempla ou satisfaz, se tudo que vemos é indignação inútil e nossa inclinação é virar as costas e cuidar de nossas vidas individuais, de onde está emanando o poder? Certamente não é do povo.

E o que nós podemos fazer? Tenho algumas indicações nesse sentido, e esse é o ponto principal do que tenho a dizer aqui. Se você não consegue entender o que está acontecendo, não sabe como fazer para se informar nem muito menos como se engajar para se opor àquilo que te desagrada, o que você pode fazer?

1. Entenda seu lugar em nossa sociedade – o Brasil é uma sociedade complexa e qualquer tipologia demográfica tem limitações, mas é importante evitar se alienar ou se iludir a respeito de seu lugar na sociedade. Tomo meu caso como exemplo: tenho plena consciência de que, para praticamente todos os parâmetros relevantes, eu sou mais parte do problema que da solução: sou branco, homem, cis, hétero, nascido, criado e pertencente à classe média alta; não tenho formação política, engajando-me no debate enquanto diletante auto-didata esclarecido; alinho-me basicamente nos termos da esquerda universitária social-democrata soft; nada disso depõe a meu favor. Não digo isso por sanha auto-acusatória nem nada do gênero: digo isso porque é importante saber de onde parto, se quiser me engajar de forma que não seja hipócrita e/ou cínica e/ou alienada – perceber essas características de minha inserção de base me ajuda a evitar fazer o que a maioria das pessoas “como eu” têm feito, me ajuda a tentar ser eficaz em meus posicionamentos em termos daquilo em que acredito. Lançar-se em discursos e bravatas sem pensar criticamente sobre seu lugar em nossa sociedade é garantia de atuar a partir de uma base alienada.

2. Organize e, se quiser e puder, aprimore sua base analítica – a maioria de nós não é especialista em política, não é profissionalmente amparado para compreender o que está se passando; e nenhum de nós é obrigado a se profissionalizar para tomar parte em debates. Dentro das características de nossa inserção, limites e disponibilidade, no entanto, é importante qualificar ao máximo nossa posição. Exemplo: eu não sou economista, nem administrador público e, portanto, não tenho competência profissional para avaliar o estado da Previdência brasileira; mas isso não me condena a comprar os discursos como eles me chegam. Assim, sempre que recebo uma notícia, tento ser o mais crítico possível com aquilo, tento avaliar quão embasadas estão as afirmações, quão claro e esclarecedor é o tratamento do assunto; se por algum motivo me parece que uma ou outra afirmação é rasa ou performática (afirma algo sem dizer de onde tirou aquilo), não a repito sem checar sua pertinência e precisão. Isso não quer dizer que ela é falsa: só quer dizer que não devo acreditar nela enquanto fato. Pensando assim, evidentemente, perceberemos que somos muito, muito ignorantes – é difícil lidar com isso, mas é importante. Eventualmente teremos condição de pesquisar e aprofundar um assunto, e nesse ponto estaremos felizes com nossa capacidade de entendimento – e essa conquista é valiosa e imprescindível. E, para além disso, deixaremos de ser matracas repetindo acriticamente palavras de ordem e bordões vazios – o que será uma vitória para nós, para todos à nossa volta e, quem sabe, para o fortalecimento de nossa corrente oposicionista tão combalida e perdida em falas vazias e disputas de castelos de cartas ultimamente. Retomando meus exemplos pessoais: não pude estudar muito sobre a Previdências, mas acabei estudando um pouco sobre o sistema legislativo brasileiro, e isso tem me sido muito útil para entender melhor as notícias (estudei usando um portal de educação cidadã vinculado ao Senado – os cursos são EAD e gratuitos – também são relativamente fracos, mas são melhor que nada); ainda não tenho posição formada acerca de a Previdência “estar ou não quebrada”, mas já não caio nas bravatas mais óbvias nesse campo.

3. Situe-se em meio à disputa de narrativas – a imensa maioria das pessoas hoje se informa através da internet; os recursos principais são WhatsApp, redes sociais e, de forma muito menos frequente, através de portais de notícias. Essa forma de obter informações é ruim, pura e simplesmente: promove alienação, atrapalha mais que ajuda; mas não se informar em absoluto seria pior, e sabemos que não retomaremos a mídia impressa como forma de base (que não era grande coisa pra começo de conversa). A questão de um milhão de dólares, então, é “como melhorar o uso dessas ferramentas como fonte de informação?”. Penso que: 3.1. descarte tudo que lhe chega via WhatsApp (ou, se ficar muito intrigado, busque pela notícia via Google e cheque a consistência da notícia – mas, já adianto, é um trabalho de pesquisa difícil, nível TCC, no mínimo); 3.2. não se permita pensar que entendeu alguma coisa porque leu a chamada de uma matéria: chamadas manipulam, o mínimo necessário para entender uma notícia é ler o texto com atenção; 3.3. perceba de onde vêm suas fontes e fique constrangido a fazer algo a respeito se perceber que todas elas têm a mesma “marca d’água” ideológica: isso significa que você não está se informando, está comprando um discurso pré-formatado. Ou seja: se você se informa via basicamente a partir de Diário do Centro do Mundo, Jornal 247, Intercept, Fórum e Carta Capital, o que você tem não é notícia: é uma plataforma ideológica, diametralmente oposta a quem se “informa” lendo República de Curitiba e O Antagonista; Por fim, 3.4. construa uma base crítica e ponderada de acesso a informação: procure compor suas formas de acesso à informação em meio à miríade de coletivos, grupos, canais e ventures produzindo conteúdo sobre política e sociedade. Tudo que você tem que fazer para isso é personalizar seus feeds e buscar compor o que lhe chega considerando as formas como consome conteúdo – seja via sites, redes sociais, podcasts, rádios, seja como for, é possível equilibrar suas formas de acesso à informação. A ideia, evidentemente, não é compor um “zoológico midiático” em que você leria Carta Capital e O Antagonista e tweets de Bolsonaro e do Boulos misturados – a ideia é você articular análises de comentaristas com os quais se identifica, fontes de notícias alinhadas a seu interesse e ideologia, fontes de notícia comprometidas com o jornalismo “clean” (os melhores exemplos nessa linha são os portais Nexo e Piauí e o coletivo A Ponte) e fontes de notícia em tempo real (como Folha, Globo, Estado, BBC, El País etc). O que eu fiz nesse contexto? Deixei de buscar “informações” no Facebook; passei a ler diariamente o Nexo; acompanho no YouTube os canais da BBC, do Intercept e do GGN; ouço os podcasts do Foro de Teresina, Durma Com Essa e Petit Journal; acesso diariamente as páginas da Globo e, eventualmente (em nome da etnografia) R7 e Folha de São Paulo; (tentei Twitter, mas não achei tão bom quanto dizem). Muita coisa me escapa, certamente, mas integrei essas mídias com facilidade em meu dia-a-dia e sinto que consigo acompanhar melhor o desenrolar dos acontecimentos e a concatenação das notícias em um panorama crítico mais ou menos abrangente.

4. Descubra o que te é possível (para além da inércia) – sendo honestos, sabemos que a maioria de nós não vai se filiar a nenhum grupo, coletivo ou partido para fazer oposição da forma clássica; estamos inconformados, achamos inaceitável e tudo o mais, mas não vamos mudar radicalmente nossas vidas para fazer a diferença. Se você pessoalmente vai fazer isso, acho ótimo e dou todo o apoio – mas aposto dois reais que a maioria dos que leem esse texto não vai, e acho urgente pensarmos nos que elas (nós) podem(os) fazer. Estou certo de que, mesmo fora do engajamento de alta intensidade, engajamento político é possível. Alguns de nós conseguirão agir de forma efetiva nos campos em que atuam – no meio psicanalítico, por exemplo, há muito trabalho de incidência política direta ou indireta sendo feito (tenho feito o que posso, nos meus termos, nesse sentido). Alguns de nós agirão de forma efetiva nas redes por onde circulam, sustentando discussões úteis e pautando pontos estratégicos em suas redes e bolhas (o truque aqui é não cair nos discursos de ódio e não ser um postador de textão irrelevante – mas há caminho nesse sentido). Alguns participarão de manifestações e assembleias; alguns farão oposição sistemática em seus grupos de família no WhatsApp e aos domingos; alguns frequentarão grupos progressistas; alguns contribuirão financeiramente com grupos internacionais de vigilância e defesa dos direitos humanos. O ponto principal aqui é escapar à alienação voluntária: muitos de nós têm se deixado acomodar em meio a seus posts e comentários reclamentos, precisamos urgentemente mudar essa tendência.

Essas coisas não vão evitar que você se aliene – mas provavelmente vão tornar você um pouco menos manipulável, e um pouco mais bem situado para se engajar como possa.

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Resgatar a função utópica da palavra: a história que a história não conta

11 de março de 2019 by Observatório

Bianca Dias

Ainda sob a intensa alegria vivida com o desfile da Estação Primeira de Mangueira, acompanhei a apuração dos resultados do carnaval carioca em estado de puro arrebatamento. Além de ter minha própria história reescrita ali, foram também reavivadas minha relação de êxtase com o samba e com a escola, através das lembranças diversas das manhãs de sábado em que, com meu pai, escutava os discos de samba-enredo. Localizando a história da escola em cada letra, aconteceu algo improvável e da ordem do milagre: do singular ao comum, as multidões se tornaram todas verde-rosa. A bandeira, símbolo do ufanismo verde e amarelo nos foi devolvida: no lugar de ordem e progresso a invocação de todas as vozes inaugurais: índios, pretos e pobres numa bandeira verde e rosa.

Uma subversão da linguagem passou a habitar o espanto de nossos corpos, valorizando a função utópica da palavra num samba que é um poema, que traz em seu seio versos apagados dos livros.

No belíssimo livro O Arco e a Lira, Octavio Paz nos apresenta a dimensão poética do mundo, com a poesia mostrada como um território em que se pode reconciliar vida e morte, dando potência de vida ao morrer e consciência da própria temporalidade ao viver. É notável também aqui a articulação entre mito, poesia, temporalidade e história num samba que lembra os anos de chumbo, Marias e Marielles, mulheres, tamoios, mulatos e um país que não está no retrato, criando e recriando a linguagem, reconfigurando, através dos múltiplos sentidos que emergem da palavra viva, uma ética e uma estética, assim como propõe Octavio Paz em sua chave de compreensão da experiência poética e da poesia em suas múltiplas possibilidades de linguagem e imaginação.

No samba, “o avesso do mesmo lugar” se revela como o próprio núcleo do fazer poético: assinalando uma força única, que não deixa de levar em conta seus limites, as impossibilidades e uma relação com o real, mas que também possibilita o trânsito entre a vida e a morte, escrevendo uma nova história aberta ao enigma, ao imprevisto, ao inesperado. A poesia e a coragem que possibilita uma passagem e uma abertura na dureza das coisas, um samba que é poema e oração: escrita de um passado que não cessa de se escrever com suas feridas e abismos. Na teia simbólica de uma alegria conquistada na luta, um samba nos indica o caminho da coragem e a poesia e instala um sentido novo ao tempo: “Brasil, chegou a vez” de ouvir a escrita de um silêncio, de encarnar todos os corpos que escreveram o país e que sobrevivem às invasões, saques, violências e silenciamentos.

A maneira como o samba nos convida a escutar – Brasil, meu nego, deixa eu te contar – é uma maneira de tocar um senso de coletividade novo, que expande, transfigura e transgride qualquer aprisionamento da palavra. A palavra circula, a palavra passa a ser de todos. “Brasil, o teu nome é Dandara”: um grito para além do sentido, a possibilidade de muitos outros nomes ainda serem escritos.

O risco, o corte, o rasgo.

De um país destroçado surge um poema. Através da poesia, em sua margem – borda, litoral – algo que se apoia na letra, mas está para além dela, algo que transborda todos os sentidos prévios entre palavra e imagem, um resto que a palavra insiste em querer tocar: a ausência ou aguda presença de Marielle que emerge exata e viva, pulsante, vibrante e resistindo à morte em um tempo de desencanto.

Um samba que sabe fazer da incerteza e do tremor uma aposta, uma forma de transcendência, um espaço de risco em que o encontro dos corpos com o incomensurável se torna possível, como um fundamento que se forja no existir e na constatação da própria temporalidade e contingência. Um poema que resgata um sentido profundo de resistência: não declinar nunca de uma voz e de uma dicção próprias e, permanecendo nessa fissura instável, inventar um mundo para além do intolerável.

A história que a história não conta foi reescrita com a força tão delicada quanto violenta de uma volta na linguagem, um momento sagrado como intuiu Bataille, porque inútil, dispendioso, excessivo. Uma celebração da vida que investe contra os limites do interdito e abre espaço para uma festa transgressiva na linguagem que pretende “saltar” para fora de si – e incluir tanto todos os batuques e sons silenciados quanto o silêncio do inefável diante da existência.

Em um mundo sem pontos fixos, despedaçado, Octavio Paz disse que poesia é palavra irmã do mito que retoma a tarefa de articular o inarticulado, recuperando uma experiência de sacralidade por meio da palavra. Num Brasil estraçalhado reencontramos a afirmação do vivo da dimensão poética: “O ato poético mostra que o fato de sermos mortais não passa de uma das faces de nossa condição. A outra é: sermos viventes”.

E essa liberdade radical não veio do céu, nem das mãos de Isabel: houve quem por ela desse a vida. Que possamos, de fato, a partir de agora, tirar a poeira dos porões e abrir-alas a nossos heróis de barracões.

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A espartana democracia brasileira

11 de março de 2019 by Observatório

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

Conheço, como professor, a objeção que algum aluno sempre faz quando estudamos a democracia na Grécia antiga:

– Não era uma verdadeira democracia, professor, pois excluía os metecos, os hilotas e as mulheres;

Nunca adiantou redarguir que, naquele contexto histórico, a inovação de dar voz às pessoas, por razões distintas da conquista e da nascença, era revolucionária. Logo outro aluno reproduz o famoso vaticínio de Aristóteles:

–  A monarquia se degenera em tirania, a aristocracia, em oligarquia e o poder de muitos, em demagogia.

Um dia, porém, ouvi uma resposta mordaz a quem criticava o sistema de Péricles:

– Estamos no Brasil, no século XXI, e ainda temos nossos metecos e hilotas!

Tive então um vislumbre, qual Cassandra, do que gente do futuro pode pensar sobre o regime político que erigimos. É certo que quando olhamos para o passado não tão distante – a ditadura militar, por óbvio – respiramos aliviados com nossas eleições a cada dois anos, para todos os cargos, com nosso Judiciário independente, Ministério Público ativo e altivo e a liberdade de expressão e imprensa.

Ufa!

A resposta mordaz, entretanto, restou em meus pensamentos. Como negar que, com outros nomes, ainda temos nossos metecos e hilotas? E que, com o mesmo nome – mulheres – ainda convivemos com a desigualdade severa de representação política? Tomem-se os parlamentos brasileiros e veja-se que, neles, mal se alcança 15% de representação política feminina. Somente em 2018 a Bahia, onde se concentra a maior população negra fora da África, elegeu uma mulher negra para deputada estadual.

Há quem constate que a política de quota para as mulheres nas eleições proporcionais ainda não produziu resultados suficientes, propondo, ao invés de aperfeiçoamentos, a simples extinção da ação afirmativa.

Vendo a imagem de um conjunto de deputados, saí de Atenas sem sair da Grécia, ao perceber que temos uma democracia erigida e mantida por partidos tão masculinos como o exército de Esparta. Oxalá a desigualdade não nos leve a uma guerra do Peloponeso.

Como professor, dou voz aos alunos:

– É caso de separar metade das vagas do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas para as mulheres! – diz um.

– Não convém esquecer das Câmaras! – diz outra.

– E não podem ser apenas mulheres brancas!

– Nem homens ricos, com cabelo acaju e ternos mal cortados!

– Mas a Constituição proíbe a interferência na autonomia dos partidos. É errado obrigá-los a apoiar este ou aquele postulado. – Ouço um aluno redarguir.

– A não ser que usem recursos públicos! – diz outro.

Percebo que esse é um dos debates mais significativos sobre os rumos de nossa democracia. Minha contribuição é dizer que, com o sistema de listas abertas, as quotas de gênero ou de raça, se tornam de eficácia reduzida. Não há como obrigar os partidos a, de fato, apoiar com igualdade, todos seus candidatos e candidatas.

– Sim, de volta ao problema da democracia interna dos partidos – diz alguém. – Se houvesse, as mulheres, que costumam ser parte significativa dos filiados, resolveriam diretamente a questão.

É muito bom ser professor. Alunos dizem cada coisa! E cada coisa certa!

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Bolsonaro e a falência do falo

11 de março de 2019 by Observatório

Tomaz Amorim Izabel

Logo no fim da campanha eleitoral, o filósofo Vladimir Safatle foi um dos primeiros a apontar uma contradição fundamental entre a visibilidade das pautas e posturas de Bolsonaro. Enquanto qualquer pessoa razoável via com preocupação a ameaça que sua eleição significaria para grandes grupos da população, seu plano econômico foi passando quase despercebido. Os absurdos ocupavam páginas de jornal e redes sociais, de esquerda e de direita, enquanto o mais material, as propostas específicas para a economia, a reforma da previdência, ficavam como não dito. Não se tratava de acaso eleitoral, mas de cálculo preciso de sua campanha e de seu governo. Afinal, é melhor estar na mídia com pautas polêmicas, mas que encontram apoio em certos setores da sociedade (como tudo, hoje, que é associado à questão de gênero), do que relacionado a questões claramente impopulares como o fim do décimo terceiro, fim da estabilidade no funcionalismo público, fim de direitos trabalhistas, reforma dracônica da previdência, etc.

Assim, a pirotecnia de absurdos, insinuações e ataques diretos a grupos historicamente oprimidos, sua onipresença midiática, a barulheira de sua voz nos celulares de todo o Brasil contrastou e contrasta radicalmente com sua discrição, sua polidez, sua timidez em relação às suas ideias econômicas. (Como também se disse no WhatsApp, ele fala muito sobre gays, mas sobre economia ele diz que não entende). Esta estranha vocalidade não se reduziu à campanha eleitoral, como o vexame em Davos deixou claro. Bolsonaro e seus filhos falam sobre tudo, agridem a democracia e adversários, querem sabotar consensos políticos e educacionais de décadas, mas sobre as coisas que realmente importam, os dilemas do Brasil, seu desemprego, sua violência, sua saúde precária, sua educação básica insuficiente, eles se calam. Sobre economia, sobretudo, é outro quem tem que falar.

Quando se pensa toda essa candidatura, todo esse governo da perspectiva de gênero, arena, para bem ou para mal, em que ele se colocou e foi colocado desde o princípio, há então um sinal trocado, uma contradição gritante em relação a sua suposta virilidade. Talvez seja o momento de descer um pouco nesse lamaçal ideológico para entender a pretensão de poder que embebedou tantos eleitores no ano passado e ainda embebeda tantos apoiadores.  Como é possível que o grande líder, o grande pai, fale sobre tudo, menos sobre o poder de fato? Como compreender que por trás de um sisudo conservador nacionalista, há um alegre liberal com sanha privatizadora e abertura para todo o capital internacional?

Analisar este governo do ponto de vista de sua masculinidade não restringe a luta contra a sua agressão às minorias e maiorias como são mulheres e negros no Brasil. Isso porque, como Rafael Zacca lembra, em uma tentativa de traçar elementos importantes deste “fascismo tropical”, o poder se manifesta durante a maior parte da história deste país como poder patriarcal. Na casa grande, na caserna, na igreja, nas famílias, o poder foi sempre falado através de uma voz masculina e, quase sempre, branca. Claro que com um passinho para trás, com uma visão internacional mais ampla, percebe-se que por trás desta voz doméstica, há sempre uma voz mais forte, mais viril e mais branca – trata-se, afinal, de uma (ex-)colônia. O movimento do mercado internacional se mistura, assim, com a voz paterna, por trás de um grande homem há sempre um homem maior, por trás de um pai de família que já não consegue sustentar a casa sozinho (sustento do qual depende sua honra, como ensinou o pai antes dele) há um pai nacional que fala grosso sobre tudo (menos sobre economia), há um Paulo Guedes, que comanda a maior economia do continente seguindo as ordens de homens maiores e maiores até o falo supremo que, com o perdão da imagem, enraba a todos, o Pai Mercado. Infelizmente, essa orgia exclusiva para homens não tem nada de prazeroso. Todos gozam, mas em uma sublimação perversa, apenas através do falo imaginado do pai. Onde sou impotente, onde falha meu falo, meu poder econômico, meu reconhecimento público, onde eu não consigo mais agir com a potência que a (ex-)colônia patriarcal ainda espera de mim eu me empodero, ainda que por um breve momento, através de um falo maior imaginado que me preenche com um restinho daquele poder quase extinto. Eis a imagem viril das últimas eleições, o sistema hidrodinâmico de virilidade que vai aos poucos, a cada manchete de jornal, a cada recuada, ficando mais flácido. Do CEO de algum banco internacional, por Paulo Guedes, por Bolsonaro, para o coordenador regional de campanha, para o patrão, para o funcionário, para as mensagens sempre encaminhadas, nunca escritas por eles mesmos, para os grupos de WhatsApp de família, da igreja e do futebol: um grande enrabamento político em que cada um na sua vez abre mão da própria voz para que fale, de novo, o grande pai, o grande ausente. Para que fale o falo faltante em mim, que fale aquele outro, maior que o meu.

Claro, para que uma ciranda masculina com afetos tão homoeróticos funcione abertamente durante tanto tempo, é necessário uma camuflagem de proporções históricas e nacionais, camuflagem oferecida justamente pela ideologia profundamente homofóbica e misógina. É preciso odiar, punir quem ousar fazer abertamente o que nós fazemos de forma cifrada, escondida. Ai de quem trouxer a tona o que precisa ficar escondido. Uma declaração sintomática foi a do próprio Bolsonaro para um jornalista sobre afirmações de opositores de que ele deveria sair do armário: “O pessoal costuma dizer que meu armário é de aço”. Quer dizer que, afinal, ele está dentro de um armário?

Gênero e economia se juntam novamente não porque um é apenas distração para o outro. A crise do homem médio, o pai de família frustrado pela situação econômica, que se sente menos homem porque não consegue cumprir certos compromissos econômicos que seu pai antes cumpria (compromissos que, em outra economia, eram possíveis, aqui e no mundo) é o nervo onde a economia e a política se encontram neste momento histórico brasileiro com a questão de gênero. A contradição gritante da questão suspensa entre a materialidade do salário e a virtualidade da identidade está no fato de que, ao contrário do que os técnicos da misoginia propagam, os responsáveis não são a entrada das mulheres (brancas) no mercado formal de trabalho ou os modelos alternativos de família, identidade de gênero e manifestações afetivas não-normativas, mas justamente estes velhos homens por detrás que sussurram nos cangotes suas ordens a serem repetidas pelos pequenos homens enfraquecidos na ponta. É justo detrás, das próprias fileiras, que vem o bloqueio da possibilidade de “ser homem”, imperativo que pesa sobre cada homem que cresceu nesta sociedade profundamente patriarcal. Não a esposa que quer estudar e trabalhar, não os gays, não os negros que buscam cotas nas universidades, não Pabllo Vittar, mas o desejo de lucro dos investidores invisíveis que abaixam o salário, fecham fábricas, permitem a inflação, desmontam o sistema público de saúde e educação, e sussurram todas estas ordens para o presidente da república que tenta sussurrar agora para a grande horda masculinizada de seus seguidores: um atrás do outro. Seja homem, me siga para que juntos sejamos ainda menos homens juntos. Mas sem viadagem!

A imagem física de Bolsonaro e sua saúde frágil encarnam psicanaliticamente essa contradição quase como grande ato falho da história, como imagem mesmo do inconsciente coletivo desta masculinidade em plena decadência. Eis, justamente, um dos aspectos de sua sedução, não bastaria um filho com metralhadoras e ex-namoradas sexualmente insatisfeitas publicamente nas redes sociais, não bastaria um ex-ator pornô com problemas de disfunção erétil, é necessário também ser um pai decadente. A questão do poder, da reprodução dos filhos e do poder, em toda sua já quase impossibilidade, passa por aí. A imagem de Bolsonaro não é viril, forte, apesar da carranca e do medo de dar um abraço. Ironicamente, era Haddad quem representava muito mais o perfil de galã, o tipo de candidato bonitão que ganha voto tocando guitarra, andando de bike, desafiando o adversário para duelo em debate público, etc. A imagem envelhecida, adoecida, que fala gaguejando, que tem a expressão permanente no rosto de “como é que eu vim parar aqui”, a imagem decadente mesmo de Bolsonaro é o representante ideal deste falo que não funciona mais. Eis sua força de sedução. Daí se reconhecerem nele tantos homens. Ele, no fundo, é mais um destes falos falidos, destes que reivindicavam para si ocupar na sociedade uma posição de maior poder e, na decepção, no ressentimento permanente (mesmo depois das eleições!), se limitam a reproduzir as ordens do falo maior (privatize, diminua a aposentadoria dos velhos, marche, berre, invada a Venezuela), último contato desta versão triste de homem com o poder velho que eles foram ensinados a buscar.

Bolsonaro e esta masculinidade falida, ainda reivindicada por grandes grupos da população, homens e mulheres órfãos da ideia de grande pai, não entendem o que já é óbvio para praticamente qualquer jovem da geração que ocupou as escolas. Estes meninos, meninas, intergêneros e todas as variações de gênero e sexualidade que eles nos apresentam e apresentarão ainda, já sabem e nos ensinam que há outras formas de masculinidade a serem inventadas, que há outras formas de compartilhamento de poder, de formar famílias, de ser solidário e viver em conjunto que não passem por concentrar o poder, por sofrer sob o peso do poder e de sua ausência, resumo, no fim das contas, da situação atual. O poder, se for estritamente necessário que exista da maneira como existe hoje, pode ser dividido, diluído, compreendido em suas armadilhas e praticado coletivamente, atravessando as divisões de gênero, raça, classe. Estes meninos, principalmente, sabem que ninguém é mais ou menos homem pelo que pode prover, que prover não é masculino, que a ligação direta entre as duas coisas é ela mesma parte do problema da dificuldade de homens proverem para si e seus amados. Que apenas repensando a economia de outros pontos de vista é que se poderá viver melhor como homem ou tudo o mais que se for e quiser ser.

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Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil e o Voto Feminino no Brasil de 2019

11 de março de 2019 by Observatório

Maria Celina Monteiro Gordilho

Em janeiro de 2015, a Presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13.086, que “institui, no Calendário oficial do Governo Federal, o Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil”, a ser comemorado todo 24 de fevereiro. Também assinou o ato a então Ministra da Secretaria de Politicas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.

Leis instituidoras de datas comemorativas são uma ponte entre passado e presente. Além de possibilitarem a celebração de um acontecimento, fazem-nos relembrá-los em sua longa, média ou curta duração. Além disso, possibilitam atualizá-los, permitindo novas análises e estudos do fenômeno legislado.

É significativo presentificar a conquista do voto feminino e analisar a participação feminina no atual momento político brasileiro. A luta das sufragistas brasileiras esteve sempre relacionada com silêncios constitucionais. As Constituições anteriores a 1932 não excluíam expressamente o voto feminino, mas também não o admitiam expressamente. Assim, a interpretação mais favorável aos interesses dos donos do poder era excluí-las do jogo democrático, o que ocorreu na Constituição monárquica de 1824 e na republicana de 1891.

As mulheres não desistiram de seus interesses e tentaram, a partir dos silêncios constitucionais, o alistamento eleitoral. Todos os pedidos nesse sentido foram negados. Até que, na nova Lei Eleitoral do Estado do Rio Grande do Norte, incluiu-se uma disposição transitória em que constava, expressamente:

“Art. 17. No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”.

Foi assim que a professora Celina Guimarães Viana conseguiu alistar-se em Mossoró e fazer história ao se tornar a primeira eleitora brasileira em 1927, abrindo precedente para que outras mulheres do Estado pudessem se alistar, seja administrativamente, seja pela via judicial. Mas a história não seria favorável a essas eleitoras: após as eleições, o Senado descontou os votos femininos, considerando-os inapuráveis.

Persistentes, as sufragistas não desistiram e conseguiram ingressar legalmente nos quadros eleitorais do Brasil a partir do Código Eleitoral de 1932.

Getúlio Vargas consagrou constitucionalmente o direito ao voto feminino ao promulgar, em 16 de julho de 1934, uma nova Constituição. Porém, não era um sufrágio feminino universal – o art. 109 da Constituição determinava que “o alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar”. Ou seja, restringia a participação política a algumas categorias de mulheres. A mesma disposição viria na Constituição de 1937, sem, contudo, constar a obrigatoriedade de voto. Em 1946, finalmente, o alistamento e o direito a voto foram instituídos sem qualquer distinção de gênero, o que se repetiria nas constituições seguintes.

Embora tenham conquistado constitucionalmente o direito a votar e a serem votadas, a participação feminina na política é ainda desproporcional ao número de eleitoras e às demandas cidadãs. A primeira mulher a ser eleita foi Carlota Pereira de Queiroz, por São Paulo, para a Constituinte de 1933, sendo que Bertha Lutz foi eleita a primeira suplente pelo então Distrito Federal.

De 1932 para 2019, a participação das mulheres nas arenas políticas cresceu, mas continuamos longe de uma representatividade justa, de uma voz decente e altiva. A bancada feminina ainda é silenciada, em todos os níveis da Federação.

Desde 1932, elegemos (e depomos) nossa primeira presidenta. Desde 1932, atualizamos as leis eleitorais de maneira a estimular a maior participação feminina na política, com a obrigatoriedade de 5% de candidatas mulheres e a destinação de 30% do fundo partidário para essas candidatas. Mas os donos do poder (os homens, em sua maioria) continuam relegando as candidatas a meras coadjuvantes no palco da política. Basta citar as recentes denúncias das candidatas “laranja” do PSL, que receberam valores dentro das regras eleitorais, mas tiveram resultados pífios nas eleições. A linha de investigação entende que as candidatas foram usadas como uma maneira para o partido receber mais recursos financeiros, para então destiná-los aos candidatos de outros gêneros.

Já que no último domingo, 24 de janeiro, foi dia de comemorar o dia da conquista do voto feminino no Brasil, de que maneira podemos prestar homenagem a nossas antecessoras, que tanto lutaram para constitucionalizar nossa atuação política? Fiscalizando a aplicação correta das regras eleitorais e participando cada vez mais para a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária.

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30 anos – o que se passou?

11 de março de 2019 by Observatório

David F. L. Gomes

Em meu texto anterior publicado por aqui, dediquei-me a refletir sobre o que é uma Constituição moderna, o que é uma Constituição que constitui uma sociedade moderna. Nessa reflexão, enfatizei sua relação com o problema tipicamente moderno da integração social: uma Constituição moderna pode ser compreendida como uma tentativa de resposta a desafios referentes à integração da sociedade, desafios que passam ao primeiro plano com o emergir da Modernidade. Nesse sentido, procurei mostrar como, tendo surgido internamente ligadas à tentativa de solucionar ou ao menos de estabilizar o problema da integração social em sua especificidade moderna, Constituições modernas precisam abrigar em sua estrutura espaço para o reconhecimento da complexidade e da pluralidade que, como traços fortes da Modernidade, marcam as respectivas sociedades.

No presente texto, a pergunta que eu gostaria de tomar como guia é esta: e nossa Constituição de 1988, o que dizer sobre ela? Mais diretamente, tendo ela completado recentemente seus trinta anos, como fazer um balanço dessas três décadas? Teria ela dado conta de cumprir essa tarefa que venho destacando – a saber, a tarefa de estabilizar adequadamente a integração social em sociedades complexas e plurais?

Para a resposta a essas perguntas, vou guiar-me pelo modo como J. Habermas apropria-se da noção, de matriz popperiana, de três mundos. Assim, a sociedade poderia ser pensada como composta por um conjunto amplo de três tipos básicos de relações. Um primeiro deles seria o das relações de um sujeito consigo mesmo, com seu mundo subjetivo, interior. A um segundo tipo corresponderiam as relações entre os sujeitos, relações pertencentes a um mundo social no qual as condutas de uns em face dos outros encontram sua regulação. Finalmente, no terceiro tipo entraria o elemento externo aos sujeitos que interagem, conformando um mundo objetivo em face do qual se dá essa interação.

É difícil negar o papel desempenhado pela Constituição de 1988 no que tange a esses três mundos, catalisando o adequar de sua configuração a uma sociedade complexa e plural. No que diz respeito ao mundo objetivo, a histórica relação predatória entre nós e o meio ambiente, por exemplo, passou ao longo das últimas décadas por um profundo processo de reflexão. A naturalidade com que sempre foi tratada a destruição ambiental em nossa história foi aos poucos deslocada por uma compreensão das relações seres humanos-ambiente que, embora ainda incipiente na sociedade brasileira como todo, consegue ecoar com força e gerar seus efeitos de transformação.

No caso do mundo social, abundam os exemplos de mudança. Para ficar apenas com dois deles, a tradicional regulação social das relações raciais e das relações afetivo-sexuais no Brasil foi fortemente abalada. O racismo estrutural que ainda determina tão cruamente o cotidiano do país encontrou ocasião não apenas para ser trazido a lume contra toda ideologia de integração pacífica e de democracia racial, mas também para ser duramente criticado e, em não poucos espaços sociais, finalmente desativado. De igual maneira, o padrão machista-homofóbico das relações afetivo-sexuais teve de ceder a uma pluralidade de formas de vivência do amor e da sexualidade que conseguiram ganhar as ruas e romper com a antiga lógica excludente que lhes impunha os limites estritos dos guetos.

Os aspectos relativos ao mundo subjetivo são, em regra, mais difíceis de serem visualizados. A esse mundo pertencem os horizontes que se oferecem como possibilidades de formação de identidade dos indivíduos, isto é, o modo como podem aprender socialmente a se compreender, as fontes de autoestima que lhes estão disponíveis, os sonhos e medos com que podem alimentar suas vidas. Para dar conta dos impactos da Constituição de 1988 nesse mundo tão mais delicado, parece-me não haver referência melhor do que as questões de gênero. Mulheres que vivenciaram sua infância, sua adolescência e o início de sua juventude antes de 1988 foram e são, em regra, mulheres cuja compreensão de si mesmas e cujos horizontes de expectativa quanto às oportunidades que a vida traria limitavam-se a um pequeno conjunto de opções, dentre as quais se destacavam a condição de esposa e de mãe, raramente fazendo parte dessas opções a construção de uma trajetória autônoma de vida profissional que lhes assegurasse autonomia e não dependência em face de um provedor masculino. Mulheres que nasceram e cresceram pós-1988 puderam encontrar um quadro progressivamente diferente. Hoje, o nível socialmente alcançado de igualdade de gênero é uma realidade que abre às mulheres em geral um rol imensamente amplo de alternativas, dentre as quais se inclui o próprio questionamento radical da naturalização do destinode esposa e mãe.

Por certo, essas considerações acima não devem iludir ao ponto de forjar a imagem ingênua de um país que tivesse conseguido superar a relação destrutiva com o meio ambiente, o racismo estrutural, a LGBTfobia e a opressão de gênero. De igual modo, não devem também ser tomadas como se sugerissem, de maneira fetichizada, que a Constituição de 1988 foi o sujeito principal das transformações ocorridas, ou seja, como se quisessem dizer que a Constituição produziu a partir de si todas essas mudanças.

Por um lado, nossa continuada capacidade de exploração, sem limites e sem responsabilidade, de nosso entorno natural é atestada por ocasiões tão recorrentes como os rompimentos das barragens em Mariana e em Brumadinho. Ao mesmo tempo, a opressão racial continua visível, para quem tiver a mínima disposição a ver, na matança diuturna de jovens negras e negros, assim como em formas mais sutis como as relações de emprego doméstico ou o tratamento diferenciado em filas de banco ou em praças de alimentação de um shopping center qualquer. O espancamento e a mutilação corriqueiros da população LGBT e os índices igualmente vergonhosos de violência contra a mulher completam o diagnóstico de um país socialmente adoecido. Porém, se é totalmente incorreto desconhecer a permanência dessas patologias em nossa sociedade, é errado tanto quanto resumir o que somos e o que temos sido apenas a isso, não conseguindo enxergar aquilo que, no meio de toda essa cena trágica, pôde emergir como conquista.

Por outro lado, essas conquistas, sem dúvida, devem-se primariamente às lutas sociais, ao grau inédito de articulação que a sociedade civil brasileira atingiu sob a vigência da Constituição de 1988. Uma reflexão sobre essa Constituição à luz da Teoria Social – como a que sempre procuro fazer – não pode nem pretende reivindicar para a Constituição ela mesma um protagonismo que só pode ser da cidadania ativa.

Logo, o que uma tal reflexão sobre a Constituição de 1988, passados seus trinta anos, pode fazer é chamar atenção para o papel que essa Constituição tem desempenhado no fomento da atuação da sociedade civil, oferecendo-lhe um amplo instrumental para lutas por direitos, como nunca se tinha visto antes na história do país: não se trata tanto, pois, de falar do que a Constituição constituiu, mas muito mais de falar de como a sociedade constituiu-se a partir, e por meio, da Constituição nessas três décadas.

No mesmo ato, essa reflexão vem tentar mostrar o outro lado de uma história quase sempre contada como remorso, procurando lançar foco sobre lampejos de importantes avanços que, apesar de tudo, já estão disponíveis em nossa sociedade – em outras palavras, vem tentar mostrar o lado cheio de um copo que temos uma dificuldade imensa de ver senão como um copo meio, ou totalmente, vazio. Em um momento como o presente, em que as ameaças a um projeto de sociedade livre e igualitária vêm de todos os lados, destacar que não temos apenas fracassado, enfatizar que temos conseguido importantes vitórias em nossas lutas por um mundo melhor, talvez seja uma das principais tarefas críticas que a Universidade e a intelectualidade em geram precisam cumprir: a tarefa de munir de esperança aquelas e aqueles que não querem desistir desse projeto de sociedade, mas que vez ou outra duvidam se ele é realmente possível. Sim, ele o é. E se dá a ver não no horizonte eternamente postergado de uma utopia irresponsável, mas no espaço concreto das experiências que já temos vindo realizando.

A essa altura, alguém poderia, com razão, estar-se questionando pela ausência de menção ao nível de desigualdade sócio-econômica do país nas considerações acima. A miséria que assola um contingente populacional tão grande não faria com que as conquistas celebradas por mim fossem meras conquistas de fachada, enfeites que adornam uma realidade cujo solo real permanece aquele mesmo de uma dominação de classes sem peias? É impossível negar a força de uma indagação como esta em um país tão ambíguo – de poucos ricos tão ricos e tantos pobres tão pobres – como o Brasil. Entretanto, também nesse caso parece-me possível enxergar algo mais do que simplesmente “mais do mesmo”: quando menos, a desigualdade, que sempre foi naturalizada entre nós, passou a ser mais ferozmente questionada. Com isso, a organização da sociedade civil também quanto a esse ponto se fez digna de nota, com movimentos rurais e urbanos que de alguma maneira se afirmaram como porta-vozes do grito de recusa a um nível de desigualdade que, embora absurdo, sempre se pretendeu justificado no país.

Caminhando para a conclusão, não se mostra a mim possível outra conclusão que não seja esta: apesar de todos os problemas que ainda temos, o Brasil mudou muito nas últimas três décadas. E o que vem acontecendo nos últimos dois anos deve em parte ser lido como uma reação quase desesperada – daí seu caráter violento – das forças arcaicas que historicamente dominaram a sociedade e que, pós-1988, foram vendo seu espaço de influência reduzir cada dia mais.

Isso não significa, claro, que conseguiremos resistir a essa reação: as cartas estão na mesa, o jogo está sendo jogado, e o risco de um retrocesso profundo em termos de liberdade e de igualdade é assustadora e tristemente real. Mas olhar para a Constituição de 1988 e para o que se passou em torno dela nos últimos 30 anos alimenta o sonho de que atravessaremos mais esse período difícil – afinal, nossa história nunca foi exatamente uma história fácil –, aprenderemos com ele e, quando passar, teremos sido capazes de superá-lo.

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Notas de bicicleta

26 de fevereiro de 2019 by Observatório

Nina Rizzi

Há cerca de cinco anos, quando comecei a usar a bicicleta como transporte, passei a ter outra relação com a cidade, desde a simples observação de placas e pixos antes não notados a aspectos mais complexos de mobilidade urbana, relações sociais e arte.

Não que quem ande a pé, de ônibus, carro ou moto não veja as coisas, mas a bicicleta permite uma pressa diferente, por mais que se corra ou faça cortes que eu mesma não me atrevo em meio ao trânsito, a rua se move de outro jeito, como na meditação: absorto, mas desperto; e a cada pedalada novas ideias, possibilidades, iluminações, ainda que o trajeto seja o mesmo. Imagine então, se você ouve músicas (confira no facebook, algumas dicas digitando na busca: #álbunspraouvirnabici), faz outros horários, muda o rumo.

Na bicicleta meus devaneios sobre amor e as músicas que estou ouvindo, reflexões sobre arte e política, trabalhos que preciso fazer e pensamentos aleatórios, são costurados por impressões “fixas” da rua. Descobri, por exemplo, que existem placas muito discretas sinalizando o caminho de igrejas e museus; têm muitos mais artistas de rua nos sinais em determinados trechos, embora cada vez mais ocupem outros espaços, inclusive comecei a parar para ver suas performances inteiras que duram o tempo do semáforo fechado. E como alguns pixos se repetem, como o “vai dá certo”, “sinal fechado, lembra da bicicleta” (!), “quem não tem voto cassa com golpe” e “bozo é meus ovários”. As impressões permanentes, mas voláteis em suas dinâmicas são sobre as pessoas e as relações de poder que estabelecem na rua, e é aqui que quero me deter em algumas notas, a partir do título de Angela Davis, uma das leituras que me permitiu travessias muitas.

Mulheres

Há os fatos curiosos, engraçados e revoltantes.

Curioso: O número de mulheres que pedalam tem aumentado cada dia mais; se há cinco anos atrás, nos meus trechos, elas eram cerca de 1/5, hoje já são metade. É sabido como a bicicleta contribui para uma maior liberdade às mulheres, tanto em sua mobilidade, como até em hábitos de moda, e continua emancipando!

Engraçado: Quando estou pedalando na faixa num ritmo sempre cadenciado, mas nunca muito louco, jamais esquecendo a prioridade dos pedestres e raramente ultrapassando o sinal vermelho, os homens sempre tentam me ultrapassar. O sujeito pode estar na maior calmaria da vida, mas se eu passar por ele, o passeio vira uma corrida. Coitados.

Revoltante: dois tipos de abordagens dos homens para as mulheres na rua: os incontáveis fiu-fius, gritos de dentro dos carros ou das motos, gestos nojentos com a língua e etcétera como se eu, e as outras mulheres fossemos pedaços de carne sobre o selim; outra abordagem, são comentários extremamente misóginos, como por exemplo, uma vez em que parei no sinal e um ciclista ao meu lado comenta sobre a moça na calçada que passa na calçada, bem bonita e usando um vestido que nem era tão curto pro calor cearense (e ainda que fosse, of course), o sujeito diz “essa mulher, olha como anda, depois reclamam quando mexemos com elas…” eu fiquei tão perplexa que só consegui responder um “ela anda como quiser e isso não é um convite”, mas já um quarteirão a frente quis voltar e lhe dizer umas boas, em vez disso fiquei pensando nessas duas reações típicas dos homens: no primeiro caso, puro assédio machista, o sujeito vê a mulher como um objeto de consumo; no segundo caso, o sujeito já entendeu que cantadas baratas e obscenidades não agradam às mulheres, já entendeu que sim, a gente reclama e vai pra cima, e é justamente aí que reside a misoginia: ele se vê como vítima das mulheres que cerceiam seu direito de assediar, não pode suportar que a mulher seja dona do seu corpo, que lhe diga não, por isso a odeia.

Raça

Quase diariamente vejo camburões da Polícia parando no meio das avenidas, passando por cima das calçadas e correndo em pinotes loucos parando gente, sem mais nem porquê, pra dar o baculejo. TODAS AS PESSOAS que eu vi sendo abordadas por policiais, e de forma violenta, são NEGRAS. E como o percurso que faço é do centro rumo zona norte, onde ficam os bairros mais ricos de Fortaleza, a presença de negros caminhando tranquilamente é uma rasura na paisagem, ainda que estejam vestidos dentro dos padrões esperados (diferente, por exemplo, de outros espaços, em que as pessoas são barradas ou perseguidas não só por sua cor, mas também pela aparência/ vestimentas).

A violência não é só policial e não só física. É terrivelmente triste ver as pessoas mudando a calçada, acelerando o passo apavoradas quando veem um negro se aproximando, se forem mais de dois então, é quase um apocalipse. Esta semana me cortou o coração quando essa cena se repetia mais uma vez com dois rapazes que disseram com a voz bem embargada diante do medo de raça de uma senhora “calma, tia, a gente só tá entregando currículos”.

Classe

Fortaleza tem, segundo o censo de 2018, 2.643 milhões de habitantes distribuídos em 119 bairros. Os quatro bairros mais ricos de Fortaleza são: Aldeota com 42.361 habitantes, Cocó com 20.492, Dionísio Torres com 15.634 e Meireles com 36.982, totalizando 115.469 habitantes. Nesses bairros ficam os shoppings, lojas, escolas, redes de TV, supermercados, restaurantes, padarias e um sem-fim de serviços mais caros da cidade.

Um dos grandes problemas da cidade, especialmente no espaço que vai de todos os bairros para a zona norte, é a mobilidade urbana, tanto que, a pretexto de melhorar o trânsito, queriam destruir o Parque do Cocó, que é uma área de preservação ambiental (!), o que fez com que diversas pessoas se mobilizassem no movimento Salve Cocó, acampando no Parque para discutir o assunto e tentar envolver toda a cidade de Fortaleza para preservação do Rio Cocó, das dunas e do Parque [tópico para um futuro artigo que pode ser previamente conferido aqui]. Quando comecei a trabalhar por estas bandas percebi que aquilo realmente é o inferno na terra. Ônibus extremamente lotados, centenas de milhares de carros e horas e horas da vida perdidas no estresse do tráfego. Só conseguia pensar aonde eu estava com a cabeça ao vir de São Paulo para Fortaleza para fugir da vida frenética.

Foi por isso que peguei a bicicleta de passeio e a promovi a transporte. E foi na bicicleta que percebi que: as pessoas nas barraquinhas de tapioca e cuscuz, balconistas, caixas, faxineiras, professoras, advogadas, médicas, enfermeiras, motoristas, arquitetas, urbanistas, encanadoras, eletricistas, montadoras, ambulantes, babás, administradoras, artistas de galeria, agentes de trânsito, publicitárias, tecnólogas de informação e todas as profissões e atividades possíveis (pode converter para o masculino!) – com exceção de pessoas em situação de rua que, diferente de outras cidades não se encontram espalhados por toda cidade, tão horrendamente higienizada –, praticamente todas as pessoas trabalham para que os ricos vivam bem; quer dizer, 95,63% da cidade, 115 bairros, em prol de uma minoria [claro, tem muita gente que trabalha no centro, nos bairros e em seus negócios próprios; minhas andanças seguem para o centro, litoral, periferias; não exagero no que vejo]. Eu sei, nada de novo no front, mas há coisas que são de uma realidade atroz quando observadas de perto, de verdade.

Claro, nem tudo é um show de horrores, ao pedalar escolhemos outras formas de se relacionar com a cidade e com as pessoas. E a beleza, tanta beleza verdadeiramente! O pôr-do-sol, a cada dia único e fabuloso; o suor descendo pelo corpo enquanto o vento corta a pele que ferve de energia; todos os impossíveis abertos, prontos para atravessar.

Muitas pessoas acham que é preciso coragem para pedalar além de passeios. Besteira! Embora os automóveis – que quanto maiores são, mais se tornam opressivos –, taxistas e motoristas de ônibus, que conseguem ser ainda piores, pareçam transformers assustadores, um sorriso e um tchauzinho (ou um cotôco mesmo!), dão jeito, vem um vento bom e pronto, eles ficaram lá atrás. A despeito de toda relação de poder, pedalando, somos livres. E sendo livre, o poder é todo nosso.

Nina Rizzi é historiadora, editora, poeta e tradutora.

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Judicialização da homofobia: autoridade da alteridade

26 de fevereiro de 2019 by Observatório

Melina Girardi Fachin

O julgamento recentemente iniciado e ainda em curso sobre a criminalização da homofobia suscita diversas reflexões importantes. Neste ensaio permite-se, na esteira das discussões que vertem das tensões entre constitucionalismo e democracia, destacar o papel do Poder Judiciário neste tipo de demanda que reclama o próprio sentido de proteção dos direitos humanos que está em jogo para nossa democracia.

A tipificação penal do crime de homofobia está em pauta na Ação a Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e no Mandado de Injunção (MI) nº 4.733, de autoria respectiva do PPS e Associação Brasileiras de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). O julgamento que já se estendeu por quatro sessões teve voto favorável de quatro Ministros – aí incluídos os relatores Ministros Celso de Melo e Edson Fachin, para além dos Ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes que os acompanharam – reconhecendo a homofobia, na forma contemporânea do crime de racismo, ante a mora legislativa. O julgamento foi suspenso pelo Plenário e aguarda-se sua reinclusão em pauta pela Presidência.

A despeito da importante discussão, sobretudo da seara da criminologia, sobre os reflexos do aumento da repressão criminal e seus sujeitos estigmatizados, é importante destacar a miragem simbólica deste reconhecimento. Isto é ainda mais ressaltado no contexto que fez com que o Brasil ganhasse o título de país que mais mata LGBTIs no mundo; só em 2018, 420 vítimas – considerada a subnotificação porque, ausente a tipificação penal, é ainda mais dificultoso este levantamento no sistema de justiça.

Destarte, diante da omissão legislativa, questiona-se qual o papel do Poder Judiciário e quais os fundamentos que angariaram à proteção dos direitos humanos da população LGBTI quatro votos já proferidos, bem como seu impacto na afirmação e consolidação da democracia brasileira contemporânea?

Muito se critica – e com razão – atuação mais proeminente em matéria judicial que, sob as vestes de ativismo judicial desenfreado viola a própria Constituição. Uma objeção ao enfoque judicial é que tratar-se-ia de uma decisão elitista já que é fato que os juízes – em especial aqueles das Cortes Superiores – tendem a ser selecionados entre os setores mais privilegiados da sociedade, enquanto muitos dos indivíduos envolvidos em litígios, em especial penais, provêm de setores sociais mais baixos.

Ainda, dar prevalência ao Judiciário reforça a ideia de última palavra e muitas vezes interrompe – ou mesmo retrocede – em importantes debates sociais. São os retrocessos que se formam a partir da irrupção de uma decisão dentro de um espaço politicamente controverso ou não maduro, como se aponta o tema da homofobia.

As críticas acima são subscritas e necessárias para nos mantermos vigilantes à Constituição e ao tenso equilíbrio entre constitucionalismo e democracia. Todavia, é importante divisar e diferenciar o chamado ativismo judicial do julgamento em curso das ações ADO 26 e MI 4.733.

Em ambos os processos não se descurou do espaço Legislativo, nem lhe subverteu a decisão. No presente caso, passados mais de 30 anos da promulgação constitucional, o que há é vácuo. Vazio de lei que desborda em inconstitucionalidade por omissão, sobretudo, na vida das vítimas de homofobia no Brasil; uma a cada 19 horas, vale destacar.

O acompanhamento legislativo demonstra que as iniciativas legislatórias propostas para garantir direitos LGBTIs tem sua tramitação bastante dificultada. Este silêncio fala muito sobre a homofobia brasileira. Recentemente, parlamentar abertamente vinculado à pauta foi ameaçado de morte e obrigado a deixar o mandato e o país. Eis aí dado exemplificativo deste cenário legislativo abstruso.

Diante disto, ação do Poder judiciário não viola a regra geral da deferência ao legislativo, espelhada na sua autocontenção, em respeito à democracia. Quando estão em jogo direitos humanos, sobretudo vinculados à setores vulnerabilizados da sociedade, há – com o silêncio eloquente do legislador – o dever jurisdicional de agir.

É nesse influxo que os direitos humanos avultam como um contrapoder, na expressão de Ferrajoli, que marca o processo constante de lutas contra a lei do mais forte. Esta perspectiva combina com a tônica dos direitos humanos que visam equilibrar as relações assimétricas de poder como insurreições contra os despotismos.

A categorização das pessoas com base em diferenças reforça as dissimetrias de poder na sociedade, negando-se ao outro a condição plena de sujeito de direitos. No presente caso, assumir o critério promotor da diferença rompe com o silêncio pronunciando o idioma da alteridade, conforme entoa Nancy Fraser.

No mesmo diapasão aponta Dworkin que são esses direitos são poderosos trunfos contramajoritários na luta pela construção de uma sociedade mais inclusiva. Complementa o autor que a luta por direitos e pelos direitos – para que sejam levados a sério – é marca das democracias contemporâneas e constitui exigência inarredável da agenda constitucional e externa do direito internacional dos direitos humanos.

Isto porque não se deslembre a inconvencionalidade da omissão legislativa, já que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário desde 1992, traz no artigo 2.1 o dever de se adotar disposições de direito interno que garantam os direitos e liberdades previstos aos seus cidadãos, combinado com o artigo 1.1. que versa sobre a obrigação estatal de se respeitar direitos. No influxo do que se alega, eis trecho do voto do Ministro Decano na ADO 26:

Muito mais importante, no entanto, do que atitudes preconceituosas e discriminatórias, tão lesivas quão atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais de qualquer pessoa, independentemente de suas convicções, orientação sexual e percepção em torno de sua identidade de gênero, é a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe fazer prevalecer, sempre, no exercício irrenunciável da jurisdição constitucional, a autoridade e a supremacia da Constituição e das leis da República.

No caso das ações ADO 26 e MI 4.733, agir é, portanto, dar cumprimento da Constituição e do Direito internacional dos Direitos Humanos. A autoridade à ação jurisdicional advém in casu da alteridade que está no âmago dos direitos humanos que qualificam nossa democracia constitucional.

Melina Girardi Fachin é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

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Constitucionalismo óptico

26 de fevereiro de 2019 by Observatório

Douglas Pinheiro

No romance A cidade e a cidadedo escritor China Miéville, duas cidades denominadas Besźel e Ul Qoma, cada qual com suas próprias instituições político-jurídicas, moeda, língua e costumes, ocupam o mesmo território de modo sobreposto. Porém, cada qual vive como se a presença da outra não existisse. As crianças e os estrangeiros precisam aprender a desver a outra cidade, seus habitantes, seus veículos para não incidirem na grave infração de brecha, quando uma população interfere na dinâmica da outra – o que pode levar a punições aos cidadãos envolvidos. Assim, por exemplo, no cotidiano, ao avistar o Outro, perceptível por seus modos, roupas e aparência, qualquer cidadão deveria imediatamente desvê-lo, considerando-o inexistente ou, ao menos, invisível.

Embora a narrativa se coloque como literária e distópica, é inegável sua capacidade de dialogar com pressupostos teóricos das ciências sociais e de ressaltar situações de exclusão no presente. Walter Benjamin, impressionado com as possibilidades do cinema e da fotografia, já havia pontuado que a natureza das coisas que fala ao nosso olhar é distinta da que fala à câmera, indicando que nossa percepção visual é marcada por uma não-visão, uma incapacidade de perceber sombras, espectros e projeções que nosso próprio consciente lança para um ponto cego. Ponto cego, aliás, do qual só são retiradas pelo estranhamento provocado pelo impacto de uma nova e imprevista imagem produzida pela arte, capaz de incomodar o olhar da inércia condicionada.

Sob o ponto de vista dos estudos queer, Eve Sedgwick refletiu como a lógica hegemônica de ocultamento de um outro sexualmente não normativo, postura que se espraia para outras atitudes de exclusão, como a de fundo étnico-racial, por exemplo, corresponde a um dispositivo de regulação de modos de vida por ela denominado epistemologia do armário. Tal dispositivo se ancora basicamente em um binarismo político-jurídico do público e do privado, que já se mostrou historicamente construído por padrões hetero-viriarcais e que veda tanto o acesso do vulnerável ao espaço público, quanto o acesso do Estado e de suas salvaguardas a este mesmo vulnerável no espaço privado. Ocorre, assim, um duplo “desver” gerado pelo monopólio do olhar excludente do opressor.

Nesse panorama, o que seria o constitucionalismo óptico? O constitucionalismo, que não se confunde propriamente com a Constituição em si, originou-se da tentativa de imposição de limites ao arbítrio do poder. Surgido com as revoluções haitiana, francesa, inglesa e estadunidense, o constitucionalismo claramente foi construído pelas maiorias contra governos coloniais e/ou absolutistas. Porém, com a consolidação de regimes democráticos, a lógica do constitucionalismo passou a pender para as minorias e para os grupos desapossados do poder político-jurídico, tornando-se um limitador da vontade da maioria para que, sob a justificativa da legitimidade, ela não comprometa o pluralismo próprio de um dissenso democrático.

Essa limitação da vontade da maioria em defesa do pluralismo deve, porém, não garantir apenas a mera existência oculta do vulnerável, mas também sua visibilidade ou, em outros termos, seu direito de ver e de ser visto, de transitar, de ocupar espaços públicos. O constitucionalismo que não garante a livre manifestação de modos de vida lícitos, silenciados apenas por não corresponderem à tradição majoritária, opera sob a mesma lógica da epistemologia do armário, do inconsciente óptico e das regras de Besźel e Ul Qoma. Esse constitucionalismo cego talvez fosse suficiente para as demandas de corpos dóceis. Porém, ele se mostra superado quando negros/as empoderados/as de sua história desafiam a estética dos cabelos lisos e projeto racistas, inclusive institucionais, de embranquecimento social; quando pessoas trans, que tem no seu próprio corpo o espaço primeiro de resistência, questionam qualquer possibilidade de negociação entre o que pode e não pode ser exibido na praça; quando mulheres problematizam o conceito de “vadia”, potencializando o choque visual de modo intencional para questionar a inversão do ônus da prova que sempre se abate sobre as vítimas de feminicídio, estupro e assédio.

O critério de um constitucionalismo óptico é o do desvelamento, da visibilidade, da livre circulação. Decisões judiciais ou legislações que permitem o não normativo, mas o restringem ao âmbito doméstico, claramente contrariam esta proposta. Decisões judiciais ou legislações que garantem qualquer espaço, inclusive o público, como lugar da pluralidade dos projetos de vidas, com seus vários matizes, a reforçam. No mundo distópico de Miéville, isso poderia gerar a brecha. No Brasil presente, este constitucionalismo óptico talvez possa deflagrar processos crescentes de inclusão, consideração e respeito.

Douglas Pinheiro é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

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A antropofagia nos separa

26 de fevereiro de 2019 by Observatório

Paola Zordan

Aos que  acham que as universidade são para poucos, concordando com as declarações do Ministro da Educação, faço algumas considerações a serem levadas em conta. Meu ponto de vista é o chão de muitas salas de aula, anos de magistério em diversas etapas da educação formal, por vezes atuando em instituições com ações educativas não-formais. Então, sei que o que a atual equipe do MEC critica parte de convicções apartadas do que se vive nas escolas e nas universidades hoje. Uma “universidade para todos não existe”… Quem são “todos”? Sabemos que a fatia dos universitários e graduados no Brasil é pequena, porém, há imensidões não quantificadas de saberes que, em diversas ações, as universidades devolvem a todos os segmentos da sociedade. Enxugar seus orçamentos talvez seja extinguir completamente com o que sempre contou com poucos recursos do tesouro.  O que se produz nas universidades implica no desenvolvimento de uma nação. O desempenho econômico, em todas as esferas, depende de habilidades que se aprendem na escola básica (leitura, escrita, operações básicas), ou seja, é mais que sabido que sem uma boa formação de professores, não teremos um país saudável. Para isso, são necessárias políticas que privilegiam o desenvolvimento da escola básica, como o PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – que visa incentivar e aprimorar a formação de professores) e o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático – que distribui livros de todas as áreas de conhecimento até locais sem acesso à bibliotecas e outros veículos de informação) funcionando eficientemente. As áreas contempladas nos editais que destinam recursos para programas que, ligados à universidades, fortalecem a base, não podem ficar restritos apenas às ciências, tampouco diluídas em generidades estabelecidas por equipes não especializadas. Sem os devidos recursos, compromete-se a qualidade daquilo que almeja para uma escola básica forte. Em especial nas Licenciaturas, que abarcam todas as áreas reconhecidas na LDB, por serem cursos destinados à formação de professores, os efeitos do sucateamento na infraestrutura geral está sendo bastante sentido. Uma universidade para todos se estende às escolas, aos professores das redes públicas de ensino básico (beneficiários direto destes Programas) e ao restante da comunidade, dialogando diretamente com todos os tipos de movimentos sociais.  Mesmo sem pisar numa universidade, “todos” são afetados pelo que, em diversos programas, delas advém.

O que se chama “todos”, sobre os quais o “Brasil” é gritado acima de uma análise mais atenta, não pode ser descrito como algo homogêneo. Arrisco-me a dizer que Brasil é o país mais heterogêneo do planeta. Posso testemunhar, numa universidade pública, alunos de todos os tipos, vindos de diversas comunidades. Posso dizer que uma pessoa na universidade traz, de algum modo, a universidade para seu entorno. Dos estudantes que há mais de década convivo, há tanto os que tiveram livros na vida pregressa quanto os que sentem dificuldade de decodificar um texto, pois nunca leram antes de entrar na universidade. Ambos estão em contato com novos conhecimentos. Há os que fazem questões a partir do que eu exponho e há os que não possuem um mínimo de signos para acompanhar uma aula expositiva. Tenho alunos que participam da movimentação da Universidade, procuram bolsas e se envolvem nas atividades dos professores. Tenho alunos que trabalhavam para se sustentar estudando e fazem tudo o que podem para ter aproveitamento. Tenho muitos alunos que passam dificuldades e mesmo assim tentam aprender o máximo. Tenho alguns alunos que preciso marcar, pois não estão nem aí para as aulas algumas vezes deixam das disciplinas no meio do semestre. Tenho alunos que não comem quando o Restaurante Universitário fecha. Tenho alunos que faltam aulas porque ficaram sem dinheiro para condução. Tenho alunos que aprenderam palavras nunca escutadas, conheceram países e artistas, visitaram museus, isso sem terem saído da sala de aula. Tenho alunos que me agradecem. Tenho alunos que me desafiam. Tenho alunos que querem ser professores, mas estão muito assustados com o que isso pode causar em suas vidas.  Por que, então, achar que a Universidade é destinada apenas a uma “elite intelectual”? Posso ter alguns alunos que viajaram mais do que os próprios professores, que viram o que há de mais importante no mundo, que falam várias línguas, mas estes são poucos. Os que tiveram tudo do bom e do melhor, ao se chegar perto, às vezes são os que estão numa pior.

Não podemos aceitar sermos “elite intelectual”. Primeiro porque, mais do que intelectos, somos corpos que trabalham. Corpos muitas vezes cansados que sempre estão ocupando espaços, seja no sistema, seja na sala de aula. Segundo, porque chamar um determinado grupo de “elite” é pressupor uma camada social designada pelo materialismo histórico. Tal alcunha atesta ignorância da etimologia e da contextualização historiográfica do conceito elite, cujo uso emerge no século XIX, carregado de ideologia. Termo que designa os que podem eleger, escolher, em suma, ficar com o melhor, foi aplicado, primeiramente, à alta burguesia, pois tem relação com o poder de compra. Posteriormente, por transposições da aplicabilidade do conceito a tempos anteriores ao da Revolução Industrial, também foi usado para a aristocracia e seus velhos privilégios, especialmente os do mundo colonial. Neste contexto, dos séculos XVI a XVIII, a palavra também ressoa nas damas carregadas por escravos num dispositivo de transporte de tração humana: a liteira. Ou seja, se é chamado “elite” por exprimir uma posição material, corporal, um modo de se comportar, de agir, de se valer e mesmo explorar a força alheia.

A tal “elite intelectual”, nas palavras do ministro distinta de uma “elite econômica”, talvez descreva aqueles que sem poder aquisitivo tenham compreensão do que os impede de ter o que a elite, a dos que podem escolher o que querem, em suas bases capitalísticas, possui.  Manter todo tipo de público dentro das universidades garante que elementos de todas segmentações sociais entendam o que, nos discursos e práticas, nos impede de escolher o que seria melhor. O que fazemos nas universidades traciona engrenagens complexas demais, porém vitais para se compreender os processos econômicos que regem nossas vidas. Para os que escolhem, é necessário permanecermos sem poder de escolha.

Observa-se que a vida acadêmica não permite muitas escolhas. Os encargos são muitos. É difícil alguém poder ter escolha, trabalhando sem contar horas, física e intelectualmente, para que a produção de conhecimento cumpra seu destino. Numa universidade pública os professores são responsáveis pela gestão, cumprem uma série de tarefas administrativas, muitas vezes braçais. Tarefas para a realização de ensino, pesquisa e extensão, a tríplice razão da universidade existir, precisam ser processadas burocraticamente em formulários e portais, interfaces lentas com as quais ninguém escolhe trabalhar e cujos entraves precisam ser resolvidos com frequência. Somos obrigados a aceitar todo tipo de alunos, ricos, pobres, remediados, deprimidos, suicidas, agressivos, bajuladores, raivosos, cheios de queixas, intolerantes, humilhados, acusadores, todos os que cabem nos espaços, muitas vezes precários, destinados a atender as turmas. Os salários de um professor não permite a contratação de outros serviços, sendo a maior parte responsável também por serviços domésticos e cuidados familiares. Salvo aceitando a sujeira, comendo mal em restaurantes baratos, vivendo em apartamentos pequenos, um professor tem alguma receita de sobra para seus prazeres individuais. Ter família, para alguém dedicado ao conhecimento e a pesquisa, é algo quase proibitivo. Se isso é ser elite, trata-se de uma bem castigada. Especialmente nos cursos de Licenciatura, as condições do espaço, as demandas de trabalho e a lida com uma grande diversidade de pessoas, mostra o adoecimento dos que fazem as devidas pontes entre a universidade e a escola básica. Hoje, no Brasil, uma graduação, tampouco a pós-graduação, não garante privilégios econômicos. Favorecimentos políticos valem mais do que produção intelectual, isso se atesta no currículo daqueles que se encarregam da pasta da Educação. O termo elite surgiu para se apontar as vantagens de um segmento. Hoje, vantagem seria apenas uma certa tranquilidade para se pagar as contas. Mesmo assim, por vontade, trabalhamos de graça, com a alegria que nos resta: termos liberdade para pensar e escrever o que queremos, por convicção do quanto é importante alastrar conhecimentos.

Se, num sentido mais recente, o termo “elite” vem sendo aplicado ao melhor, ao mais especializado, qualificando o que é mais eficaz, perfeito, que traz avanços e melhorias para a vida de todos, teríamos uma Universidade de Elite.  Nunca para as elites, quaisquer que essas sejam e se é que realmente existem. As pessoas que estudam e trabalham estão cansadas de serem taxadas como “elite”. A vida não é algo que pode ser facilmente segmentado. Classificar uma vida é ser injusto com sua intensidade.  No entanto, é tudo o que temos: uma vida acadêmica com quase nenhuma garantia. Definir o que é o melhor, medir eficiência, nada é simples quando se trata de vidas, de paixões, de corpos em formação para atuar profissionalmente. Viver é se dispor muito além das paredes e das letras com as quais os corpos, em suas relações com livros, formulações e textos, constroem e divulgam conhecimentos em torno de várias matérias e campos de saber.  Nas universidades construímos conhecimentos não subsumidos aos que obtém um diploma de curso universitário. Por vezes, o serviço técnico, que pode advir de conhecimento não formal, é até mais valorizado. Nem todo conhecimento é livresco e nem todo saber é do intelecto. Quem está nas salas de aula dia após dia, avaliando estudantes, atendendo a comunidade, sabe o quanto as universidades são espaços ecléticos, aberto à conceitos e tecnologias, difundindo perspectivas para pessoas de todos os tipos. Conhecimento não é erudição, tampouco privilégio de poucos.  Aceitar que o conhecimento não é uma verdade única faz com muitos tipos de vida sejam escolhidos como válidos. O conhecimento diverso e universal, legado das universidades, não é apenas uma estrutura estritamente intelectual cuja circulação se destina a um segmento historicamente delimitado: os poucos que, supostamente, tem poder de escolha.

P.S: Opto por não explicar o trocadilho que faço no primeiro verso do Manifesto de Oswald no título deste artigo. Os que ficaram sem entender, por favor, pesquisem.

Paola Zordané professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Pensamento mágico como epistemologia da resistência

26 de fevereiro de 2019 by Observatório

Priscilla Menezes

“Se o projeto colonial construiu uma igreja para cada população dizimada, nós encantamos o chão dando de comer a ele, louvamos as matas, rios e marés, invocamos nossos antepassados para a lida cotidiana e nos encantamos para dobrar a morte.” (Luiz Antonio Simas; Luiz Rufino)

Uma narrativa que atravessou todo o período eleitoral de 2018 foi a da crise de representação política. Se por um lado, a importante questão da representatividade veio à tona e abriu espaço para sujeitos historicamente não-representados por narrativas hegemônicas; por outro lado, bordões como “não me representa” e “sem partido”, que já vinham sendo utilizados pelo menos desde as jornadas de 2013, indicavam uma cada vez mais intensa desconexão entre eleitores, políticos e partidos. Tal situação, que poderia ter evocado a participação direta, estreitando os laços entre pessoas comuns e a ação política, foi manejada de modo a afastá-las: a crise de representação abriu caminho para a acentuação de afetos despolitizados.

Sabemos, entretanto, que não existe nada que não seja atravessado por uma política ou uma orientação ideológica. Assim, a rejeição às antigas formas de representação foi muito bem cooptada por uma direita que se diz “sem ideologia”, balizando-se por ideais supostamente abstratos e universais (pátria, família, Deus), contrapondo-se à esquerda, como se apenas esse espectro tivesse partido, orientação ideológica e projeto político.  Guy Debord, em A Sociedade do espetáculo, já havia analisado: “A classe ideológica totalitária no poder é o poder de um mundo reinvertido: quanto mais ela é forte, mais ela afirma que não existe, e a sua força serve-lhe acima de tudo para afirmar a sua inexistência.” E aqui podemos ter sinais de uma estratégia massivamente utilizada pela campanha de Jair Bolsonaro: a de produzir efeitos narrativos a despeito de sua conexão com a realidade e o mundo material.

Alguns estudiosos nomeiam isso de pós-verdade: um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.[1]A pós-verdade, portanto, é produzida ali onde também se pode fazer ficção: onde se constata que a linguagem é uma experiência em si e não uma representação de experiências. Entretanto, se a premissa de toda ficção é o chamado pacto ficcional, a pós-verdade recalca a dimensão em que se descola da realidade e faz uso da opacidade da linguagem sem que essa metodologia seja explicitada.

Isso dá a ver que a crise de representação não é apenas política, mas que talvez seja uma crise de representação no sentido clássico do termo. Tal noção, com orientação racionalista, sugere ser possível se distanciar do mundo e, desde um ponto neutro, representa-lo; concepção que pode levar à perigosa ideia de que a linguagem representa a realidade em vez produzi-la.  Durante o processo eleitoral de 2018, a denúncia das fake newscomo informações falsas não bastou para mudar o voto majoritário. Isso demonstrou a predominância do efeito de linguagem em detrimento da análise de dados sobre eleitores que aderiram completamente à representação como se fosse um dado material (e, por outro lado, ignoravam os dados materiais como se fossem “meras representações”). Não é contingente que essa aderência tenha sido manejada por um projeto político de extrema direita, com profundas raízes na jamais superada lógica colonial, já que a própria noção de representação, em seu sentido clássico, é fruto de um projeto de dominação.

Em seu primoroso ensaio Reativar o animismo, Isabelle Stengers fala do modo científico de representar o mundo, cuja premissa central seria a categorização realizada através da separação. Uma separação especialmente estruturante dessa lógica é a que divide o sujeito científico (dotado de cognição) do mundo natural (considerado inconsciente). Dessa forma, uma das condições centrais para a representação científica do mundo seria a consideração de   que nós, seres conscientes, estamos em um mundo que nos cabe conhecer, classificar e colonizar. Assim, as práticas de interpretação e representação, como conhecemos, são práticas situadas: fora e sobre o mundo. É nesse sentido que a representação carrega em si um anseio dominador, já que aboa representação é separada do mundo e efetuada desde uma posição onde supõe-se a totalidade de um saber especializado. Como constatamos, a extrema direita vem fazendo uso da vocação totalitária da representação, esgarçando-a até o limite da pós-verdade. Considerando tudo isso, poderíamos questionar: haveria modos de resistência a serem criados nesse ponto entre a experiência e a narrativa?

Um efeito que pode advir da relação entre experiência e narrativa é o efeito de verdade. Em uma perspectiva científica, verdadeira seria a experiência que pudesse ser narrada conforme os parâmetros do saber científico. Consequência disso, pontua Isabelle Stengers, é uma desastrosa concepção do que é natural: natureza como aquilo que a ciência explica ou explicará. A parte disso, estaria o sobrenatural, ou seja, o que escapa ou contraria o governo da ciência e que, não por acaso, ela própria faz parecer que simplesmente não existe, não é verdade ou se trata de um produto de mentes selvagens: é pensamento mágico.

Stengers posiciona o pensamento mágico, ou o animismo, como o principal demarcador entre nós (os que acessam a verdade pela via racional)e outrose afirma que essa divisão seria justamente a que sustenta o projeto colonial. O colonizador é o homem europeu que, a um só tempo, é dotado de saber e tem alma, em latim, anima. Do lado oposto estão os seres sem alma e/ou sem possibilidade de acessar a verdade: mulheres, animais, natureza, outros povos. Nesse sentido, negar a potência animada – o ponto de vista consciente – de outros sujeitos se constitui como premissa fundamental para justificar a dominação colonial. A noção animista de que tudo tem consciência, força e poder de ação é uma concepção absolutamente perigosa para a lógica dominante. Silvia Federici, emCalibã e a Bruxa, afirma:

A premissa da magia é que o mundo está vivo, que é imprevisível e que existe uma força em todas as coisas. (…) Ao tentar controlar a natureza, a organização capitalista do trabalho devia rejeitar o imprevisível que está implícito na prática da magia, assim como a possibilidade de ser estabelecer uma relação privilegiada com os elementos naturais e a crença na existência de poderes a que somente alguns indivíduos tinham acesso, não sendo, portanto, facilmente generalizáveis e exploráveis. A magia constituía também um obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para o estabelecimento do princípio de liberdade individual. Sobretudo, a magia parecia uma forma de rejeição do trabalho, de insubordinação, e um instrumento de resistência de base ao poder. O mundo devia ser ‘desencantado’ para poder ser dominado. (FEDERICI, p.313)

O pensamento mágico é uma epistemologia de resistência aos modos colonizadores de experienciar e representar o mundo. Tanto é que, durante a inquisição, era essa a acusação lançada sobre os corpos que, de algum modo, insurgiam contra as políticas misóginas e racistas de controle e exploração. Na lógica colonial, pensar magicamente sempre foi justificativa para a aniquilação. Ainda hoje, rebaixa-se o pensamento mágico nomeando-o mentira/delírio e aniquila-se material e simbolicamente povos e sujeitos que sustentam práticas motivadas por lógicas animistas. A partir dessa constatação, cabe questionar: que tipo de perigo emanou e ainda emana do pensamento mágico? Se a colonização informa nossos modos representativos, há algum modo de transformá-los a partir da consideração das concepções animistas de mundo?

Isabelle Stengers evoca a imagem deleuze-guatarriana do rizoma contra o anseio arborescente da Ciência. A partir da premissa animista, afirma, nenhum modo de dar sentido à vida seria mais privilegiado que outro e, desse modo, todos seriam passíveis de se conectar mutuamente. E completa: tal imagem parece sugerir uma espécie de anarquia semântica, trata-se em realidade de uma anarquia ecológica, “porque ainda que as conexões possam ser produzidas entre quaisquer partes de um rizoma, elas também devem ser produzidas.” Ou seja, abrir mão de um eixo referencial arborescente é necessariamente engajar-se na tarefa de fazer conexões. Se a Ciência postula a divisão como método de conhecimento, a lógica animista convoca a conhecer o mundo através do reconhecimento e da criação de relações.

Magia é uma dança de transformações metamórficas em um mundo que é vivo, desejante e ativo. Essa é a lógica da magia simpática, do feitiço, da experiência xamânica: para mudar a forma do mundo eu preciso acolher a minha própria vocação metamórfica. Bruxaria, como afirma Peter Gray, é a conexão íntima com a teia da vida. Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, que pensam as especificidades do pensamento mágico brasileiro, evocam a imagem da encruzilhada para falar dessa multiplicidade de perspectivas implicada na magia, afirmando o território da produção mágica necessariamente como espaço de cruzamento de caminhos. Afirmam:

As epistemologias das macumbas rompem com as dicotomias consagradas ao longo da edificação do paradigma científico moderno. (…) Os saberes assentes nas macumbas propõem-se pensar uma relação ecológica entre essas diferenças, pautando uma não hierarquização, uma interdependência e a presença credível de caracteres cruzados dessas existências. Nos saberes assentados nas macumbas brasileiras ser bicho, gente, leito de rio, pedreira ou variadas coisas ao mesmo tempo é uma questão de perspectiva. Assim, de nenhuma forma uma possibilidade é excludente da outra. (SIMAS; RUFINO, p.30)

Assentado no rizoma, na teia, na encruza, o pensamento mágico resiste onde há encontro e, portanto, a possibilidade radical da metamorfose. É a epistemologia que amplifica a consciência da conexão entre as formas de vida e da possibilidade de acessar a realidade e modifica-la através do manejo dessas conexões. Um recurso que, não à toa, sempre foi usado pela(o)s pobres, abusada(o)s e despossuída(o)s. Saber-se parte de um mundo vivo, repleto da possibilidade do encontro e da transformação, sempre foi um modo de resistir à lógica colonial.  Peter Gray afirma: A bruxaria é a magia popular, a magia do povo e para o povo.

A palavra resistênciaaborda o esforço a ser feito para conservar-se firme, não sucumbir, não ceder às forças que avançam em sentido oposto. Há um duplo efeito implícito nesse esforço:  resistir é, a um só tempo, fazer frente e permanecer. Ou melhor, é fazer frente a uma força aniquiladora enquanto cria-se condições para a própria permanência. Assim, considerar o pensamento mágico como epistemologia da resistência tem a ver com reconhecer que há uma força que nos aniquila: a força da divisão, da mortificação do mundo, do empuxo ao um. E, então, contra essa força e ao nosso favor, abandonar a promessa de que seríamos mais fortes em um mundo onde só nós tivéssemos consciência e poder criativo. Deixar de cair na armadilha de abandonar a experiência material e de nos inebriarmos com os efeitos narrativos que ecoem em nossos preconceitos. Reconhecer que estamos em um mundo multiconsciente, onde são possíveis encontros profundos e lances metamórficos entre forças que se afetam. Apostar na força que reside na mudança. Encontrar, enfim, o nosso lugar potente no mundo través da consideração, mágica e política, de que não estamos sós.

Priscilla Menezes é artista, escritora e pesquisadora, autora de Erro tácito (Patuá).

Referências

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. 

GREY, Peter. Bruxaria apocalíptica. São Paulo: Penumbra, 2017. 

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.  

STENGERS, Isabelle. Reativar o animismo. Chão da feira. Caderno de Leituras N.62.


[1] Definição do Dicionário Oxford.

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Breves reflexões sobre o direito de ir e vir

26 de fevereiro de 2019 by Observatório

Laila Maia Galvão

A linguagem dos direitos pertence às comunidades políticas e nem sempre o texto da Constituição, por ser escrito e ter normas de alteração um tanto rígidas, acompanha pari passuas transformações sociais. Além disso, as normas constitucionais escritas não têm sentido fixo e estão sujeitas a diferentes interpretações ao longo de tempo. O direito à intimidade, apenas para citar um exemplo, não manteve o mesmo conteúdo valorativo desde o século XVIII até o século XXI.

Dentre as garantias fundamentais presentes nas constituições modernas podemos citar o chamado “direito de livre locomoção”. Na Constituição de 1988, essa garantia está descrita no artigo 5º, XV: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

Ao analisarmos os livros e manuais de direito constitucional, na parte que trata dos direitos fundamentais em espécie, verifica-se que poucas páginas são dedicadas à “liberdade de locomoção”. Especialmente se compararmos com a quantidade de páginas e referências dedicadas a garantias individuais como “liberdade de expressão” e “liberdade religiosa”. No que diz respeito à jurisprudência, na compilação organizada pelo próprio STF dos principais julgados da Corte, associando-os a cada inciso ou artigo da Constituição, há poucos e inexpressivos casos julgados que se baseiam no inciso XV do artigo 5º. No entanto, é comum encontrarmos menções no dia a dia à chamada “liberdade de ir e vir”, expressão que se tornou muito mais corriqueira do que “liberdade de locomoção”.

Como historiadora do direito, tenho a tendência de me voltar ao passado para tentar compreender as origens e o desenvolvimento dessas formulações a respeito de direitos e liberdades. É certo que cada nação moldou a ideia de “freedom of movement”, considerado um direito de primeira geração, a partir de suas particulares conjunturas históricas. Quanto ao caso do Brasil, lançaria aqui, de forma bastante amadora, as seguintes hipóteses de como essa garantia fundamental foi absorvida e compreendida pela população: (i) o direito de locomoção, ou de ir e vir, esteve associado a uma das figuras mais importantes do nosso direito constitucional que é o habeas corpus. A relevância jurídica e política desse instrumento pode ter ajudado a difundir a ideia de que é um direito do cidadão de locomover livremente; (ii) em um país que contou com mais de três séculos de escravidão, sendo um dos principais mecanismos justamente a restrição, por meio da violência, da livre circulação dos negros, essa liberdade de locomoção tende a ser mais apreciada como conquista emancipatória. Aliás, infelizmente, é comum nos estudos constitucionais brasileiros a supressão dessa nefasta tradição escravocrata que repercute em nossas instituições políticas até hoje.

Se, de alguma forma, a liberdade de ir e vir ficou inculcada nos corações e mentes dos brasileiros, é fato também que seus sentidos são múltiplos e foram se modificando.

Tendo isso em mente, é de se notar que o tal “direito de ir e vir” tem sido apropriado de variadas formas. Tornou-se corriqueiro questionar manifestações em vias públicas com base nessa liberdade de locomoção que estaria assegurada ao cidadão constitucionalmente. No famoso editorial do jornal Folha de São Paulo em junho de 2013, cujo título era “Retomar a Paulista”, não havia qualquer menção direta à Constituição de 1988, mas clamava-se pelo direito de ir e vir como contraponto ao direito de manifestação:

O direito de manifestação é sagrado, mas não está acima da liberdade de ir e vir –menos ainda quando o primeiro é reclamado por poucos milhares de manifestantes e a segunda é negada a milhões. Cientes de sua condição marginal e sectária, os militantes lançam mão de expediente consagrado pelo oportunismo corporativista: marcar protestos em horário de pico de trânsito na avenida Paulista, artéria vital da cidade. Sua estratégia para atrair a atenção pública é prejudicar o número máximo de pessoas. É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais.

Tal editorial foi publicado quando ocorriam as primeiras manifestações do MPL na Avenida Paulista. Os desdobramentos após esse editorial, todos sabemos. Após ataques de PMs a jornalistas da Folha que cobriam a manifestação, o próprio jornal soltou editorial condenando a ilegalidade da ação da polícia O tema do direito de manifestação fica para um próximo texto.

Cinco anos depois, no discurso de vitória do presidente Jair Bolsonaro, pronunciado no dia 28 de outubro de 2018, ele assumiu seu compromisso com a Constituição e com o Estado de Direito, citando em primeiro lugar a tal liberdade de ir e vir:

Liberdade é um princípio fundamental: liberdade de ir e vir, de andar nas ruas, em todos os lugares deste país, liberdade de empreender, liberdade política e religiosa, liberdade de informar e ter opinião. Liberdade de fazer escolhas e ser respeitado por elas.

É possível perceber que, na última década, a ideia de ir e vir esteve fortemente associada ao livre trânsito dentro das cidades. Mais do que a locomoção entre cidades dentro do território nacional ou então a liberdade de deixar o Brasil e de nele ingressar quando bem entender, essa garantia passou a ser usada no discurso político para expressar o direito do cidadão de se locomover no espaço urbano. Em primeiro lugar, como argumento utilizado pela imprensa de um modo geral, replicado por certos setores da sociedade, para criticar o fechamento de ruas e avenidas por manifestantes. Em segundo lugar, para dar respaldo constitucional ao argumento de que o cidadão não deveria ser proibido de caminhar na sua cidade por medo de assaltos e outras atividades criminosas.

Foi esse, inclusive, o sentido atribuído pelo Presidente Bolsonaro a essa garantia em seu discurso no Congresso Nacional no dia da posse. Ao falar da juventude, logo após mencionar que a educação deveria servir para o ingresso no mercado de trabalho e não para a militância política, o presidente empossado mencionou que os brasileiros sonham“com a liberdade de ir e vir sem serem vitimados pelo crime”.

Logo, a ideia de liberdade de locomoção, no sentido de liberdade de viajar e migrar, neste presente momento, tem recebido menos destaque do que a ideia de liberdade de circulação, no sentido de deslocamento de um ponto até outro por vias públicas. E, mais recentemente, o direito de ir e vir passou a estar associado diretamente à segurança pública (no debate político, mas não no debate jurídico). Por se tratar de um direito que permeia fortemente o imaginário dos brasileiros, vale um esforço dos constitucionalistas para investigar mais a fundo essas transformações históricas de seus sentidos e de atribuir maior densidade teórica à sua análise em livros e manuais.

Laila Maia Galvão é doutora em direito pela Universidade de Brasília e professora de direito do Instituto Federal do Paraná.

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O populismo de Jair

26 de fevereiro de 2019 by Observatório

Claudia Paiva Carvalho

Desde a campanha eleitoral, e mesmo antes, temos ouvido falar no populismo de Jair. A referência segue presente depois da eleição e do início do mandato. A alcunha de populista de direita ou de líder populista se explica pelo estilo de política praticado por Jair Bolsonaro, pelas bandeiras que defende e pelo modo de se relacionar com a população e a sua base eleitoral. Pautas moralistas e punitivistas se encaixam bem na cartilha do populismo. Soluções muitas vezes simplistas para problemas complexos podem ter grande efeito de marketing quando são palatáveis e atendem a sentimentos legítimos de indignação e a apelos difusos por mudança. “Mudar isso daí”.

No populismo de Jair cabem as suas propostas de endurecimento da política penal e da política de segurança pública. Aumentar as penas e o tempo de prisão, construir mais presídios, cortar “benefícios” da população carcerária. Armar o cidadão de bem para que possa se defender. Ampliar a licença de matar da polícia para proteger o mesmo cidadão de bem. (Enquanto isso, procuramos, mas não encontramos na Constituição qualquer menção sobre quem seja esse “cidadão de bem”).

Também cabe no populismo de Jair a sua plataforma moralizante da política e dos costumes. Acabar com o “toma lá dá cá”, romper com a “velha política”, extirpar as “ideologias”. Ou, ainda, proteger a família, resgatar valores morais e cristãos, recuperar os bons costumes. Além do conteúdo, ou da retórica, o populismo se expressa igualmente na forma: o modo como Jair se apresenta e se representa como um político autêntico, que diz o que pensa, que não tem vergonha de assumir o que não sabe e que tem seus arroubos como qualquer homem comum. Preconceitos se transformam em prova de sinceridade e de espontaneidade.

Tudo isso já foi bastante comentado. Também é verdade que Jair é mais um entre tantos políticos da atualidade que têm sido chamados de populistas. De fato, populismo é um termo há muito incorporado ao nosso vocabulário político e costuma remontar à ascensão de líderes carismáticos em contextos de política de massas. O termo continua em voga e tem sido empregado para descrever políticos de distintos campos ideológicos. De Chávez a Trump. Dizem que populista é sempre o outro.

Diante desse quadro, o populismo ainda nos serve como categoria explicativa? Em que sentido podemos falar do populismo de Jair e como isso nos ajuda a pensar os caminhos que buscamos para a nossa democracia?

No Brasil, o termo populismo tem uma longa história. E por causa dessa história, ele deve nos causar incômodo e nos levar a refletir mais a fundo. Conceito controvertido, de contornos imprecisos, o populismo já foi muito questionado pelos estudos históricos. Por muito tempo, na interpretação dominante, todo um período da nossa história foi (des)qualificado como “democracia populista”. Entre 1945 e 1964, do fim do Estado Novo ao início da ditadura militar, teríamos vivido sob governos de traços populistas em que a sociedade teria se mantido sob tutela do Estado, por meio de um misto de coerção e propaganda, políticas repressivas e demagógicas.

Gerações de críticos aos usos do populismo demonstraram que essa narrativa histórica não refletia a complexidade das relações entre Estado e sociedade. Tomando como exemplo a relação com as classes trabalhadoras, os estudos descontruíram a imagem de um movimento operário dócil e submisso ao Estado. Mostraram que as políticas trabalhistas não foram mero instrumento de dominação usado por governos populistas, inclusive porque o controle ou a manipulação exercida nunca é absoluta. As relações entre Estado e trabalhadores não se reduziram a uma via de mão única ou de cima para baixo. Mesmo que não fosse uma relação equilibrada, ela envolvia trocas. Isso implicou em reconhecer o poder de agência das classes trabalhadoras, que não foram simples massas de manobra, como a interpretação populista fazia supor.

Esses são alguns riscos do populismo que devemos evitar. Não tratar a sociedade como um elemento passivo, nem como um bloco monolítico. Também recusar leituras que enquadrem qualquer benefício social como prática demagógica e atitude paternalista. Mas também é certo que, a despeito das críticas e da revisão historiográfica, os termos populismo e populista continuam presentes e nos desafiam a pensar sobre as estratégias do poder.

Para caminhar nesse sentido, podemos começar pensando o que seria o oposto de uma política populista. Ao analisar o que considerava como expressões populistas e suas variantes no período democrático após-1945, Guerreiro Ramos contrapunha a elas a exigência de uma “política ideológica”. Embora o termo ideologia tenha se tornado para muitos um nome feio, quase um palavrão, podemos nos apropriar da proposta de Guerreiro Ramos como uma exigência de politização.

Nesse sentido, o populismo de Jair é essencialmente despolitizante. Ele emerge da despolitização e busca alimentá-la porque precisa dela para se manter. Sabemos que grande parte da população que votou em Jair Bolsonaro não tem simpatia pelo fascismo, não prega o ódio e a intolerância. Mas enxergou nele uma possibilidade de mudança. Se os discursos moralistas e punitivistas que elegeram Jair se pautaram em uma estratégia populista, que não tem compromisso com as causas complexas dos problemas envolvidos, a politização do debate parece ser o caminho necessário para trazer novos significados que mobilizem a luta pela democracia e por direitos.

Claudia Paiva Carvalho é doutoranda em direito pela Universidade de Brasília.

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O que é um golpe de estado?

24 de fevereiro de 2019 by Observatório

Marcos Napolitano

Desde 2016, a palavra “golpe de Estado” voltou a fazer parte do vocabulário político corrente no Brasil. A deposição de Dilma Rousseff incitou um debate nacional resumido na pergunta que não queria calar: foi golpe ou não foi golpe? Editorialistas e colunistas da imprensa, acadêmicos e pesquisadores, cidadãos no geral se envolveram neste debate, respondendo a esta pergunta quase sempre conforme suas preferências ideológicas e simpatias políticas. Em tempos de redes sociais, onde o achismo campeia, muitos se esqueceram de que “golpe de Estado” é um conceito. Aliás, muitos esqueceram o que significa um “conceito”, aquelas palavras que contém sentidos convencionais, racionalmente delimitados, que fornecem chaves explicativas para os debates e explicações sobre o mundo.

O conceito de “golpe de Estado” é antigo e vem mudando ao longo do tempo, desde que foi formulado na literatura francesa do século XVII, por Gabriel Naudé, em 1639. Alguns elementos que caracterizam o conceito, entretanto, têm se mantido. Um deles, é o fato dos golpes de Estado serem protagonizados por “órgãos de Estado” que, descumprindo os pactos constitucionais e/ou desconsiderando as linhas sucessórias legitimadas pelas convenções políticas vigentes, tomam o poder de Estado. Esta conceituação não é uma mera abstração, mas também é comprovada pela experiência histórica dos últimos dois séculos. Se os atores, métodos e justificativas dos golpes de Estado variaram ao longo da história, este elemento definidor tem se mantido estável. Portanto, a participação de “grupos detentores do poder político” de Estado[1], ou que ao menos ocupem nichos importantes deste poder (burocracia, parlamento, círculos palacianos), em golpes de Estado é um traço definidor deste tipo de ação política de conquista do poder. No século XX, a participação da burocracia militar (Forças Armadas) ou da polícia tem sido uma constante na maioria esmagadora dos golpes de Estado.

Via de regra, os golpes de Estado se colocam contra processos de “subversão da ordem social tradicional” (ou alegados como tais pelos golpistas), ameaçada pelos governantes legítimos que propõe reformas progressistas ou vistos como incapazes ou coniventes diante de uma crise social ou política. Mas os golpes também podem conter em si projetos políticos de mudança, tentando conciliar a manutenção de valores ideológicos e sociais tradicionais com processos controlados de “modernização” econômica. No caso brasileiro, esta segunda natureza dos golpes de Estado se manifestou, particularmente, ao longo da República e teve no Exército seu principal ator.

Neste ponto, surge a eterna discussão sobre as fronteiras entre golpes de Estado e Revolução. Ainda que um tanto normativo e ligado mais ao debate político do que acadêmico, este debate não deve ser menosprezado pela pesquisa histórica e pela reflexão mais aprofundada sobre o tema. Conforme Carlos Barbé[2], há duas grandes correntes para se pensar o problema. Uma parte da literatura entende que a fronteira entre Golpe e Revolução é que a segunda “instaura um novo ordenamento jurídico e político”, enquanto o primeiro é uma conquista do Estado para manter a ordem social e os interesses tradicionais dominantes em uma sociedade (portanto, trata-se de uma mera troca de liderança política). Há também um conjunto de autores que procura escapar desta discussão jurídico-normativa, entendendo o golpe de Estado como uma ação neutra em si mesma, um “método” de conquista do Estado pela força que não conteria, de maneira embrionária, uma forma política x ou y, tampouco seria típico de uma ideologia (no caso, da direita conservadora e autoritária, que tem estado por trás da maioria dos golpes de Estado da história contemporânea).

Se estas marcas gerais delimitadas na literatura acadêmica podem ser aceitas para se definir as linhas gerais do que seria um golpe de Estado, vários problemas e questões permanecem abertos à polêmicas e revisões. Além disso, há processos históricos importantes, com grande impacto internacional, que desafiam as tipologias e definições normativas em torno do que seja um golpe de Estado e suas fronteiras em relação à definição do conceito de Revolução.

Por exemplo, como nomear a ascensão do fascismo na Itália e na Alemanha, forma política totalitária que tomou conta do Estado, e instaurou uma nova ordem social e moral, a partir de um enredamento complexo com as ordenações jurídicas que lhes eram anteriores e a partir de processos eleitorais legítimos (no caso da Alemanha, sobretudo). Assim, quando Giorgio Agamben chama a atenção para as dificuldades e armadilhas de se delimitar claramente a ordem jurídica constitucional e pactuada (portanto, legítima e democrática) e o princípio do “estado de exceção”, não se trata de mera reflexão caprichosa e tonitruante, ainda que excessivamente normativa. Os “estados de exceção” podem habitar as ordens constitucionais, podendo ser mobilizados sem necessariamente a violação desta ordem para impor ditaduras violentas, como prova a experiência nazista. Esta constatação tem uma dupla consequência para o debate em questão. Em primeiro lugar, a tomada de poder por um grupo disposto a impor uma nova ordem (autoritária e baseada na força) e expurgar inimigos políticos pode acontecer dentro dos marcos eleitorais e/ou constitucionais vigentes.

Este debate nos remete à relação entre golpes de Estado como caminho clássico para imposição de ditaduras. Vale dizer que nem todo golpe de Estado conduz a uma ditadura, assim como algumas ditaduras na história não foram, necessariamente, produtos de golpes de Estado. O caso brasileiro de 2016, embora tenha incrementado a crise política e institucional no país, o golpe não se traduziu em um regime ditatorial que violasse princípios gerais das liberdades civis, independente dos abusos de poder e da intolerância social conectadas ao processo político que se seguiu. Neste caso, o avanço do ultraconservadorismo, cujo triunfo foi a eleição do candidato Jair Bolsonaro, foi construído a partir da conquista de postos parlamentares por grupos de direita, eleitos dentro das regras, e pelo manejo das normas jurídicas vigentes por setores conservadores do poder judiciário, em nome do combate à corrupção e da criminalidade.

A relação entre “golpe de Estado” e “revolução” é ainda mais complexa, pois a tradição crítica de esquerda resiste em aceitar que ambos processos possam se conectar. O debate em torno da tomada de poder pelos bolcheviques em 1917, recoloca precisamente esta questão. O Outubro russo que derrubou o governo menchevique foi uma revolução ou um golpe de Estado?

Independente das respostas plausíveis a esta questão, o fato é que processos golpistas e processos revolucionários não são simples de serem analisados e definidos, ainda mais quando se imbricam no mesmo processo histórico geral de crise de Estado e de regime. Via de regra, golpes e revoluções são ações políticas que fazem parte de processos históricos marcados por crises políticas e crises sociais, sobretudo em contextos nacionais onde a tradição constitucional e os valores democráticos não conseguem dar conta das contradições e conflitos postos na cena política, nem tenham se tornado parte do “senso comum” da sociedade em conflito.

Outra armadilha analítica é tentar definir a fronteira conceitual entre golpes e revoluções a partir de uma maior ou menor participação social nos processos políticos de ruptura com a ordem vigente. Isto pode nos conduzir à errônea concepção de que, a priori, golpes de Estado são feitos sem apoio popular ou social, quase meras movimentações políticas palacianas ou burocráticas. A experiência histórica mostra o contrário. Desde o famoso “18 Brumário de Luís Bonaparte”, brilhantemente analisado por Marx, passando pelo não tão famoso golpe de Estado conduzido por De Gaulle que derrubou a IV República francesa, chegando à nossa “Redentora” de 1964, devemos admitir o óbvio: golpes de Estado, de natureza conservadora, podem ter amplo apoio popular, ainda que concentrado em setores específicos da sociedade civil (quase sempre nas classes médias e nos setores populares mais marginalizados, olumpensinato).

O mais importante de todo este debate é não perder o lastro conceitual que define um golpe de Estado: a derrubada pela força, de um governo legítimo, muitas vezes incensando uma crise política e social que, em outros contextos, poderia ser contornada de outra maneira, dentro dos marcos constitucionais. Para tal é preciso reforçar a cultura política democrática em uma sociedade, pela escola, pela educação e pela formação geral do cidadão, bem como blindar as instituições para que elas não embarquem em aventuras golpistas, seja lá por qual motivo.

A capacidade dos arranjos constitucionais e das instituições políticas absorverem novas demandas sociais, novos atores políticos e estabelecerem freios a aventuras golpistas e valores autoritários, muitas vezes arraigados na sociedade, é o melhor antídoto para se evitar o golpe de Estado. E o pior dos cenários é quando estas instituições, elas mesmas, se abrem para as teses golpistas.

Marcos Napolitano é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo.


[1]Carlos BARBÉ in BOBBIO, N. Dicionário de Política. Editora UNB, Brasília, 1999, p. 547, 12ª ed.

[2]Idem. 

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O poder do Diabo

24 de fevereiro de 2019 by Observatório

Rafa Carvalho

Democracia.

Como poeta, gosto das curiosidades semânticas e etimológicas. Eu sei, essas são palavras difíceis. Mas, basta dizer que, como pessoa, gosto de raízes. Origem: tudo vem de alguma coisa. Teocracia, por exemplo. Seria um termo originado em Deus, “teo”. E poder: “cracia”. Um sistema de governo baseado nisso. Mais ou menos, o que fica subentendido nas pautas de um governo brasileiro atual, nacionalista e teocrata, pelo slogan.

Bem. Mantendo isso em vista, mas ainda pensando raízes, dá muita vontade de achar que democracia venha mesmo de: demônio. Pra mim, faz todo o sentido. No mito cristão de demônio, temos uma desavença parindo o que viria a ser todo o processo humano, de erro e errância no mundo. Para a minha formação cristã, foi muito difícil admitir: estamos muito mais longe de Deus, que do diabo. Nessa mitologia, o diabo inaugura a dualidade na Terra. E aí estaria todo o tempero da democracia: a diversidade das opiniões. Por isso, nesse sistema, votamos sim ou não, nisso ou naquilo; este ou aquela, no seu aspecto de representação.

Curioso é: “demos”, em grego, remete mesmo a povo. Pessoas. Só que para nós, aqui, na fortuna da língua portuguesa, isso é quase um plural de diabo. Agora, deixemos um pouco esse âmbito de lado, para sermos radicais de outro modo: pensar em outras raízes.

Nessa errância humana até aqui – não importando se começa à serpente, Adão e Eva; ou com o avô maior de Darwin – nós, praticamente, só erramos. O capitalismo errou. O comunismo, o socialismo, também. A guerra errou. A paz, também. A empreitada lusitana às Índias errou, assim como a colonização sul-americana decorrente disso, foi um erro. Erramos fazendo as coisas. E desfazendo-as, depois. A razão errou. A igreja errou. O primeiro papa errou. Os outros todos também. A psiquê humana funciona mesmo em favor de preservar alguns enganos. Enganando-se, sobre isso ser melhor à nossa sobrevivência. Muitas outras máquinas e engrenagens também fazem assim. No Brasil, nossos governos de direita falharam. E os de esquerda? Acho aí uma questão delicada. O ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil atesta que:  a fé não costuma falhar. Eu, na pieguice dos poetas, poderia dizer que o coração tende a isso. Mas, seria levar demais esse texto pra utopia, um realismo mágico, fantástico, afinal: quem é que usa o coração, hoje em dia?

No final dessas contas, o coração, só tem servido pra infartar. E enquanto isso, a gente vai levando. Ainda não falei da Constituição brasileira, que também falhou. Do SUS, maravilhoso em sua teoria, que também falha. Assim como tantas outras coisas de papel. Pirâmides e esfinges do mundo das idéias. Que na prática, têm a consistência de um papelete. Duma nota de dois, já surrada de bolso, amassada e umedecida com suor do trabalho. Um papelão, no meio dessa tempestade toda, democrática, que tem sido a vida.

A justiça brasileira: também falhou. Ela não se venda assim de imparcialidade, como em tese. Ela sempre foi seletiva. Como tudo é, na prática. Em resumo: tudo falhou, porque a humanidade falha. Nossa consciência falta e, dessa ausência, só o desastre se beneficia.

Se questionamos a seletividade, mas somos seletivos quando convém. Se abominamos a corrupção, mas, somos fáceis corruptíveis, sempre que viável. Como estamos? Não há possibilidade de democracia saudável, sem pessoas saudáveis. Sim. Há uma dívida histórica. Um ônus imenso. Pleno de justificativas. Mas você, independente de quem seja, tá semeando o que, com sua livre expressão democrática? Pra colher o que, com ela? Como tá seu espeto, ferreiro? Ferreira?

Há um risco enorme de estarmos muito subconscientes, neste momento. Muito mais répteis, que humanos. De não estarmos sendo gente o bastante. Se você se identifica como massa, calma, isso é compreensível. Vamos com fé, que eu tendo a confiar em Gil. E, oxalá, um dia dê certo. Mas, se você se considera crítico, formadora de opinião, isso pode ser bem grave. Quantos aqui estão pela doença? E quantos pela cura? Julgamento no SUS do outro, é sempre refresco.

Pesquise Marx, sobre o marxismo. Pesquise Cristo, sobre o cristianismo. Pense o diabo, sobre a democracia. Enfrentemos, quem sabe, os nossos demônios. Enfim. Assumamos isso. Talvez a cura ao diabo, a nossa, e da democracia, estejam todas juntas: interdependentes. E quem sabe um dia vamos reparar num absurdo: nada é mais espiritual nessa Terra, que a política. Ou que nada precisa de mais fé, que um materialismo dialético.

Não queria confundir vocês com esse texto democrítico. Verbocrático. Mas é que falamos demais, percebem? A gente diz que o Nietzschefoi ateu. Mas quem somos nós, pra falar de Nietzsche. Caetano Veloso se diz ser ateu, mas também, quem é Caetano, para tanto? Falar de si mesmo? Falamos tantas coisas de tanta gente. Por que será? Né? Dias atrás, um desses disseminadores de discórdia profissionais do Facebook disse que a astrologia seria a terraplana da esquerda. Bom, daria pra pensar em várias coisas antes como, que esquerda seria essa? E cadê? Mas o que mais me vem à mente é: lógico, Júpiter é mesmo muito minúsculo pra influenciar algo da grandeza e da proporção da figura humana. Nada mais democrático que isso.

Nessa mitologia judaico-cristã seríamos feitos à imagem e semelhança de Deus. O que nos faria, automaticamente, sermos a imagem e semelhança do diabo. Pense bem, dá uma lida lá, na Bíblia, como um livro mitológico. Lúcifer era o mais parecido a Deus. E fazemos isso, o tempo todo: questionamos às grandezas à nossa volta, por nos sentirmos maiores. Queremos ser mais, que os demais. Ou seja: de repente, nunca tenha existido democracia, porque nunca existiu povo. Dói, mas, quiçá: o povo, nunca quis existir.

Sim, tenho fé, que houve e que há exceções. Mas uma pergunta mais apropriada talvez fosse: onde me encontro, em tudo isso? Na fila da consciência humana, onde eu estou? Como esse termo, “cracia”, mexe com a gente. Poder. Eu não sei. E também não tô escrevendo aqui a favor de Deus, de um estado laico ou outra coisa, nem contra ateístas, nem nada assim, partidário. Gosto só de mexer o doce, como aprendi com a minha vó.

E aqui, a gente volta pro início. Lembra? Aquele papo das raízes. O que tem lhe mantido em pé? E por quê? É fácil ver que religiosos falharam no passado. Os fariseus, a inquisição. É fácil ver que religiosos falham hoje. Canais de televisão, igrejas multinacionais, bancadas políticas, liderança do país. Falham, dizendo-se religiosos. Mas essa palavra: religião. Que vem do latim: religar. Quando é que falhou? Essa práxis, um dia, sequer existiu? Religar a quê? Como? Por qual motivo? Aonde estamos, religados? E a fé, quando falhou? Fica difícil dizer. Mas, com esse mistério todo, só posso afirmar que Gil é uma espécie de raiz aqui, pra mim.

Tenho fé de que a fé não falha. E isso me dá esperança. Ainda. Mas, pode ser que nunca tenha havido teocracia, pois talvez nunca tenha havido Deus, no coração humano. E quiçá a democracia também não exista, pois não há povo, nesse mundo. “Cracia”, poder, de repente: é tudo o que há. E brigamos por isso como pavões, leões ou crocodilos. Com muito menos elegância, potência e reinado visível, em nossas ações. Ao mesmo tempo em que não usamos o que afirmamos ter “a mais”, que esses bichinhos. Consciência.

Enfim, nesse texto confuso, só quero mesmo pontear, que: somos feitos de barragem.

E as barragens: arrebentam. Muitos danos são tão absurdos, quando isso acontece, que beiram mesmo um eterno irreversível. E não nos enganemos, são muitas. Por todas as partes do mundo. E dentro, de todos nós. Tudo o que vemos hoje, na Terra e no Brasil, se deve a isso: as barragens se arrebentam. Somos feitos de água, como o planeta, majoritariamente. E quem é que pode, com a água?

Faço um resumo, só teórico e hipotético: o Brasil tem uma mineradora, estatal. Privatiza ela, a preço de banana, alegando prejuízos e mais uma série de coisas. Empresta dinheiro a quem vai comprar, a juros baixíssimos e prazos eternos, demonstrando toda coerência. Quem compra é coleguinha de quem agiliza a venda. Essa empresa perde qualquer possibilidade de trabalhar pelo povo (observando que ser estatal, só por si, não garante isso), para só trabalhar pelo lucro. Deliberadamente. Calcula-se riscos. Tudo é feito na ponta do lápis. Para maximizar os ganhos. O que há pra se preservar é o dinheiro. O poder. A “cracia”. Nada de “teo” acima de todos. Nada de “demos”. Nada de pátria. Tudo que acontece hoje, estava calculado. Para não dar prejuízo aos donos dos papéis. Que são, na prática, os donos do país. E não está dando.

A Vale tem sido uma empresa privada muito bem sucedida, no que se propõe, de fato. Desde sempre. Com uma ajudinha aqui, outra lá, das nossas tantas inconsciências humanas. Pois também estamos sendo bem sucedidos em poupar nossas capacidades de consciência, raciocínio lógico e humanidade. Esbanjamos avareza de amor, sorriso, alegria. E saúde mental.

Às vezes, poeta, fico imaginando Júpiter olhar pra gente, como hamsters dentro de uma jaula, na rodinha. Nós, com tantas coisas pra ostentar, escolhendo justamente a ignorância. Usando toda nossa pretendida vantagem, para sermos exatamente como nossos animais inferiores, só que com menos primor. Ser humano: animalzinho curioso. Não importa se imagem e semelhança de Deus ou de Darwin. Nós estudamos ratos demais, pra quem ainda nem se percebeu, tão bem.

Estamos todos juntos nessa. Agora, eu queria entender melhor esse lance do espiritismo. Confesso. Teria sido ótimo trombar com o Chico Xavier, por exemplo, num voo casual desses. Encontros de aeroporto, prum café ou algo assim. Porque eu fico pensando: todo esse desrespeito qualificado à vida, acontece hoje com Supremo, com tudo. Quer dizer: tá tudo acertado. Ordem e progresso. Vamos lá. A justiça tá ali, vendidinha. Quero dizer: vendadinha, como na estátua. E é óbvio: tudo isso, que eu digo, é mera especulação. Tipo bolsa de valores.

Mas aí eu fico sentindo – e peço licença democrática pra, num contexto laico, fazer uma reflexão dimensional distinta, desses campos mais assumidamente objetivos, que é: se há uma justiça maior, essa enfim sim justa; se há um tempo rei – de novo, Gil – fazendo esse mundo dar voltas, e dando a volta com tudo; se há essa responsabilidade universal, de cada ser, que algumas dessas figuras avatares disseram; se é mesmo fato que, aqui se faz, aqui se paga, como tantos já falaram, de Exú a Baiana System; imaginem só, o tamanho do fardo desses caras. Com tantas mortes assim, humanas, animais, vegetais. Naturais, de modos gerais. Imaginem a desgraça de viver com isso. Não importa se preso ou solto, com milhões na conta. Imagina o rebote do machado. Não tem cara de pau pra aguentar tudo isso. Imaginem certas barragens, quando elas se arrebentarem.

Rezemos por esses caras também. E se você for ateu ou atéia, não reze. Faça uma coisa linda, como faz Caetano. Estamos carentes de beleza, de alegria. E aqui sim, quero voltar de vez às raízes. Como eu disse, não venho com esse texto levantar a bandeira da astrologia – inclusive, se Júpiter for tudo isso mesmo, ele não vai precisar de mim, mísero eu. Nem tento julgar quem julga o Nietzsche, nada disso. Só sinto que pode ser uma boa entendermos melhor das nossas próprias barragens. Cuidar disso, antes dos desastres. Evitar dever, nessa praça, que gira infinita no tempo do mundo. Praticar a nossa consciência. Ver se isso envergonha, ou anula, a não-consciência da gente. Até a utopia perder seu sentido. E o poder, poder. Ser popular.

Fecho com Gil: mundo dá volta, camará! E vai ver, a democracia real começa assim: por dentro. Nas assembléias, dos demônios internos, dos cidadãos de bem.

Rafa Carvalho é poeta, finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2018.

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Nem burro nem suicida

24 de fevereiro de 2019 by Observatório

Bruna Mitrano

Após o resultado da última eleição presidencial, uma professora universitária que admiro disse algo de que discordei enfaticamente: se pobre não é burro, é suicida.

A frase pode parecer coerente, se considerarmos o contexto. Um rapaz dizia que no Complexo do Alemão – favela da cidade do Rio de Janeiro – a maioria dos moradores votou em Bolsonaro.

Há quem, de imediato, apoie minha discordância, argumentando que pobre não é burro, é desinformado. Discordo duplamente. E não discordo no afã de problematizar. Discordo porque nasci e vivo, há 34 anos, na favela.

Certa vez, uma professora que trabalhava comigo num Ciep no bairro de Cosmos, zona oeste do Rio, concluiu, horrorizada, que seus alunos eram loucos, pois tão jovens já sabiam quais facções criminosas comandavam cada comunidade.

Entendo que essa não era a informação que ela, como educadora, desejava que aquelas crianças tivessem, mas não tenho dúvidas de que tê-la não as tornava loucas.

O morador do asfalto quando sobe o morro se perde. E não apenas geograficamente. Ali, é ele quem não tem os conhecimentos muitas vezes necessários à sobrevivência.

O morador da favela tem, sim, acesso à informação. O que ele não tem é acesso à informação privilegiada, uma parcela partilhada entre a elite e que, vale ressaltar, não o interessa de imediato, se ele precisa saber, por exemplo, quais ruas têm passagem para carros e quais têm barricadas.

O desconhecimento do pobre que vota em Bolsonaro – porque acredita que é soldado do capitão, quando na verdade é o alvo – pode deixá-lo extremamente vulnerável. Porém, o desconhecimento de uma elite intelectual/cultural/econômica, que não sabe e/ou não procura saber o motivo de um pobre votar em Bolsonaro, é responsável por tragédias imensuráveis e quase sempre irreversíveis.

O pobre não é burro, muito menos suicida. Grande parte do Rio de Janeiro é comandada por paramilitares, a milícia. É ela quem garante a segurança em áreas abandonadas pelo poder público. O poder paralelo, que há muito deixou de ser paralelo, pune assaltantes, devedores, enquanto beneficia moradores com gás de cozinha, canais de tv fechada, internet, festas, manutenção e organização em geral.

É claro que o preço que esses moradores pagam para ter acesso a uma pequeníssima parte dos benefícios e dos direitos a princípio restritos à população privilegiada é muito alto. Ele vai desde a privação da liberdade, o silenciamento, até violências físicas, sexuais (como o estupro corretivo, que tem o objetivo de “converter” lésbicas à heteronormatividade, de torturar adúlteras, etc.). Ainda assim, a milícia (bem como o tráfico, em outras áreas) é a única referência de segurança e ordem que essas pessoas têm.

Vale destacar que não se trata aqui de defender as organizações criminosas como uma alternativa às falhas nas estruturas de poder. Pertenço à esquerda radical e antimilitarista. O que estou tentando dizer é: a lei da favela pode não ser justa e certamente é cruel, mas, a despeito disso, ou talvez por isso – considerando a racionalização dos atos de terror como exercício de dominação –, ela é uma das únicas, se não a única, que realmente funciona.

E então os moradores das áreas periféricas que votaram no candidato fascista serão julgados por quê? Por não pensarem no coletivo? Se o coletivo que eles conhecem são seus vizinhos, é a sua – como o nome diz – comunidade, se eles sequer têm tempo e dinheiro para frequentar os pontos turísticos da própria cidade e quando atravessam o túnel é para servir a patrões, se eles desconhecem representantes de partidos de esquerda que não se movimentam para além dos limites territoriais impostos pela lógica segregacionista…

Não, o pobre não é burro nem suicida. Muito menos egoísta. Ele protege a si e aos seus. O que a classe média não faz porque não se reconhece como, em determinados aspectos, opressora no passo em que é oprimida, também e entre outros, de um ponto de vista econômico. Sim, acima dela está a classe rica. No entanto, a elite intelectual/cultural é majoritariamente formada pela classe média.

Reconhecer privilégios é fundamental para qualquer mudança.

Se as esquerdas querem mostrar para o pobre que, num governo não democrático, ele é a principal vítima, antes de tudo, elas precisam fazer com que essa democracia seja funcional. Afinal, como convencer o povo a brigar por um modelo de governo que desde a origem conservou o poder na mão de poucos? Ou, como convencer um morador de área dominada pela milícia a não votar no candidato que vai beneficiar essa milícia, se ele vê no miliciano seu protetor – não por “burrice” nem inocência, mas por falha do Estado?

O primeiro passo, a meu ver, é compreender que não precisamos eleger representantes de “cima” – uma vez que ainda estamos aprisionados a uma ótica vertical – que falem pelo povo. É preciso dar voz ao povo. Numa democracia real, utópica, não no sentido de impossível, mas no sentido de até hoje nunca atingida, não basta ao governante estar “ao lado do povo”. É preciso ser povo.

Nesse sentido, é necessário mais que abrir as portas de museus, teatros, ceder cadeiras em universidades a fim de “democratizar informações”, se a dita oposição ao (des)governo atual não vai, mesmo perdida, mesmo out, até a periferia, para conhecer as demandas e entender os porquês desse “suicídio coletivo” – se é que as mortes já não foram dadas.

Bruna Mitrano é escritora, desenhista e articuladora cultural.

Arquivado em: Observatório

A limitação constitucional dos juros e o boicote dos bancos

22 de fevereiro de 2019 by Observatório

Fernando Ramos

Muitas pessoas não se atentam a isso, mas a regulamentação dos bancos e a limitação (ou não) dos juros bancários são as principais chaves para o sucesso ou o fracasso de qualquer governo. Se bem executadas, podem resultar no crescimento da economia e do emprego, no controle rígido da inflação e deflação, na justa distribuição de renda e no consequente aumento da mobilidade social.  Juros podem ser ferramenta de justiça social, uma das melhores formas de colocar em prática aquilo que está tão bem escrito e prometido em nossas leis; e somente nelas. Por outro lado, podem resultar em recessão, desemprego, descontrole inflacionário, expansão exponencial da dívida pública e aumento da concentração de riquezas, agravando a desigualdade social – e, com ela, a violência e o crime. Um dos maiores testes de soberania de um Estado consiste, simplesmente, em avaliar a capacidade do mesmo de regulamentar, fiscalizar e controlar as atividades do sistema financeiro, de forma que sejam elas convergentes ao interesse público e comum da coletividade. Em uma democracia real, os bancos, públicos ou privados, são obrigados a atuar a favor da população.

Infelizmente, no Brasil, nesse assunto, temos um péssimo exemplo para dar ao restante do mundo. Somos o segundo sistema financeiro mais lucrativo do planeta, perdendo apenas para a Suíça – a qual, nesse quesito, sabidamente leva “vantagem” sobre nós por conta de seu sigilo e permissividade perante a lavagem de dinheiro. Mesmo assim, por pouco o Brasil não ultrapassa rumo ao topo do ranking. Mas, se o assunto for as taxas de juros mais altas, segundoo Banco de Compensações Internacionais (BIS), órgão regulador dos bancos centrais em todo o mundo, somos líderes isolados em primeiro lugar. O nosso spread, diferença entre a taxa de juros que um banco cobra de quem pega dinheiro emprestado, e aquela que ele paga quando o próprio banco é quem pega o dinheiro em empréstimo (caso das poupanças, por exemplo), gira ao redor da média de 40%, contra 5% da média dos demais países emergentes. Mas o spread tupiniquim pode chegar a extorsivos 150% ao ano, fato que todos os usuários do cheque especial estão cansados de saber. Em qualquer nação civilizada, tais margens de lucro bancário seriam prontamente consideradas: crime contra a economia popular, lesão pecuniária, agiotagem, crime de usura, extorsão, enriquecimento ilícito. Só que estamos no país que elegeu Jair Bolsonaro.

Mas não para por aí: estudo publicado no dia 13/08/2006 no jornal “O Estado de S. Paulo” e elaborado pelo consultor em assuntos bancários, Carlos Coradi, demonstra que existe uma relação direta entre a quantidade de crédito disponível em um país e seu nível de desenvolvimento econômico e social. Assim, estabelece uma referência proporcional entre crédito ofertado e Produto Interno Bruto. No Brasil, temos uma oferta de crédito de 32% do PIB. No Chile, cerca de 60%. Nos Estados Unidos, chega a 80% do PIB, e na União Européia, 105%. É claro: por força da própria lei da oferta e da procura, máxima do liberalismo econômico, quanto maior a oferta de crédito, menor a procura, e assim, menores as taxas de juros, que são o preço do dinheiro. E quanto menores as taxas de juros, maiores serão a democratização e o dinamismo do setor produtivo, bem como maior a mobilidade social. Naturalmente, aumentam também os empregos e o poder aquisitivo, o que reaquece a indústria, o comércio e os serviços, gerando um ciclo de prosperidade que beneficia de forma mais igualitária a todos. Os ricos continuam ricos, uma vez que a economia está efervescente; mas os pobres, pouco a pouco, vão deixando a pobreza no passado.

Nos governos Lula e Dilma, muito foi feito em prol da expansão do microcrédito, de taxas de juros mais baixas nos bancos públicos, especialmente para o financiamento da habitação popular e da educação (vide os programas “Minha Casa, Minha Vida” e “Fies”, esse último já existia antes, mas foi bastante ampliado durante a presidência de Lula). No entanto, tragicamente, os programas sociais mencionados e inúmeros outros estão sendo cortados e cancelados numa velocidade gritante desde o Golpe de 2016. Lula também foi responsável pelo feito inédito de quitar por completo a dívida externa brasileira; mas nem ele teve a força e a coragem de colocar rédeas na verdadeira mamata que impera nesse país, que nunca foi a da cultura (conforme alardeado aos quatro ventos por politicos tacanhos da extrema-direita), mas sim a mamata da ciranda financeira. Apesar das tão evidentes melhorias, ainda assim, a era Lula foi um dos períodos mais lucrativos da História para os bancos brasileiros. O que demonstra que faltou maior firmeza nesse aspecto. Apesar dessa ressalva, considero Lula o melhor presidente que o Brasil já teve, e sei que a História, em seu devido tempo de maturação, não negará a ele esse posto. Inda mais considerando que sua prisão foi uma prisão política, julgada por um Tribunal de Exceção com base em leis e preceitos inexistentes em nosso ordenamento jurídico, condenado sem provas, de forma parcial e persecutória, por um suposto crime, meramente hipotético e absolutamente indeterminado, por meio de um processo penal inquisitório que instaurou uma regressão civilizatória e institucional que situa o Brasil, na linha do tempo, antes da Revolução Francesa e do Iluminismo.

Mas nem sempre foi assim. Em 1988, ano da promulgação da nossa Constituição Cidadã, o maior marco simbólico e jurídico do processo de redemocratização, posterior aos 21 anos de ditadura militar que devastaram o país, suas instituições, sua educação e cultura, todos tínhamos motivos de sobra para termos esperanças. Afinal de contas, a maior lei do Brasil estabelecia inúmeros direitos e garantias individuais, restaurava a plena liberdade de expressão, determinava a obrigatoriedade da função social da propriedade para que a mesma fosse mantida (abrindo espaço para a tão urgente reforma agrária), reassegurava o direito de greve e união sindical, fixava porcentagens mínimas do orçamento anual da União para a saúde, educação e cultura, defendia o Estado Laico, afastando a pecha da moral e dos bons costumes para longe das políticas públicas, lançava as bases do nosso direito ambiental e protegia a demarcação das terras indígenas; além de duas medidas altamente transformadoras da realidade social: o imposto sobre grandes fortunas e a regulamentação do setor bancário, trazendo a limitação indistinta entre bancos e pessoas físicas para a cobrança de juros, que deviam agora respeitar o teto de 12% ao ano, por força do artigo 192, caput e parágrafo terceiro, da Carta Magna. Todavia, assim como o orçamento para a cultura nunca atingiu de fato o mínimo de 1% do orçamento anual da União, até hoje estamos aguardando o imposto sobre grandes fortunas e a regulamentação do setor bancário e suas desenfreadas taxas de juros.

No caso do artigo 192 da Constituição, o lobby bilionário do sistema financeiro conseguiu impregnar no STF a estranha noção de que tal artigo seria apenas uma norma programática, de eficácia contida, condicionada em seus efeitos pela aprovação de uma futura lei complementar. Enquanto isso não ocorresse, os bancos estariam liberados para praticar quaisquer taxas de juros. A despeito de uma ação direta de inconstitucionalidade que tencionava obrigar a imediata edição de tal lei complementar, assim como dos veementes protestos de alguns ministros do Supremo (como Paulo Brossard, já falecido, e Marco Aurélio Mello, ainda parte de tal órgão julgador e o melhor entre os 11 ministros atuais), os bancos conseguiram fazer essa lei ser postergada por 15 anos. Até que, no ano de 2003, deram a cartada final: a limitação indistinta dos juros a 12% ao ano caiu por terra com a Emenda Constitucional número 40, que revogava o parágrafo terceiro do artigo 192 da Constituição. E assim, fomos reprovados de vez no teste da soberania nacional. Mas, para entendermos melhor de que forma chegamos até esse ponto crítico, vamos antes retroceder um pouco na linha do tempo.

Na década de 1930, a lei da oferta e da procura, a auto-regulação do mercado e os demais preceitos difundidos por Adam Smith e David Ricardo se mostraram insuficientes para estabelecer um ponto de equilíbrio econômico sustentável. Constatados os efeitos nefastos da Crise de 29, caía em descrédito a convicção exacerbada no liberalismo econômico. Começa a ganhar campo, em diversos países, a teoria do intervencionismo. E em 1933, auge da crise cafeeira no Brasil, o governo se posiciona: a cobrança de juros excessivamente altos é um grave obstáculo para a produção e uma ameaça ao nível de empregos. Nesse mesmo ano, foi editado o Decreto 22.626, a Lei da Usura, que limitou a liberdade para a estipulação contratual dos juros e proibiu o anatocismo: a cobrança de juros sobre juros. Especificamente, o artigo primeiro dessa lei vedou a estipulação de juros acima do dobro da taxa legal vigente, ou seja, acima de 12% ao ano. A usura, delimitada acima dessa fronteira, é tipificada como crime, cabendo prisão entre 6 meses e 1 ano, além de multa, decretação da plena nulidade do negócio jurídico, bem como a devolução do valor pago em excesso.

No entanto, a Lei da Usura já prenunciava o entendimento que ganharia vulto 31 anos depois: a quebra do princípio da isonomia (pelo qual todos são iguais perante a lei) para a salvaguarda das instituições financeiras. É que o artigo 17 expressamente excluiu da subordinação à Lei da Usura as ditas Casas de Empréstimo Sob Penhores e Congêneres, os bancos daquele período. Todavia, tal distinção foi revogada pelo Decreto 1.113/39, sob forte clamor popular. Sendo assim, durante 25 anos (entre 1939 e 1964), a Lei da Usura se aplicou indistintamente a bancos e particulares, sendo também obedecida pela Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), instituição análoga e precursora ao Banco Central do Brasil. Os bancos da época operavam normalmente, e prosperavam, mesmo limitados a 12% ao ano de juros.

Mas o país transitava a passos largos para uma economia calcada na indústria, restando em segundo plano o setor primário da produção nacional. O novo desafio do governo era fomentar rapidamente o desenvolvimento econômico de maneira equilibrada entre todas as regiões do Brasil. Torna-se imperativa a disponibilização de recursos monetários que amparassem tal desenvolvimento. É assim que surge a Lei 4.595/64, suspeitamente datada de 31 de Dezembro, exatos 9 meses após o Golpe de 1964. Estava completa a gestação do mal: nascia a Lei de Regulação dos Bancos, logo alcunhada “Lei de Liberação dos Bancos”. Isso porque, ato contínuo à sua sanção, verificou-se acalorado debate jurídico sobre o seu artigo 4°, inciso IX que, criando o Conselho Monetário Nacional (CMN), outorgou-lhe competência para limitar as taxas de juros das instituições financeiras, desconsiderando a vigente e precedente Lei da Usura.

O embate surgiu em torno de três posicionamentos. A primeira corrente, dita liberal, afirmava que a Lei 4.595/64 revogava temporariamente a Lei da Usura, restaurando por certo período a plena liberdade de estipulação dos juros que havia antes dela. O delito de usura deixaria de existir, mas apenas até o momento em que o CMN decidisse pela determinação do novo patamar de limitação das taxas. Tal liberalidade temporária se estenderia a todos os cidadãos, inclusive às recém nomeadas instituições financeiras. Por outro lado, outros (entre os quais hoje eu me incluo), protestavam que a limitação imposta pela Lei da Usura possuía a função social de coibir a lesão pecuniária e o agiotismo, que contrariavam os interesses do Estado. Portanto, não deveria ser admitido o silêncio sobre fato juridicamente relevante. Assim é que tal corrente, dita conservadora, interpretou a questão: continuam vigentes as limitações presentes na Lei da Usura, podendo o CMN, todavia, em caso de necessidade, refixar os limites para baixo dos já existentes. Mas nunca para cima. Acrescentavam, ainda, que o artigo 36, parágrafo 2°, da Constituição Federal de 1946, a exemplo de nossa atual Constituição,proibia a delegação de poderes. Sendo assim, um órgão criado pelo Poder Executivo não poderia apoderar-se, por dispositivo legal inferior à Constituição, daquilo que é competência exclusiva do Legislativo.

Entre liberais e conservadores, ainda havia aqueles que diziam que a Lei 4.595/64 apenas revogou a Lei da Usura no quanto aplicável às instituições financeiras. Posição curiosa, posto que sem referência expressa ou indireta do texto legal, sem embasamento constitucional e contrariando os valores protegidos pela Constituição então vigente. Adianto que a corrente conservadora detinha a razão, por 3 simples motivos: 1) é o único trilho a ser percorrido diante da análise completa e sistemática de tais leis; 2) é a única tese que se harmoniza com a motivação para criação dessas leis, exposta nos fins sociais das duas normas em conflito; e 3) é a única que não fere o princípio maior da isonomia. Infelizmente, venceu a terceira corrente: os bancos estariam liberados da Lei da Usura, mas não os cidadãos. Ou seja: os bancos ganharam concessão exclusiva e licença legal para praticar agiotagem sem arcar com o ônus da concorrência externa. Mas essa controvérsia se arrastou até 15/12/76, quando o STF editou a Súmula 596, que reiterava os termos da terceira corrente, acima mencionados.

Faz-se necessária a observação de que, a partir da entrada em vigor da Lei 4.595/64, são as instituições financeiras privadas, organizadas e regulamentadas por essa mesma lei, as principais financiadoras da dívida pública. Isso durou até o início da década de 1990, período no qual a captação da poupança interna pelos bancos nacionais se destinou quase que integralmente à compra de títulos públicos. Para viabilizar a aderência irrestrita das instituições financeiras aos planos de financiamento público, foi criado o mercado aberto, que vinculou a emissão dos títulos de dívida pública exclusivamente a essas instituições. E ainda outro benefício foi concedido. Em 09/04/76, portanto, antes da consolidação da Súmula 596, o Banco Central editou a Resolução 366, permitindo que cada pessoa jurídica participante do sistema financeiro nacional adquirisse montante de títulos públicos equivalente a até 15 vezes o seu Patrimônio Líquido. É a dita taxa de alavancagem. Significa dizer que cada 1% de rendimento advindo dessas carteiras poderia representar até 15% de lucro incorporado ao Patrimônio Líquido dos bancos. Posteriormente, esse limite foi dobrado para 30 vezes o Patrimônio Reajustado. Começava de vez a ciranda financeira no Brasil. Menos de 8 meses depois, era editada a Súmula 596 do STF, que liberava os bancos da Lei da Usura. Mas, 2 meses antes de sua edição, o CMN já havia se adiantado, publicando a Resolução 389, que autorizava aos bancos comerciais a cobrança de juros com “taxas de mercado”. Um critério vago e permissivo.

Por outro lado, aos cidadãos comuns, o significado dessa medida era de que, em face da avaliação de um risco de não-restituição superior àquele suportado nas transações com o governo, o lucro de tais empréstimos, coincidente com o chamadospread bancário, deveria ser superior àquele auferido com o financiamento da dívida pública. Isso porque, do contrário, interessaria aos bancos a total alocação do crédito junto ao governo, raciocínio que demonstra o quão distante já se encontrava a aplicação da Lei 4.595/64 dos fins sociais invocados na sua explanação de motivos. Paira sobre esse período da nossa História a fundamentada suspeita de que a edição da Súmula 596 pelo STF tenha sido a ratificação política de uma troca de interesses entre os bancos e o Estado, a despeito dos barbarismos jurídicos envolvidos nessa escolha, da qual decorre a reduzida flexibilidade do spread bancário, a qual obsta o desenvolvimento econômico, gera desemprego e lesa excessivamente os interesses patrimoniais dos particulares, para viabilizar a má gestão de uma dívida pública gigantesca.

A partir dos anos seguintes à edição da Lei 4.595/64, a falta de limitação dos juros e do anatocismo para as instituições financeiras foi e ainda é um dos principais fatores de amparo e fomento ao peculiar processo inflacionário brasileiro. Sim, pois o custo do dinheiro é um importante custo de produção, aumentando o preço de bens e mercadorias. A transferência desse custo excessivamente alto para o preço final de uma mercadoria corrói o poder aquisitivo do assalariado, desatualizando o valor da moeda. Na verdade, o cidadão comum paga muitas vezes pelo ônus das taxas de juros mais altas do planeta. Paga quando aplica dinheiro em conta-poupança e aufere ínfima remuneração de cerca de 0,6% ao mês, pela questão da inflexibilidade do spread. Pelo mesmo motivo, paga cerca de 155% ao ano de juros no cheque especial. Paga a classe média e também os mais pobres cerca de 50% do salário em impostos, pois o governo está endividado em virtude do crescimento acelerado de uma dívida pública manejada a altos preços, necessitando majorar as receitas tributárias – sem que esse acréscimo, todavia, seja revertido proporcionalmente na prestação de serviços públicos à população. E, por fim, a nefasta correção monetária, invenção imediatista tipicamente tupiniquim, alimenta a espiral inflacionária, já que podemos inflar os custos de vida e de produção tranquilamente: afinal de contas, atualizamos nosso dinheiro periodicamente.

Estando a maior parte das receitas tributárias do Brasil previamente compromissadas perante o pagamento dos juros da dívida pública e sua amortização, tornam-se quase inviáveis as políticas de distribuição de renda e a concretização dos objetivos constitucionais. Comprovo: no ano de 2001, ao fim da era FHC, 71,34% do orçamento da União foi despendido com o pagamento dos juros e amortização da dívida pública. Isso significa que, nesse ano, todos os dias, o governo federal gastou cerca de 0,2% do seu orçamento apenas para controlar e administrar o déficit público, mantendo uma boa relação com os seus credores. Na prática, algo não muito diferente do caso dos moradores das favelas, que devem entregar seus parcos recursos para pagar o crime organizado em troca de segurança; mas, nesse caso, em troca da segurança econômica. A violência pode falar muitas línguas, não apenas a língua das armas e da força bruta. Enquanto isso, nesse mesmo ano de 2001, a fatia orçamentária da Justiça foi de 0,67% (o mesmo pago por cerca de 3 dias de juros da dívida pública); da assistência social, 0,55% (3 dias de juros); da saúde pública, 2,49% (12 dias de juros); da educação, 1,39% (6 dias de juros); da segurança pública, 0,26% (1 dia de juros); da cultura, 0,03% (4 horas de juros); da habitação, 0,14% (18 horas de juros); do saneamento básico, 0,05% (6 horas de juros); da ciência e tecnologia, 0,22% (1 dia de juros); da agricultura, 0,82% (4 dias de juros); da energia, 0,12% (11 horas de juros); e do transporte público, 0,53% (2 dias de juros).

Diante de tão trágica constatação, é difícil acreditar que, em Brasília, não exista um “Ministério de Assistência Social às Instituições Financeiras”. Foi desvirtuada, há um bom tempo, a função essencial dos impostos no Brasil. Somos, direta e compulsoriamente, doadores de fundos para o pagamento dos juros de um déficit público que nunca foi bem negociado ou gerido. Indiretamente, doadores dos recursos que compõem o lucro exorbitante dos bancos. É o dilema do preço do dinheiro no Brasil: nossa população já poderia ter comprado diversas vezes todo o sistema financeiro nacional. É o que se comprova da leitura da mesma reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo” de 13/08/06: “É tão alto o retorno dos bancos brasileiros que em apenas quatro anos os lucros dobram o patrimônio.”

Um estudo de Fernando Gasparian publicado no livro “A Luta Contra a Usura” atesta que: “(…) estimativas dignas de crédito mostram que, nos anos 50, durante o governo Kubitschek, os salários constituíam cerca de 60% da renda nacional. Hoje, os salários, segundo alguns cálculos, não passam de 37%. 23% da renda transferiram-se, dessa forma, das mãos de quem realmente produz para outros setores. Segundo o IBGE, em 1960, o setor financeiro detinha 6,8% do Produto Interno Bruto, enquanto o setor agropecuário recebia 22,5% da produção gerada pelo trabalho de todos os brasileiros. Em 1988, o quadro já era outro: os bancos apropriavam-se de 14,5% do Produto, enquanto o setor agrícola ficava com apenas 8,7%. A situação somente se normalizará quando, a exemplo do que ocorre em outros países, a participação dos bancos declinar para 4% ou 6% do PIB.”

De volta à linha do tempo,em 05/10/1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, que, pertinente ao tema, contextualizada no franco padecimento de toda a economia aos pés de um pesadelo inflacionário, e às voltas com a insustentabilidade do déficit público, buscou sanar esse círculo vicioso através de nova tentativa de limitação das taxas de juros, sem distinção. Assim dispunha o artigo 192 da Carta Magna, bem como seu parágrafo 3°: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar (…) § 3°.As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.” Já sabemos o triste fim dessa história.

É quase desnecessário observar a inconsistência das teses jurídicas que, infelizmente, encontraram amparo no STF, porquanto a moderna Ciência do Direito não admite a simples inoperância de preceitos constitucionais perante condicionamentos de regulamentação. Vale dizer: inda que se acate a necessidade de regulamentação da limitação aludida via lei complementar, a simples inexistência da mesma não retira a força do artigo constitucional, estando vinculadas as posteriores atividades legislativas e o posicionamento do Judiciário à lei maior. Nesse caso, cabe ainda outra observação: quando o parágrafo terceiro do artigo 192 estabelece que a cobrança acima do limite se constitui em crime de usura, punível nos termos determinados pela lei, faz, obrigatoriamente, referência à Lei da Usura, recepcionada pela Constituiçãoe aplicável à matéria, posto que a lei anterior, inferior e específica não é revogada tacitamente pela lei posterior, superior e genérica; exceto naquilo com o qual a primeira se conflita em face da última. Não há que se falar, portanto, em eficácia contida do artigo 192 ou de seu parágrafo terceiro. Sendo a Constituição a base da construção hierárquica do nosso ordenamento jurídico, por si sópossui eficácia imediata. Dizer o contrário implica corroborar a grave crise pela qual passa o Judiciário brasileiro, motivada pela relativização constitucional e pelas reformas arbitrárias impostas à lei maior. Implica, em última instância, defender a desconstrução da lógica sistêmica de nosso ordenamento jurídico.

Ademais, não pode o cidadão pagar mais juros a um banco do que já paga ao Estado, por exemplo, quando se atrasa no recolhimento de impostos. Isso porque também o Estado é um sujeito de direitos, inclusive naquilo que tange ao princípio da isonomia. E a taxa de juros que o contribuinte paga ao governo está limitada a 12% ao ano. Os mesmos 12% ao ano previstos na Lei da Usura, ainda parcialmente vigente. Os mesmos 12% ao ano estipulados pelo Código Civil como taxa de juros legais. Na verdade, trata-se de um número herdado da antiga tradição do Direito Romano, de onde emana a base de nosso sistema legal. E notem: lembrando que o rendimento médio de uma poupança brasileira é de 0,6% ao mês (equivalente a cerca de 7% ao ano), e que a média do spread bancário nos demais países emergentes é de 5% ao ano, temos que 7% + 5% = 12% ao ano. Ou seja: mesmo que o sistema financeiro nacional estivesse, de fato, restrito a cobrar o máximo de 12% ao ano de juros, ainda assim, poderia pagar os mesmos 7% ao ano na poupança e manter a mesma margem de lucro representada pelos 5% ao ano da média do spreadnos demais países emergentes. Os banqueiros brasileiros continuariam a ser bilionários; porém, não mais levando o país inteiro para o buraco em nome da ciranda financeira.

Apesar da revogação do parágrafo terceiro do artigo 192 da Carta Magna pela Emenda Constitucional 40/2003, ainda permanence intacto o que restou dessa norma. E o que dela restou é mais do que suficiente para que, via lei complementar, ainda hoje seja regulamentado corretamente o sistema financeiro nacional, inclusive no que tange à limitação da taxa de juros bancários. Isso seria nada menos do que revolucionário, no sentido do potencial transformador dessa medida. Para tanto, bastaria que houvesse vontade política por parte do Congresso, do STF e da Presidência da República. Mas, em tempos de obscurantismo medieval, com Bolsonaro Presidente e o banqueiro Paulo Guedes enquanto Ministro da Economia, além de um Congresso medíocre e uma maioria dos ministros do STF vendida aos encantos financeiros do Golpe de 2016; para não mencionar o inquisidor Sérgio Moro no Ministério da Justiça, ao que tudo indica, ainda teremos que esperar por um bom tempo até o fim da ciranda financeira no Brasil. Enquanto isso, um conselho de amigo: não peça empréstimos, e guarde todo o dinheiro que você não precisar gastar debaixo do colchão. Assim, certamente, ele estará bem mais seguro do que nas garras do ganancioso, insaciável e extorsivo sistema financeiro nacional.

Fernando Ramos é escritor, cineasta, compositor, artista plástico e advogado formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).

Arquivado em: Observatório

E que democracia é essa que a gente tanto quer? – ou, porque as instituições podem estar funcionando e ainda assim estar tudo errado

22 de fevereiro de 2019 by Observatório

Paula Bernardelli

Quando falamos de democracia o senso comum sempre vem arrastando a ideia de que democracia é um governo de maioria. Que “a maioria vence” ou, como foi dito em uma campanha eleitoral por aí, “que as minorias têm que se curvar às maiorias”.

Essa ideia permeia uma lógica social simplificada de compreensão das estruturas democráticas, e o problema maior é que boa parte do funcionamento real das estruturas parece confirmar isso.  Eleições para a presidência, governo estadual, senado e prefeitura seguem a lógica da maioria, simples ou qualificada. A aprovação de leis e emendas e até as decisões em tribunais colegiados se dão por maioria.

É um problema não porque as decisões necessariamente não devam ser tomadas dessa forma, mas sim porque nos acostuma com essa lógica majoritária que nem sempre – ou quase nunca – nos ajuda a pensar de forma democrática.

Rory Sttewart, membro do parlamento britânico, em um discurso sobre porque as democracias importam, resumiu de forma bastante clara a ideia central de o que é uma democracia afirmando que “A democracia é importante porque ela reflete uma ideia de igualdade e uma ideia de liberdade. Ela reflete uma ideia de dignidade, a dignidade do indivíduo, a ideia de que cada indivíduo deveria ter um voto igual, uma contribuição igual, na formação de seu governo.”

E se a qualidade maior de uma democracia reside justamente essa premissa de igualdade, não há sentido algum em acreditar num modelo em que as demandas de parte da população devem ser ignoradas porque constituem uma minoria.

A ideia democracia, portanto, tem muito mais a ver com a busca de consensos entre as diversas forças sociais, que com a definição de quem são os grupos majoritários – ou majoritariamente representados.

Quando se parte para uma ideia de busca de consensos a dinâmica das estruturas institucionais ficam mais complexas e, com isso, mais difíceis de entender. A formação das casas legislativas de vereadores e deputados, por exemplo, costuma ser apontada como a mais confusa e menos compreensível pela população. A forma de composição proporcional das câmaras costuma, inclusive, ser tratada como uma distorção do sistema, como se fosse menos democrático um modelo de composição mais plural de um espaço decisório, justamente porque não respeita uma lógica majoritária.

Essa recusa de aceitar como premissa democrática a necessidade de que todos aqueles que compõem a sociedade estejam representados na formação dos espaços de poder cria uma outra lenda da democracia amplamente difundida: a ideia de que o que importa é a eleição, e qualquer disputa por espaço após isso é não aceitar seu resultado. A ideia de que o candidato eleito deve governar única e exclusivamente para aqueles que o elegeram.

Alimenta-se com isso um cenário em que parece mais legítimo tentar construir maiorias que definirão, por serem maiorias, os rumos de tudo, do que tentar construir espaços de fala legítimos e representatividade institucional. Parece mais válido demonstrar que está do lado de uma alegada maioria do que trabalhar para ouvir o máximo de vozes na tomada de decisões.

Limita-se, assim, a ideia de povo. Fazer algo “em nome do povo”, ou cumprir “a vontade do povo” se restringe a fazer, no fim, a vontade de um único grupo. Uma lógica democrática estruturalmente majoritária é cruel porque retira de parcela da população o direito de se sentir parte do todo.

Mais do que discutir se a construção de um modelo puramente majoritário de democracia é bom ou ruim em si, cabe questionar: é esse o modelo de democracia que nós queremos? Um cabo de guerra constante para definir quem é a maioria quem serão os grupos silenciados? Um modelo de país que submeta toda uma população a vontade da maioria que compareceu às urnas? Uma estrutura de governo que ignore a existência de uma parcela da população?

Não parece que seja esse o melhor modelo de país, muito menos o modelo delineado em nosso texto constitucional.

A ideia de uma democracia plural, em oposição a um modelo majoritário, pressupõe uma tomada de decisões que vise um bem comum a partir da perspectiva de todos aqueles que compõem o todo.

É por isso, acima de tudo, que a democracia é trabalho constante, não se consolida com a promulgação de leis ou mesmo com um respeito das instituições àquilo que foi legislado por um parlamento eleito. Rory Sttewart resume a ideia afirmando que “democracia não é só uma questão estrutura, é um estado mental”.

Por isso é esperado que nossos governantes, todos eles, estejam operando neste estado mental. E com isso lamentem quando vozes são excluídas do debate, ainda – ou talvez principalmente – que sejam vozes de oposição.

Por isso é esperado que lamentem – e nunca, nunca mesmo, comemorem – o assassinato de uma vereadora, o medo de um parlamentar de permanecer no pais, as ameaças recebidas por outros políticos.

A inexistência desse lamento é fervorosamente apontada como antidemocráticas não porque partam de pessoas que ocupam as estruturas de forma ilegítima, mas porque partem de uma lógica decorrente de um estado mental claramente autoritário, e é bastante difícil acreditar que pessoas que funcionam numa lógica autoritária sejam realmente capazes de gerir instituições democráticas.

A instituições funcionarem de acordo com a lei cumpre apenas e tão somente um dos requisitos da democracia, mas para ser democrático de fato precisa cumprir todos os outros, precisa ser plural e inclusivo.

Quando se justifica a construção de um governo que não preza pela pluralidade em cada um dos seus atos, que não quer entender as diversas perspectivas em cada uma de suas decisões é importante estar alerta para aquilo que se legitima: esse discurso pode ser a defesa de qualquer coisa, menos de uma democracia.

Paula Bernardelli é advogada eleitoralista.

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Democracia sem mulheres, igualdade sem metade da população

22 de fevereiro de 2019 by Observatório

Karoline Ferreira Martins

Nas últimas eleições, o PSL repassou 400 mil reais à secretária do partido e candidata à deputada federal Maria de Lourdes Paixão, que obteve apenas 274 votos. Além de a quantia representar o terceiro maior repasse de verba para campanha da legenda no pleito de 2018, foi disponibilizada à candidata apenas três dias antes da eleição. Lourdes Paixão declarou, por essa razão, não ter conseguido fazer campanha. Questionado sobre as evidências de que o caso configuraria de uma candidatura laranja, Luciano Bivar, presidente nacional do PSL, preferiu colocar a culpa na lei que determina cotas de candidatura para mulheres e a afirmar que política “não é muito de mulher” e que isso “é uma questão de vocação”.[1]

A afirmação do presidente do PSL é emblemática e representativa do pensamento de grande parte dos parlamentares que hoje ocupam as cadeiras do Congresso mais conservador desde 1964.

A despeito de representar mais de 50% da população brasileira, as mulheres ocupam hoje apenas 10,5% das cadeiras da Câmara dos Deputados. O Brasil ocupava, em dezembro de 2017, a 152ª posição entre os 190 países que informaram à Inter-Parliamentary Union (IPU)[2] o percentual de cadeiras – em suas câmaras ou parlamento unicameral – ocupadas por mulheres em exercício. Foi o pior resultado entre os países sul-americanos.

No entanto, atribuir esse déficit de participação a uma suposta vocação inata dos homens para a política e das mulheres para as responsabilidades domésticas é uma leitura demasiadamente simplista de um fenômeno que ultrapassa, e muito, as explicações biológicas e de uma pretensa naturalização do que é eminentemente fruto de uma longa construção histórico-cultural do machismo na sociedade.

Há pelo menos dois elementos que gostaria de explorar brevemente nesse texto e que considero centrais para a compreensão do déficit de participação das mulheres na política: a dualidade entre esfera pública e esfera privada e a divisão sexual do trabalho.

A esfera pública é compreendida como o espaço da política, na qual os cidadãos, em condição ideal de igualdade, deliberam publicamente sobre os destinos da comunidade e em que se realiza o trabalho produtivo. A esfera privada, por sua vez, é tida como o espaço dos afetos e da privacidade, em que não deve incidir o poder invasivo do Estado. Essa separação provoca uma invisibilização das relações de poder e desigualdade travadas na esfera privada. Relações essas, que influenciam e trazem elementos para que compreendamos as relações construídas no espaço público.

Os papéis historicamente conferidos às mulheres, de criação das crianças e do trabalho doméstico, retiram das mulheres recursos valiosos para a atuação na esfera pública como a renda e o tempo livre. De outro lado, ao desobrigarem os homens dessas tarefas, permitem que estes tenham maior participação e influência no espaço público. Desse modo, a compreensão das relações de poder na esfera pública requer a análise, indissociável, – porque complementar – das relações que se dão em âmbito privado.

A crítica feminista permite observar que a suspensão das relações de poder na esfera privada, como tópico e problema de primeira ordem para as abordagens no âmbito da teoria política, faz mais do que deixar na sombra as experiências de parte dos indivíduos ou parte da vida de todos eles. O entendimento do que se passa na esfera públicaé deficiente, nesse caso, porque ficam suspensas e mal compreendidas as conexões entre as posições e as relações de poder na vida doméstica, no mundo do trabalho e na esfera dos debates e da produção das decisões políticas.[3]

A dualidade entre esfera pública e esfera privada também é um empecilho para que as relações de opressão e violência dos homens sobre as mulheres sejam objeto de interferência estatal, por se tratarem do espaço da autonomia e da privacidade. As próprias teorias da justiça, no âmbito da ciência política, trataram historicamente de conceber a noção de justiça limitada à esfera pública, invisibilizando as desigualdades existentes nas relações privadas.

Daí, a máxima dos movimentos feministas segundo a qual “o pessoal é político”. Essa afirmação implica em dizer que o âmbito privado também é regido por normas e valores políticos e caracterizado por desigualdades culturais e historicamente construídas. As relações ali travadas compõem e influenciam o que deve ser compreendido como pauta e agenda da política[4].

Ao trazer para o debate público questões como a sexualidade, o conhecimento do corpo, o questionamento dos padrões familiares, o direito ao aborto, o direito de ter ou não ter filhos, a liberdade de orientação sexual, entre outros temas, o feminismo traz uma nova visão do que deve ser a pauta da política. Questiona também a divisão sexual do trabalho, a ausência de compreensão da relação entre produção e reprodução, o papel do trabalho doméstico nas relações pessoais e na economia. A isso se soma a denúncia da violência sexista.[5]

Outro elemento decisivo para a compreensão da desigualdade de gênero é a divisão sexual do trabalho. À mulher incumbiu-se, historicamente, o trabalho reprodutivo, o cuidado com a família e as responsabilidades da casa – trabalho não remunerado e, ainda hoje, por muitos, sequer considerado trabalho. A sua inserção no trabalho fora de casa é vista como complementar e intermitente, o que justificaria a percepção de salários menores. Ao homem, coube o trabalho produtivo, de provedor econômico da família e detentor de direitos sobre a esposa e os filhos, em detrimento de outras tarefas domésticas que, nesses moldes, culturalmente são atreladas à mulher como um fardo imposto pela natureza.

O que a fala do deputado Luciano Bivar parece querer ocultar, ao atribuir a baixa representatividade da mulher na política à falta de vocação, é que as condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino biológico, mas, sobretudo, construções sociais. Homens e mulheres formam dois grupos sociais envolvidos numa relação social específica: as relações sociais de sexo, cuja base material é o trabalho. A divisão sexual do trabalho se caracteriza pela separação: há trabalhos de homens e trabalhos de mulheres; e pela hierarquização: o trabalho do homem tem mais valor que o da mulher.[6]

A cientista política Flávia Biroli, em seu livro Gênero e Desigualdades desenvolve a tese segundo a qual a divisão sexual do trabalho interfere diretamente nas possibilidades de participação das mulheres na política. Segundo a autora, “a divisão sexual do trabalho doméstico incide nas possibilidades de participação política das mulheres porque corresponde à alocação desigual de recursos fundamentais para essa participação, em especial o tempo livre e a renda”.[7]

Assim, o encargo do trabalho doméstico, somado a fatores como a imposição social da maternidade e do papel de cuidadora, os limites para o controle autônomo da capacidade reprodutiva das mulheres, a tolerância à violência que as atinge, os julgamentos e pressões sociais para conciliar a vida familiar e a atuação política e o acesso desigual a recursos como tempo, renda e redes de contato provocaria uma disparidade de acesso e participação no sistema político, de forma desvantajosa para as mulheres.

Como consequência, pontua a autora, tem-se um cenário no qual as mulheres são subrepresentadas na política institucional, tendo menores chances, relativamente aos homens, de dar expressão política, no debate público, a perspectivas, necessidades e interesses relacionados à sua posição social. Têm, com isso, menores possibilidades também de influenciar as decisões e a produção das normas que as afetam diretamente. A cidadania das mulheres é, portanto, comprometida pela divisão sexual do trabalho, que em suas formas correntes contribui para criar obstáculos ao acesso a ocupações e recursos, à participação política autônoma e à autonomia decisória na vida doméstica e íntima.[8]

O cerne da questão, portanto, não reside na instituição de cotas para a participação das mulheres na política, mas no machismo estrutural e profundamente arraigado na sociedade que limita, quando não impede completamente, a disputa em condições de igualdade entre homens e mulheres no acesso e no exercício dos cargos políticos.

Enquanto a política institucional permanecer reservada a certo perfil de pessoas na sociedade – homens, brancos, heterossexuais e com elevado poder aquisitivo – não se poderá falar verdadeiramente em democracia e pluralismo político. As desigualdades de gênero e as políticas afirmativas para mulheres não são uma pauta secundária, afinal, como se poderia considerar de menor relevância a defesa do direito fundamental à igualdade de mais da metade da população mundial?

A participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado Democrático de Direito, que tem o condão de ressignificar toda a conformação do que se compreende por política (uma concepção hoje ainda restrita à esfera pública) impactando, reflexivamente, também na forma em que está estruturado o espaço privado, já que essas esferas são interdependentes entre si. Ninguém melhor que as mulheres para identificar as necessidades das próprias mulheres e elaborar, no exercício de sua autonomia (autonomos) as normas tendentes a lhes garantir a máxima dignidade e igualdade na sociedade.

Infelizmente, as cotas para mulheres têm sido alvo de fraudes e de candidaturas “laranja”, com nomes apresentados na disputa eleitoral meramente pro forma. Essa resistência não é ocasional. Há parcelas de poder e privilégio que estão em disputa, mais do que isso, concepções de mundo e forma de estruturação da sociedade estão ameaçadas com o empoderamento das mulheres em todos os campos da vida. Como bem pontuou Michele Bachelet, “Quando uma mulher entra na política muda a mulher, quando muitas mulheres entram na política, muda a política”.

Karoline Ferreira Martinsé advogada, mestra em “Direito, Estado e Constituição” pela Universidade de Brasília, integrante do coletivo Candanga Advocacia Popular e do grupo de práticas e pesquisa O Direito Achado na Rua.


[1]‘Política não é muito da mulher’, diz presidente nacional do PSL – Folha de São Paulo.

[2]Organização global composta por 178 parlamentos nacionais membros efetivos e 12 membros associados, cujos trabalhos são observados por 70 organizações internacionais, dentre elas as Nações Unidas, a Organização Internacional do Trabalho – OIT e o Banco Mundial.

[3]BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política.São Paulo: Boitempo, 2014, p. 33.

[4]Nesse sentido, interessante também o pensamento de Carole Pateman, em sua obra “O contrato sexual”, ao propor um deslocamento analítico da noção clássica do contrato social, como teoria política fundacional da sociedade liberal, para a noção de contrato sexual, como teoria política fundacional das relações de gênero na ordem patriarcal.

[5]CADERNOS DE FORMAÇÃO. Mulheres: mundo do trabalho e autonomia econômica.Caderno 2. Introdução ao feminismo e aos estudos de gênero.São Paulo: CESIT/IE – UNICAMP – Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho, 2017. p. 32-33.

[6]KERGOAT, Danièle. In: HIRATA, Helena et al.(Orgs). Dicionário Crítico do Feminismo.São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 67.

[7]Idem, p. 23.

[8]Idem, p. 24.

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Relatos de uma louca: o diário de Maura Lopes Cançado e a atualidade de suas denúncias face a uma política manicomial antidemocrática

22 de fevereiro de 2019 by Observatório

Telma Ventura

Nascida em São Gonçalo de Abaeté, no interior do estado de Minas Gerais no ano de 1930, Maura Lopes Cançado internou-se em um hospício pela primeira vez aos dezoito anos, por vontade própria:

Nesta época internei-me pela primeira vez em sanatório para doentes mentais. (Já eu tinha dezoito anos). Ninguém entendeu o motivo desta internação, a não ser eu mesma: necessitava desesperadamente de amor e proteção. Estava magra, nervosa e não dormia. O sanatório parecia-me romântico e belo. Havia certo mistério que me atraía. (1979, p.69-70)

Sua iniciação literária e suas internações psiquiátricas ocorreram em simultâneo. Decorrente de seu descompasso social e de sua inadequação aos padrões estabelecidos, Maura passou a se refugiar nos hospitais psiquiátricos, pois sofria de um “inconformismo crônico”. No hospital do Engenho de Dentro, seu estado foi se agravando e, por isso, foi transferida para o Sanatório da Tijuca. Disseram que lá ela receberia um tratamento mais adequado, mas não foi o caso – esse foi, na verdade, o seu primeiro contato com os horrores de um hospício, apenas o começo de sua vida asilar, onde sofrimentos estariam por vir:

Só dei acordo de mim quando me achava lá, presa num quarto onde havia apenas um colchão nu, no chão. Pareceu-me estar gritando há muito tempo antes de tomar consciência: talvez eu tenha sido acordada pelos meus próprios gritos. Passei a bater furiosamente na porta. Ninguém atendia. Ignorava onde estava, apesar de saber da minha transferência para outro sanatório. (1979, p. 111)

Em alguns momentos, Maura sentiu medo e se encontrou desprotegida. Mas, ao mesmo tempo em que padeceu, não deixou de lado o seu olhar crítico e a sua percepção de mundo cada vez mais aguçada, sendo que tudo se transformou em material para a sua escrita: “Observo esses casos crônicos aqui dentro e sinto medo: criaturas para as quais o mundo é o que gira bem íntimo e oculto, uma coisa nevoenta, turbulosa” (1979, p. 159).

De forma trágica e sofrida, mas com muito talento, Maura Lopes Cançado conseguiu colocar em palavras as suas angústias e os seus sofrimentos, compartilhando com os leitores tudo aquilo que pudesse ser dito. Mas a tristeza, a humilhação, condições desumanas estiveram presentes na sua vida de maneira indelével, em função do pensamento das políticas higienistas e sanitaristas que irradiavam dos grandes centros urbanos para todos os manicômios do território nacional – mentes sãs em corpos sãos, essa era a regra. Magro Filho, em seu livro A tradição da loucura, nos apresenta o pensamento médico – e sóciopolítico – do período em questão:

A reclusão (…) não apenas como fator de cura, mas também como prevenção de contágio para a sociedade. A psiquiatria da época confundia, portanto, características culturais como patologia mental e queria incutir, na população, através de programas radiofônicos, de cursos de higiene mental e da ação da Liga Mineira de Higiene Mental, um modo de viver saudável. Saudável aqui, entenda-se era a forma de viver dos detentores do poder político, econômico e sanitário. (FILHO, 1992, p.138-139)

O delineamento de uma forma de se referir aos loucos, engendrada por uma percepção que já vinha sendo construída no Brasil desde o final do século XIX – baseada nas teorias “científicas” da eugenia e da degeneração, comumente associada às questões de ordem moral – discriminava o tratamento dispensado aos internos, de acordo com a classe social, e não com base em critérios científicos. Submetidos, consequentemente, a um estado duplamente repressor, os cidadãos indigentes podiam ser internados no hospício, embora fossem pessoas sadias, bastando para isso autorização policial – ou seja, mais do que um problema patológico, a loucura seria um problema político e sociológico. Aparentados em seus ideais de higienização aos campos de concentração, os hospícios abrigavam os marginalizados de toda sorte, os improdutivos, os velhos e os deficientes, os seres humanos alvos de preconceitos e descasos.

No livro Hospício é Deus, Maura Lopes Cançado relata com maestria a verdadeira angústia de se estar condenada à prisão de sua ausência na sociedade:

É a terceira vez que me encontro no hospital. O número de doentes é grande e poucos são os loucos. Dona Auda, dona Marina, Isaac, Rafael, estes sim, e mais outros. Dona Auda me parece um símbolo – sempre existido. Observo sua liberdade – de estar presa. Move-se independentemente, há uma certa dignidade intraduzível, nem sempre alcançada, em sua presença. (…) O doente, ainda preso ao mundo de onde não saiu completamente, tratado com brutalidade, desrespeito, maldade mesmo, reage. Tenta agarrar-se ao mundo de onde não saiu completamente. (1979, p.29)

A Psiquiatria moderna nasceu na França do século XVIII, momento histórico no qual o médico tinha a incumbência de cuidar dos excluídos do meio social, os quais se encontravam reclusos em instituições. Tal população de indivíduos excluídos passou a ter importância em um novo mercado de trabalho emergente e na concepção de cidadania e igualdade. Nessas instituições fechadas, os internados vinham sendo cuidados por religiosos, mas sem tratamento médico; o asilo não era, ainda, o que seria o manicômio, a partir da obra de Pinel. Médico francês, Pinel trouxe mudanças significativas ao pensamento da Psiquiatria ao propor que a essência da loucura era o desarranjo de funções mentais (o que destoava do pensamento vigente).

O manicômio se tornou, então, parte essencial do tratamento, sendo um “instrumento de cura” e não apenas enclausuramento do paciente e proteção dos cidadãos “saudáveis”. No livro O século dos manicômios, Isaias Pessotti mostra como foi pensado o manicômio em seu primeiro momento: “O objetivo de um hospital ordinário é tornar mais fáceis e mais econômicos os cuidados dedicados aos indigentes doentes. O hospital de alienados, por sua vez, é um instrumento de cura” (Esquirol, 1838, apud Pessotti, 1996, p. 168).

Entretanto, mesmo tendo-se mudado a forma de pensar acerca das causas da loucura, o manicômio se perpetuou de uma forma ainda mais violenta, justificada por um aparato teórico, deixando de ser um “instrumento de cura” e passando a ser local de depósitos de diferentes formas de loucura, onde se impuseram diversos atos de violência, em nome da Ciência: “O século XIX bem merece o título de “século dos manicômios”. Em nenhum outro século o número de hospitais destinados a alienados foi tão grande (…). Em nenhum outro século a variedade de diagnósticos de loucura, para justificar a internação, foi tão ampla”. (Pessotti, 1996, p. 9)

As críticas ao modelo fechado e autoritário, que continuava presente nos hospícios da época, fizeram surgir a proposta de criação de colônias de alienados como uma possível resposta a esses reclamos. As colônias tinham como objetivo, por um lado, neutralizar as denúncias de superlotação, aprisionamento e violência presentes nos hospícios, e por outro, transformar o modelo assistencial. Todas as tentativas de mudanças nos procedimentos existentes não chegaram a provocar transformações significativas na concepção do sofrimento mental.

No panorama brasileiro, tivemos a necessidade de criação dos primeiros hospitais psiquiátricos. No Rio de Janeiro, a ideia de se criar um espaço de recolhimento mais adequado aos loucos que se encontravam nas dependências da Santa Casa de Misericórdia ou nas ruas fazia parte de uma cadeia de transferência de responsabilidades iniciada com a necessidade de se retirá-los do espaço urbano. Desde o começo a ideia foi essa: retirar da vista da população aquilo que incomodava, aquilo que era “feio”. Foi dessa forma que se pensou na construção do primeiro hospital psiquiátrico no Brasil – o Hospício de Pedro II.

Atualmente, no entanto, tendo em vista tantas mudanças no tratamento, tem-se a criação do conceito de hospital-dia, que denota a condição espacial de sua existência. Em primeiro lugar, o termo foi criado para definir um local para pacientes que poderiam ali ser recebidos após a sua alta hospitalar. A intenção era manter um trabalho continuado de atenção àquele que tivesse alta sem submetê-lo aos horrores dos tratamentos do passado. E, em segundo lugar, definir-se um espaço de intermediação entre a internação e a sociedade – o paciente não ficaria mais internado de forma a ser praticamente esquecido na instituição, mas estaria ainda ligado à sua realidade fora dos muros pois, após o atendimento, voltaria para casa. O hospital-dia seria uma extensão do hospital no meio social, ou seja, um hospital menos violento.

Constatações como a de Maura Lopes Cançado não fariam mais sentido nos dias de hoje, visto que estar internado na década de 50-60 no Brasil

(…) não significa nada. São poucos os loucos. A maioria compõe a parte dúbia, verdadeiros doentes mentais. Lutam contra o que se chama doença, quando justamente esta luta é o que os define: sem lado, entre o mundo dos chamados normais e a liberdade dos outros. Não conseguem transpor o “Muro”, segundo Sartre. É a resistência. Também se luta contra a morte, quando morrer talvez seja realizar-se. Se existe vergonha é na luta: perder o lugar no mundo, afetividade, direitos (direitos?). (CANÇADO, 1970, p. 28-29)

A revolta contra o tratamento psiquiátrico empregado naqueles que não eram portadores de psicopatologias constitui um dos traços mais marcantes da obra de Maura Lopes Cançado, assim como uma crítica ao método empregado àqueles que ali estavam padecendo, denotando o valor histórico e existencial de seu relato para aqueles que são considerados doentes – os eternos prisioneiros da passagem –, restando-lhes apenas uma esperança: a humanização do tratamento.

Todavia, esta humanização está em perigo. Face à atual conjuntura política brasileira, marcada por inúmeros retrocessos nas políticas sociais, principalmente no que se refere às medidas do Governo Federal em relação a políticas na área da Saúde, a Luta Antimanicomial no Brasil sofrerá com a precarização e a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) e o esfacelamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A internação asilar compulsória em hospitais psiquiátricos volta à cena, em decorrência da Nota Técnica do Ministério da Saúde (Nota Técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS), emitida pela Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, destruindo as conquistas da Reforma Psiquiátrica obtidas nas últimas décadas, e desconfigurando a Política Nacional de Saúde Mental. Em conivência a este estado antidemocrático de ações, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) defende seus próprios interesses econômicos, no tocante à privatização da saúde mental. As organizações associadas aos Direitos Humanos e os conselhos de classe já vem denunciando as violações nos direitos humanos em hospitais e clínicas psiquiátricas, no que se refere a tratamentos que mais se assemelham a sessões de tortura.

Por todas essas questões, talvez Maura Lopes Cançado, se estivesse viva hoje, se perguntasse: Hospício (ainda) é Deus?

Telma Ventura é poeta, contista e ensaísta.


CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus: Diário I. Rio de Janeiro: Record, 1979.

MAGRO FILHO, J. A tradição da loucura. Minas Gerais: 1870-1964. Belo Horizonte: CCPMED; Editora UFMG, 1992.

PESSOTTI, Isaías. O século dos manicômios. São Paulo: editora 34, 1996.

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Democracia e as crises do sistema democrático: e agora, quem poderá nos defender?

22 de fevereiro de 2019 by Observatório

Carina Barbosa Gouvêa

A palavra democracia é uma velha conhecida. Ela está presente na história, nos contos, nos romances, no direito, nas constituições, engolfada pelas crises dos sistemas democráticos e almejada pela alma humana. É uma técnica de liberdade, um espírito livre, pleno de um sentido igualitário[1].

Representa uma indefinição semântica que traduz um processo sujeito a uma contínua invenção e reinvenção. Percebe-se a pluralidade de núcleos que se submete às condições históricas e altera-se naturalmente com a transição da conjuntura política de uma realidade para outra. Possui vida há pelo menos dois mil e quinhentos anos, traduzindo significados diferentes para os povos, tempos e lugares[2].Por isso, ela pressupõe e representa uma luta incessante pela justiça social, como bem marcado por Julien[3]não podendo “resignar-se com as ‘favelas’, os alojamentos insalubres, os salários miseráveis, as condições de trabalho infames”. É de Jackson[4]a afirmação de que a visão do direito constitucional deve perceber a democracia como “uma árvore viva” – uma metáfora que capta a ideia de que um documento “vivo” não é limitado por suas origens.

Contemporaneamente, as consciências legais investiram muito mais energia sobre os valores da democracia, no sentido de vincular a legitimidade da governança, o que acabou permitindo ampliar a visão de que a democracia hoje não se concretiza apenas pela possibilidade de escolha de atores políticos, mas inclui ainda uma proteção constitucional que afirma: a superioridade da carta fundamental; a existência de direitos fundamentais; a legalidade das ações estatais; um sistema de garantias jurídicas e processuais[5]; a descentralidade do poder.

Na contemporaneidade, tem-se identificado crises em sistemas democráticos como sendo atribulações do próprio ideal democrático, atrelando-se a ele noções de “morte”, “colapso” ou “erosão”. Porém estas crises decorrem não da democracia em si – sendo ela imaculada em sua essência, mas sim dos sistemas democráticos, materializados pela via do desenho institucional. São os sistemas democráticos decantados na realidade que a corrompe, violenta e deturpa.

A democracia representa o motor principal do modo de viver do governo[6]. A grande dificuldade é determinar “o que é”, “como é” e “o que vem a ser”, uma vez que seu desenvolvimento não é “linear, pois está sempre sujeito a tropeços e retrocessos”[7]. Pressupõe uma concepção dialógica da política e a consideração desta como um processo racional de discussão dos problemas e alternativas, de forma a obterem-se soluções justas, ou pelo menos razoáveis, de ordenação da vida comunitária e não apenas para fornecer aberturas processuais à prossecução de interesses privados ou à otimização de preferências subjetivas[8].

Significa dizer que não basta que se faça menção ao seu nome para legitimar sua atuação, representando, segundoSen[9], um sistema exigente e não apenas uma condição mecânica.Percebe-se aí o irrealismo desta noção simples e unitária, tendo em vista que a democracia não se configura em uma coleção de indivíduos entre si, mas tem por destinatário um conjunto complexo de classes, raças, clãs, estamentos, grupos religiosos, cujo poder e influência variam enormemente de época a época e de país a país[10].

Tem uma importância construtiva, especialmente com a garantia da discussão aberta, do debate, da crítica e do dissenso, que são fundamentais para o processo de geração de escolhas[11]. Como explica Rancière[12], na democracia o sujeito define a si mesmo, a partir de seu lugar central na atividade política. Não só é um rompimento da lógica da separação absoluta entre governante e governado, mas a ruptura da ideia segundo a qual todo tipo de distribuição de poder significa um modelo preexistente. O desenvolvimento da democracia se tornou e é o principal instrumento para a defesa, seja dos direitos de liberdades, seja os nascidos das revoluções[13].

A decadência do sistema democrático tem sido usada por alguns estudiosos para capturar a degradação incremental[14]das estruturas[15]e substância[16]da democracia constitucional liberal[17]. Abre-se caminho para o exercício do “legalismo autocrático”, “retrocesso constitucional”, “enfraquecimento oportunista e reacionário das estruturas democráticas por atores políticos” que, em muitas das vezes, são expressos em contextos políticos que caracterizam um declínio da fé pública na democracia.

A crise econômica, a insatisfação popular crescente com a segurança e a corrupção, o crescimento e desenvolvimento social são fatores, dentre muitos outros, que contribuem para a potencialização da crise do sistema democrático. Onde o sistema não responde, ele pode ser capturado por interesses de elites que estrategicamente atuam para ascender ao poder, principalmente com promessas retóricas e vazias para a solução da crise.

São as relações construídas na arena pública, levando em conta o pluralismo de interesses representados, que contribuirão para a formação de uma sociedade verdadeiramente emancipada, responsável e promotora dos direitos e garantias, bem como determinarão e controlarão a atuação pública, a incluir-se aí a própria ação do poder judiciário[18]. Como? Esta é uma pergunta que pretendemos responder nas próximas sessões.

Repensar a democracia nos moldes até então forjados, de controle de poder pelo próprio poder, da ideia de soberania popular e representatividade, acaba por justificar uma doutrina puramente teórica para o governo[19].

Como a democracia não constitui retórica e necessita de promoção, portanto, não basta a mera enunciação de seu nome para denominar um ambiente democrático. Sendo híbrida, é ao mesmo tempo um fim e um meio. Fim porque vai acomodar os principais fundamentos de uma sociedade igual e participativa e meio porque vai exigir uma variação de intérpretes e mecanismos para sua realização e promoção do desenvolvimento humano[20]. Para Gouvêa, se fim e meio ao mesmo tempo, necessita que haja conexão entre o direito e as estruturas formais do poder, podendo-se aqui pensar em uma democracia cooperada. O que seria uma alternativa para enfrentar as atuais crises dos sistemas democráticos.

E esta se concretiza pela intervenção também da força humana.

E agora, quem poderá nos defender?

Carina Barbosa Gouvêa é professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.


[1]FERREIRA, Pinto. A constituição e o poder de reforma constitucional. 3 ed. Recife: Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco, Sociedade Pernambucana de Cultura e Ensino, p. 167.

[2]DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, p. 13.

[3]JULIEN, Claude. O suicídio das democracias. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1975.

[4]JACKSON, Vicki C. Paradigms of public law: transnational constitutional values and democratic challenges. International Journal of Constitutional Law, 2010, Vol. 8, Nº 03, p. 517-562.

[5]GONÇALVES, Bernardo Fernandes. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 209. 

[6]Democracia para as Nações Unidas constitui um ideal universal e é um dos valores fundamentais que compõe a organização. 

[7]GONÇALVES, Bernardo Fernandes. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 210. 

[8]MANIN, Bernarb. La democracia de los modernos: los principios del gobierno representativo. Trad. Clara Gimenéz. Revista Sociedad da Facultad de Ciencias Sociais(UBA), 1995, p.1-20.

[9]SEN, Amartya. Democracy as a universal value. Journal of Democracy, Vol. 10, Nº 3, 1999, p. 3-17.

[10]COMPARATO, Fábio Konder. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 70.

[11]GOUVÊA, Carina B. As Intervenções da ONU no Processo de Constitution-Making nos Estados em Transição Política: O Papel das Nações Unidas no Resgate da Ordem Democrática. 1. ed. Curitiba/PR: Juruá Editora, 2016. 

[12]RANCIÈRE, Jacques. Ten theses on politics. Theory & Event, Vol. 5, Issue 3, 2001, p.1-16.

[13]BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 41-44.

[14]Incremental porque a degradação é progressiva. 

[15]Referem-se às instituições democráticas, como as esferas governamentais, provedores de justiça, Organizações Internacionais, dentre outros.

[16]Se refere ao conteúdo e procedimento para operacionalização do sistema de governança democrático.

[17]DEMOCRATIC DECAY. Democratic Decay Resource (DEM-DEC): Bibliografy update. January 2019.

[18]SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 273.

[19]GOUVÊA, Carina B. As Intervenções da ONU no Processo de Constitution-Making nos Estados em Transição Política: O Papel das Nações Unidas no Resgate da Ordem Democrática. 1. ed. Curitiba/PR: Juruá Editora, 2016.

[20]GOUVÊA, Carina B. As Intervenções da ONU no Processo de Constitution-Making nos Estados em Transição Política: O Papel das Nações Unidas no Resgate da Ordem Democrática. 1. ed. Curitiba/PR: Juruá Editora, 2016.

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A carteira de trabalho verde e amarela e a morte lenta da Justiça do Trabalho

14 de fevereiro de 2019 by Observatório

Renata Queiroz Dutra

O Ministro Paulo Guedes anunciou no último dia 7/2/2019, em reunião com “investidores”, que a proposta de campanha do Presidente Jair Messias Bolsonaro, de criação da “carteira de trabalho verde e amarela” como alternativa ao modo de contratação padrão instituído pela Consolidação das Leis do Trabalho, será implementada.  Nas palavras do Ministro:

“O novo regime não tem legislação trabalhista. O jovem tem o direito de escolher. Porta da esquerda: Carta del Lavoro, justiça trabalhista, sindicato, você tem proteção, você tem tudo, as empresas têm que pagar, mas quase não tem emprego. É o sistema atual. Porta da direita: novo regime trabalhista e previdenciário, não tem nada disso, se seu patrão fizer alguma besteira com você e te tratar mal, vai pra justiça comum, é privado, privado, privado”. (Disponível aqui.)

O açodamento ultraliberal (“privado, privado, privado”) de Paulo Guedes levanta questões inúmeras, que não poderiam ser tratadas em um único texto: a inapropriada comparação da CLT, sob a vigência da Constituição de 1988, com a Carta del lavoro; a possibilidade de um agente político do Poder Executivo, também sob a vigência do art. 7º da Constituição de 1988, apresentar publicamente uma proposta de regência do trabalho que “não tem legislação trabalhista”; a possibilidade de um agente político do Poder Executivo, sob a vigência do art. 8º da Constituição de 1988, apresentar publicamente uma proposta que afasta a possibilidade de representação sindical de um grupo determinado de trabalhadores; a compreensão, desse mesmo agente político, de que os direitos sociais são renunciáveis, sem qualquer delimitação nuclear, por ato individual de disposição de vontade; a realização de uma reforma dentro da já austera reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), que até agora não entregou as promessas lançadas, notadamente em relação ao nível de emprego.

Entretanto, algo chama a atenção na fala acima transcrita, revelando, nas entrelinhas, a execução de uma proposta igualmente ofensiva à arquitetura constitucional de proteção ao trabalho: as relações de trabalho regidas pela “opcional” carteira de trabalho verde e amarela não estarão abraçadas pela competência constitucional da Justiça do Trabalho, que, em seu artigo 114, I, não faz qualquer referência à forma de contratação, mas sim, à existência de relações trabalho, de modo a abranger inclusive relações laborais que não envolvem subordinação jurídica.

É interessante situar o contexto e projetar os impactos dessa medida.

Primeiro, é preciso observar que essa proposta é lançada em um cenário pós-reforma trabalhista no qual o número de ações trabalhistas já sofreu uma queda de 46%, reduzindo, portanto, praticamente à metade a demanda pela Justiça do trabalho, segundo dados do próprio Conselho Nacional de Justiça. Essa queda é reflexo das disposições da Lei nº 13.467/2017 que passaram a onerar excessivamente o trabalhador em virtude da sucumbência da justiça do trabalho, o que, em se tratando de sujeitos economicamente vulneráveis, é decisivo no sentido de limitar o acesso à justiça.

Segundo, é preciso considerar outras experiências históricas em que se tornou facultativa a observância de determinado conjunto de direitos trabalhistas e cotejar o resultado produzido. Por exemplo, os governos militares criaram, na década de 1960, o regime do FGTS, em substituição à antiga estabilidade decenal prevista na CLT, registrando que tal substituição seria facultativa. O resultado disso foi que, à exceção dos trabalhadores que já eram estáveis ao tempo da medida, a generalidade do mercado de trabalho passou a se voltar àqueles que “optavam” pelo regime do FGTS, a ponto de, em 1988, esse sistema ter sido universalizado. Até os dias de hoje o Brasil enfrenta uma altíssima rotatividade da força de trabalho e dificuldade de se alinhar ao padrão internacional de proteção ao emprego, como a denúncia da Convenção nº 158 da OIT, desde a década de 1990, revela.

Sendo assim, o cruzamento dessas duas tendências revela que a já inibida demanda pela Justiça do Trabalho tenderá a despencar, pois, a partir do momento em que possibilitada a contratação por meio da carteira verde e amarela, a tendência do mercado será a generalização dessa forma de contratação, à exceção de grupos fortemente organizados e dos quadros altamente qualificados. Assim, também essa grossa fatia do mercado deixará de demandar perante a Justiça laboral, escasseando a já reduzida litigância trabalhista.

O conjunto de medidas adotadas implicam, portanto, na morte lenta da Justiça do Trabalho, por inanição. Com elas, se induz a queda drástica da quantidade de demandas a fim de, quando esse número estiver extremamente reduzido, aplicar-se a racionalidade neoliberal de austeridade que desloca recursos e remove estruturas onerosas cujo retorno não justifica o investimento.

Diferentemente da proposta de uma emenda constitucional que alterasse ou revogasse o art. 114 da Constituição, oportunidade em que o tema seria debatido na esfera pública, com a participação dos atores sociais e com disputas abertas sobre os significados jurídico-políticos e históricos da existência desse ramo especial do Poder Judiciário, o processo lento e “fatiado” de medidas (também eivadas de inconstitucionalidades, ressalte-se) que culminam na perda do sentido constitucional do poder judiciário trabalhista, além de arrefecer as possibilidades de resistência dos sujeitos constitucionais envolvidos, afasta o tema da seara pública, como ademais tem sido o tom da racionalidade neoliberal (DARDOT, LAVAL, 2016),  empobrecendo os debates sobre sistemas de justiça, redistribuição e sobre a Constituição, para substitui-los por um mero cálculo orçamentário.

Reivindicar a natureza constitucional de cada um desses debates é o desafio permanente dos que defendem a Constituição de 1988. Antes de que se possa conceder às inexoráveis imposições do “deus-mercado”, a existência de instituições judiciais consiste em debate político, da ordem da escolha de projetos de sociedade e de desenvolvimento, como o firmado em 1988.

Inaugurada em 1941, a Justiça do Trabalho, que originalmente figurava como braço do Poder Executivo, se transformou ao longo da história constitucional brasileira, vivendo o permanente desafio de impor um patamar universal de proteção trabalhista (num mercado de trabalho sempre marcado por altíssimos índices de informalidade) e de democratizar relações trabalhistas em um país com tradição escravocrata e altos níveis de descumprimento da legislação (FRENCH, 2002; FILGUEIRAS, 2012).

A partir de 1988, passa a integrar a arquitetura constitucional de proteção ao trabalho, desenhada pelo conjunto dos arts. 21, XXVI, 114 e 127, caput, e 129, II, III e IX, do Texto Constitucional de 1988, que se articulam a partir do escopo da concretização da dignidade da pessoa humana a partir de uma proposta pública e imperativa de estabelecimento de um patamar mínimo para a exploração do trabalho humano.

Debilitar esse agente significa debilitar todo o construto de direitos fundamentais e sociais dos arts. 1º, III e IV, 6º a 11 da Carta de 1988, desequilibrando (e, portanto, acirrando) o conflito capital e trabalho. No contexto de uma economia capitalista em crise, esmaecer essa instituição, que, longe de ser revolucionária, atenua impactos das desigualdades e dos conflitos sociais, revela mais um passo no sentido da desfiguração da Constituição de 1988 e da afirmação de um Estado de Exceção.

Referências

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

FRENCH, French, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros / John D. French; tradução: Paulo Fontes. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

FILGUEIRAS, Vitor. Estado e direito do trabalho no Brasil: regulação do emprego entre 1988 e 2008. (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. 2012.

Renata Queiroz Dutra é professora adjunta de Legislação Social e Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

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Democracia e Luta Antimanicomial: sem cuidado em liberdade, não há democracia

14 de fevereiro de 2019 by Observatório

Ludmila Cerqueira Correia

Ninguém duvida que na conjuntura política atual do Brasil, com muitos retrocessos, sobretudo nas políticas sociais, novas ações e medidas do Governo Federal continuem sendo elaboradas e implementadas para acentuar as desigualdades sociais já existentes, uma vez que está bastante clara a perspectiva neoliberal adotada pelo atual governo. Neste sentido, o que se observa nas políticas de saúde é a precarização e a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) e o esfacelamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que tem alcançado com mais intensidade os grupos sociais subalternizados, como é o caso das pessoas com transtornos mentais.

No último dia 04 de fevereiro de 2019, muitas pessoas, coletivos e movimentos sociais vinculados à Luta Antimanicomial no Brasil tomaram conhecimento de mais um duro golpe contra a Reforma Psiquiátrica, a publicação de uma Nota Técnica do Ministério da Saúde (Nota Técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS), através da Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Não fossem os últimos três anos, em que os retrocessos no campo da atenção e cuidado em saúde mental têm ficado cada vez mais evidentes, poderia se afirmar que esse novo documento apenas apresenta o desenho para as mudanças que já vinham sendo realizadas com a edição de resoluções e portarias, sobretudo em 2017 e 2018. Ocorre que as orientações contidas nessa Nota Técnica aprofundam o processo de destruição da Reforma Psiquiátrica e desmontam a RAPS, desconfigurando, portanto, a Política Nacional de Saúde Mental. Esse processo está em sintonia com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que defende interesses privados na saúde mental e tem desconsiderado as práticas de cuidado desenvolvidas sob as diretrizes da Reforma Psiquiátrica.

O que se observa, portanto, já nesses primeiros meses de governo, através dos documentos publicados e já citados, é a promoção de interesses econômicos e religiosos, colocando em xeque os princípios da Reforma Psiquiátrica e promovendo pautas corporativas. Isso fica evidenciado com a manutenção dos leitos em hospitais psiquiátricos (que vinham sendo fechados e substituídos paulatinamente por serviços territoriais e comunitários, visando o cuidado em liberdade) e com a inclusão das Comunidades Terapêuticas como ponto de atenção (serviço) da RAPS. Significa, portanto, o enfraquecimento de um campo ético-político pautado na solidariedade, na democracia e na justiça social.

A Reforma Psiquiátrica brasileira é considerada um processo social amplo e complexo, e é fruto da Luta Antimanicomial, que, através dos movimentos e coletivos que a constituem e impulsionam, demonstrou como a participação social contribuiu para promover mudanças significativas no campo da assistência psiquiátrica. Foi com a mobilização do Movimento da Luta Antimanicomial, que integra pessoas com transtornos mentais e seus familiares, que a Lei nº 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica) foi aprovada e trouxe um novo paradigma: o cuidado em liberdade. De acordo com o texto desta lei, que se tornou referência para outros países da América Latina, a internação em hospitais psiquiátricos somente poderá ser indicada quando “os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, ou seja, ela só pode ser adotada como último recurso, denotando que o que se pretende é a superação da internação, esvaziando, assim, as instituições com características asilares.

Uma série de documentos, sobretudo os relatórios de vistorias e inspeções realizadas seja por organizações de Direitos Humanos, associações e conselhos de classe, seja por instituições do Sistema de Justiça e mecanismos independentes (como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), já vem denunciando, há muito, as diversas violações de direitos humanos ocorridas em hospitais e clínicas psiquiátricas, bem como em comunidades terapêuticas. Neste sentido, como admitir que a internação tenha lugar ainda hoje, uma vez que os serviços substitutivos que compõem a RAPS vêm promovendo o cuidado em liberdade de tantas pessoas no país?

Todos os passos e ações do Ministério da Saúde nesse governo atual têm demonstrado o interesse pela retomada da internação, o que contraria frontalmente a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (já assimilada pelo Brasil com status de norma constitucional em 2009) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). Ambos os instrumentos jurídicos são fundamentais neste debate, uma vez que reconhecem as pessoas com transtornos mentais como cidadãs, ao afirmarem a sua capacidade civil plena (afastando a interdição como regra) e o exercício dos seus direitos (como o casamento ou união estável, direitos sexuais e reprodutivos, dentre outros), além da sua participação social.

Dessa forma, destaca-se que no estágio atual, além da resistência, novas estratégias de participação social são imprescindíveis para fazer frente a esse desmonte no campo da saúde mental. Faz-se necessário retomar as discussões realizadas e as deliberações construídas no “Encontro de Bauru: 30 anos por uma sociedade sem manicômios”, em dezembro de 2017, em Bauru – SP. Nesse evento, construído por muitas mãos, foram reafirmadas e defendidas as conquistas alcançadas ao longo de 30 anos da implantação de uma política pública exitosa, sustentada dentro de um Estado democrático, além de debatidos os desafios da Reforma Psiquiátrica, especialmente com os retrocessos no campo da saúde mental aprofundados no Governo Temer.

Aquele momento de fortalecimento da luta antimanicomial em Bauru precisa se materializar em ações de mobilização para que os coletivos e movimentos possam seguir lutando “Por uma sociedade sem manicômios”, contra todas as formas de cárcere, exploração e opressão, como registrado na Carta de Bauru– 30 anos: “que a sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, socialista e anticapitalista. NENHUM PASSO ATRÁS: MANICÔMIO NUNCA MAIS!”.

Ludmila Cerqueira Correiaé doutora em direito pela Universidade de Brasília e professora da Universidade Federal da Paraíba.

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As rachaduras no muro: é possível conceber um Estado laico cristão?

14 de fevereiro de 2019 by Observatório

Fábio Portela Lopes de Almeida

O novo governo se iniciou com inúmeras polêmicas a respeito da relação entre Estado e Igreja.  Manifesta nos discursos do Presidente Jair Bolsonaro e de alguns de seus ministros, uma concepção institucional que não vê qualquer problema na íntima relação entre o poder político e as doutrinas religiosas. Tal concepção, contudo, revela graves problemas da perspectiva constitucional.

Em carta escrita à Associação Batista de Danbury em 1802, Thomas Jefferson concebeu aquela que se tornou a mais significativa metáfora sobre as relações entre Igreja e Estado em uma democracia constitucional. Na carta, o pai fundador norte-americano escreveu as seguintes palavras: “Contemplo com reverência soberana o ato em que o povo americano declarou que os legisladores jamais deveriam ‘elaborar leis instituindo uma religião ou proibindo o seu livre exercício’, assim construindo um muro de separação entre Igreja e Estado“.

Tais palavras, fruto de uma construção institucional desenvolvida desde que as guerras religiosas devastaram a Europa nos séculos XVI a XVIII, influenciaram todas as democracias constitucionais. Os direito à liberdade de consciência e à liberdade religiosa se tornaram sinônimo da autonomia individual. Ao indivíduo, e apenas a ele, compete decidir os valores morais e religiosos que guiarão sua vida.

E a maior garantia da liberdade individual é justamente o muro que separa Igreja e Estado. Mas será que esse muro está forte o suficiente para aguentar o Brasil de 2019?

A concepção dos eleitos: um Estado laico cristão

Logo no primeiro discurso proferido na condição de eleito, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou que seu governo seguiria “os ensinamentos de Deus e ao lado da Constituição”. Antes mesmo do pleito eleitoral, o sempre polêmico Presidente afirmara o seguinte: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude”.

O ponto de vista do novo governo a respeito das relações entre Estado e religião se tornou ainda mais manifesto em declarações da Ministra dos Direitos Humanos, da Família e dos Direitos da Mulher, Damares Alves. A Ministra chegou a dizer que “a igreja deve governar”. Em outro momento — anteriormente à posse no cargo, é verdade — a Ministra defendeu que as igrejas perderam espaço para a ciência por terem deixado “a teoria da evolução entrar nas escolas”, no que foi foi rebatida pelo Ministro Marcos Pontes em uma boa defesa da separação entre ciência e religião.

Ainda que “pinçadas” nos mais diferentes contextos, as declarações apresentam um cenário preocupante para o constitucionalismo. Revela-se uma concepção de relação entre Igreja e Estado incompatível com o pluralismo marcante de nossa democracia.

Mas que concepção é essa? Pelos discursos examinados e pelas diversas manifestações do governo até aqui, verifica-se a presença das seguintes características da relação entre Igreja e Estado defendida pelos atuais ocupantes dos principais cargos da República brasileira:

(1) equiparação entre crenças religiosas e a racionalidade pública;

(2) a legitimação do discurso político com base em uma religiosidade específica (a cristã) em detrimento de outras;

(3) a institucionalização de uma crença religiosa particular; e

(4) a equiparação institucional entre o discurso religioso e o científico.

Tais premissas solapam qualquer possibilidade de construção democrática dos inevitáveis contatos entre Estado e Igreja.

Não há liberdade religiosa sem separação entre Igreja e Estado

É certo que, consoante a descrição sociológica de Niklas Luhmann, todos os sistemas sociais são igualmente autopoiéticos. A religião, o direito e a política, em uma concepção moderna, seguem seus códigos internos, fundados em distinções, valores e em descrições da realidade incomensuráveis. Daí se segue a heterarquia que rege os vários sistemas sociais, uma vez que cada sistema responde a sua própria lógica interna.

Do ponto de vista de cada sistema, torna-se inevitável observar os demais sistemas à luz de sua própria lógica interna. Quando um economista observa o direito, enxerga uma estrutura de custo-benefício, uma estrutura normativas que impõe incentivos positivos e negativos à atividade econômica. Quando o jurista observa a economia, enxerga ali uma realidade a ser regulada com vistas a concretizar exigências normativas particulares como a justiça distributiva, bem como a efetivação de direitos sociais como saúde e educação.

Mas o direito não apenas gera obstáculos à atividade econômica. É por meio de normas e institutos jurídicos que a economia consegue realizar suas operações. Normas jurídicas estabelecem as competências do Banco Central, instituem conceitos jurídicos como “propriedade”, “contratos” e “obrigações” e criam uma estrutura judicial apta a constranger os particulares a cumprir contratos. O direito, assim, revela-se como estrutura essencial ao funcionamento da economia. E vice-versa, já que as instituições jurídicas também dependem de recursos econômicos gerados pelos agentes privados.

Inobstante a estrutura heterárquica da relação entre os sistemas sociais, tal condição somente pode ser concebida de uma perspectiva sociológica, que busca observar a própria relação entre os sistemas sob o prisma da sociologia. Inversamente, quando um sistema observa outro, enxerga-o necessariamente a partir de uma estrutura hierárquica. Assim, ao observar o direito, uma religião o concebe dentro de sua estrutura de valores – e, assim, concebe as normas jurídicas como o resultado de sua própria estrutura de descrição. O direito, assim, é concebido como fruto da “vontade de Deus” como no pensamento justeológico medieval.

Ao observarem a religião, o direito e a política também a enxergam a partir de seus próprios códigos. Do ponto de vista jurídico constitucional, a religião é uma possibilidade concretizada por normas que asseguram sua existência. A instituição jurídica da religião se desdobra individualmente, a partir da liberdade de crença e de consciência, ao passo que a proteção institucional das religiões ocorre justamente pela separação entre Igreja e Estado.

Do ponto de vista estatal, não é possível distinguir entre as várias religiões. É inegável o peculiar papel da religião católica na construção do Estado brasileiro, particularmente até a extinção do regime do Padroado pelo Decreto 119-A, de 1890. Contudo, também é certo que, a partir da promulgação da primeira Constituição Republicana, em 1891, adotou-se a separação entre Igreja e Estado, com forte inspiração do modelo constitucional norte-americano. Como resultado, a legitimação do Estado cortou qualquer vínculo anterior com a Igreja, fundando-se exclusivamente na soberania popular. Desde então, do ponto de vista jurídico-institucional, todas as religiões se tornaram iguais aos olhos do Estado, tornando-se ilegítimo privilegiar uma religiosidade em detrimento de outra.

A equiparação entre crenças religiosas e a racionalidade pública decorre de discursos como o de que o governo seguirá os “ensinamentos de Deus e ao lado da Constituição”, ilustrando o comprometimento público não apenas com o texto constitucional, mas também com o cristianismo.

Tal equiparação, contudo, é absolutamente incompatível com as premissas de uma democracia constitucional, justamente por buscar fundamentar a ação política na religião, racionalidade exógena ao sistema político.

Do ponto de vista político democrático, é impossível equiparar crenças religiosas à racionalidade pública. Debates públicos, como já sustentava John Rawls, devem ser orientados por razões acessíveis a todos os cidadãos. Afinal, é nos fóruns públicos que se discutem as normas impostas a todos, sendo democraticamente ilegítimo impor obrigações com base em razões aceitas por uma parcela dos cidadãos – ainda que seja a “maioria cristã”.

Historicamente, apenas duas fontes de racionalidade se construiram publicamente, sendo acessíveis a todos independentemente de suas crenças e doutrinas particulares: o direito e a ciência. Precisamente por isso, o direito e a ciência se vinculam, sendo particularmente aceitável impor obrigações fundadas no melhor conhecimento científico – como impor vacinação, decidir os medicamentos oferecidos no sistema de saúde, ou mesmo ensinar conteúdo científico básico nas escolas (aí incluído o darwinismo).

Precisamente por isso, tem razão o Ministro Marcos Pontes ao criticar a Ministra Damares Alves: ciência e religião não devem se misturar, particularmente nas escolas públicas. A equiparação institucional entre o discurso religioso e o científico é perniciosa, não podendo decisões estatais serem lastreadas no discurso religioso.

É certo, também, que a legitimação do discurso político com base em uma religiosidade específica em detrimento de outras também não encontra sustentação na teoria democrática constitucional. Independentemente de a maioria da população brasileira ser cristã, existem milhões de outros cidadãos que acreditam e vivem com base em valores distintos – como o judaísmo, candomblé, umbanda, espiritismo, islamismo, agnosticismo e ateísmo, entre outras formas legítimas de manifestação da fé. Não há como, legitimamente, impor o cristianismo a todos, utilizando-se do poder político para alcançar tal finalidade.

As afirmações políticas de que Deus está acima de tudo, “a igreja deve governar” e que “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude” revelam profunda intolerância religiosa, em afronta aos direitos à liberdade de crença e religião, bem como à separação institucional entre Igreja e Estado.

É importante destacar que o “muro” que separa Igreja e Estado não é apenas uma garantia às minorias religiosas. É, também, uma garantia às próprias maiorias religiosas de que o Estado não interferirá em suas atividades. Quando não efetuamos a devida manutenção desse muro, mesmo as maiorias começam a padecer do risco de interferência estatal desmedida. Não por menos, aliás, já surgiram notícias de que o governo – de base profundamente evangélica – tem acompanhado de perto a atividade de congregações católicas opositoras ao discurso estatal. Até a maioria pode sofrer quando o muro da separação entre Igreja e Estado sucumbe.

O Estado brasileiro é laico, não cristão

O constitucionalismo enxerga todas as religiões como igual fonte de orientação moral para os cidadãos. Daí não se segue que as igrejas cristãs não sejam relevantes politicamente. São sim! Igrejas formam importantes comunidades, das quais líderes religiosos podem dar contribuição política da maior relevância para as instituições jurídico-políticas. Não há como esquecer as contribuições do Papa Francisco, de Martin Luther King, para citar exemplos internacionais, ou de inúmeros padres e bispos que lutaram contra a ditadura militar brasileira, bem como a atuação positiva da CNBB em vários momentos de nossa história. Não há como se esquecer de Guaraci Silveira, político evangélico metodista que, nas primeiras décadas do século XX, lutou pela preservação do Estado laico.

Não se nega a importância da participação de religiosos, das mais diversas doutrinas, na política. Mas tal participação deve sempre objetivar o bem de todos, e não a exclusão das visões opostas.

O muro que separa Igreja e Estado foi construído por suor e sangue de muitas gerações. Mas muros sem reparos, como ilustrou recentemente a tragédia em Brumadinho, podem causar danos irreparáveis aos direitos de todos. E o muro que separa Igreja e Estado, no Brasil, vem apresentando cada vez mais rachaduras ao longo das últimas décadas. Para o bem de maiorias e minorias, é preciso repará-lo urgentemente. Somente assim, poderemos ser parte de uma democracia constitucional digna de respeito, construtora de uma identidade fundada no igual respeito e consideração de todos, e não na exclusão de quem ousa divergir.

Fábio Portela Lopes de Almeida é mestre e doutor em direito pela Universidade de Brasília, autor do blog Pesquisa Jurídica.

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A política e as facadas

14 de fevereiro de 2019 by Observatório

Thiago Hansen

A história política do Brasil é violenta. Ao contrário do discurso de pretenso caráter pacífico do brasileiro, não são poucos os exemplos em que rupturas políticas e institucionais foram ocasionadas ou vieram acompanhadas de sangue, golpes e momentos de tensão aguda. São conhecidas as histórias das eleições da Primeira República em que as votações eram acompanhadas de pancadarias, brigas e lutas dentro das igrejas onde ocorriam o sufrágio. A história das eleições municipais também é fértil em exemplos de disputas que extrapolavam os debates de ideias e se transformavam em embates físicos, com participações de capangas de coronéis e uso político das polícias locais.

Dentre essas situações há uma certa tradição (se é que é possível usar esse termo) de atentados contra a vida de candidatos e políticos de alto escalão nacional. Presidentes, vice-presidentes, presidente do congresso e candidatos à presidência já foram alvos de violência física durante campanhas ou momentos cruciais de instabilidade nas instituições jurídicas e políticas do Brasil. São exemplos atuais o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) em março de 2018 e a tentativa de assassinato do candidato à presidência e atual Presidente da República Jair Bolsonaro (PSL) em setembro de 2018. Olhando para o passado, vê-se que esses não são casos excepcionais.

Há pouco mais de 120 anos, o primeiro presidente civil da República, Prudente de Moraes estava recebendo dois batalhões do exército que retornavam do conflito em Canudos e um militar, Marcelino Bispo, sacou uma pistola, encostou no peito do Presidente e pouco antes de realizar o disparo foi contido pela escolta presidencial. Em meio aos sopapos e a confusão, Bispo pegou seu sabre e desferiu um golpe fatal no Ministro da Guerra, Marechal Carlos Machado Bittencourt. Após uma série de investigações atribuladas e confusas, em que um dos principais suspeitos de encomendar o assassinato presidencial era o próprio Vice-Presidente da República, Manuel Vitorino, o assassino foi encontrado misteriosamente morto em sua cela, enforcado com um lençol em cena muito duvidosa que lembra o trágico assassinato de Vladimir Herzog. O desenrolar do atentado foi responsável por sepultar a carreira política do Vice-Presidente e abafar de vez o movimento político dos florianistas jacobinos, que buscavam instaurar um regime de força de caráter militar contra os “casacas”, a elite civil vinculada a produção agrária e ao bacharelismo. O atentado contra Prudente, portanto, foi ao mesmo tempo um ato de violência que limitou as forças políticas vinculadas a República da Espada e preparou o terreno para o funcionamento de um governo civil mais estável, que viria ser implementado por seu sucessor e amigo Campos Sales, o pai da Política dos Governadores.

Já em 1915, outro atentado de grandes proporções políticas ocorreu: o assassinato de um dos mais importantes políticos da história do Brasil, José Gomes Pinheiro Machado, Vice-Presidente do Senado que exerceu, de facto, a Presidência do Congresso Nacional por 13 anos. O gaúcho Pinheiro Machado representava uma força de antagonismo às elites paulistas e mineiras que dominavam o Poder Executivo no sistema da Política dos Governadores. Presidindo o Partido Republicano Conservador, raro exemplo de Partido de características nacionais na Primeira República, seu jogo político era de arregimentar estados alijados do processo decisório imposto pelo Poder Executivo e fazer um contraponto, exigindo negociação e cargos em ministérios. Era considerado por muitos o político mais poderoso do país. As circunstâncias de sua morte continuam incertas até hoje. Apunhalado pelas costas na entrada do Hotel dos Estrangeiros no Rio de Janeiro, o assassino Manso de Paiva alegou motivos pessoais para o ato, mesmo não sendo político e não tendo qualquer relação com a vítima. A impressão de assassinato encomendado fica ainda mais forte ao se analisar as circunstâncias da época: Pinheiro Machado havia previsto que corria risco de vida em uma entrevista concedida pouco tempo antes ao jornalista e escritor João do Rio. Tudo fica ainda mais nebuloso ao se somar o fato de que seu algoz sentou-se e calmamente aguardou a polícia chegar após o cometimento do crime. Até o fim de sua vida, Manso de Paiva alegou ter agido por conta própria e em nome da pátria. O assassinato de Pinheiro Machado representa, dentre outros eventos daqueles anos anteriores e seguintes, um processo de enfraquecimento e esgotamento da Política dos Governadores que seria melhor representada pela ascensão do movimento tenentista e pela presidência desastrada de Arthur Bernardes.

Pouco antes do estouro da Revolução de 1930, outro grande atentado aconteceu. E não apenas o famoso assassinato de João Pessoa, candidato a vice-presidência derrotado naquele pleito. No dia 6 de fevereiro de 1929, há 90 anos, Fernando de Melo Viana, ex Presidente de Minas Gerais e então Vice-Presidente da República foi ferido com três tiros no pescoço durante um comício na cidade mineira de Montes Claros. Conhecido pela imprensa da época como o “Atentado de Montes Claros”, o evento ocasionou uma série de suspeitas envolvendo o Presidente de Minas Gerais e líder da Aliança Liberal (de oposição a Washington Luís e ao status quo nacional) Antonio Carlos Ribeiro de Andrada. O caso expunha um racha entra o Partido Republicano Mineiro, controlado por Antonio Carlos, e a Concentração Conservadora, divergência surgida do PRM e controlada por Melo Viana que apoiou Júlio Prestes na campanha de 1929. Melo Viana, segundo Vice-Presidente pardo do Brasil (o primeiro foi Nilo Peçanha), sobreviveu ao atentado e após a Revolução de 1930 teve de se exilar na Europa, voltando anos depois e retomando sua carreira política com força a partir de 1945, quando foi eleito Presidente do Senado. A tentativa de seu assassinato marcou um ponto sem retorno para a Política dos Governadores que vinha organizando o sistema político brasileiro desde 1898. Dali em diante, as próprias oligarquias estaduais (talvez com a exceção de São Paulo) já não conseguiam mais formar hegemonias estáveis dentro de seus próprios Estados como anteriormente.

Em regimes autoritários, em que a oposição é reduzida e controlada, os atentados contra políticos de alto escalão podem ganhar conotações ainda maiores e contribuir para gerar um aprofundamento do fechamento do regime e das garantias individuais. Um exemplo é o caso do atentado ao aeroporto de Guararapes, em 1966, no Recife, que teve como alvo o então Ministro da Guerra e futuro Presidente da República, Arthur da Costa e Silva. Até hoje há dúvidas sobre a autoria do atentado que vitimou fatalmente duas (um almirante e um secretário de estado de Pernambuco) e feriu outras 14 pessoas. Ocorre que o evento contribuiu para o processo de endurecimento do regime, acelerando a transição de poder do grupo castelista dos militares para o grupo linha dura do Exército, exacerbando a rivalidade interna da caserna. O resultado final desse processo, ainda que não possa ser apontado como causa direta, foi a edição do Ato Institucional Número 5, o maior golpe contra as liberdades públicas da história recente do país.

Por fim, o ano de 2018 foi o ápice do cenário político fervilhante desde 2013, e reservou para a história brasileira mais um atentado a um candidato a presidente da república: no dia 06 de setembro desse ano, Jair Bolsonaro foi esfaqueado em público durante um comício na cidade de Juiz de Fora em Minas Gerais. O criminoso, Adélio Bispo (de mesmo sobrenome do autor do atentado a Prudente de Moraes), foi filiado ao PSOL, o que abriu o flanco de teorias conspiratórias sobre uma tentativa de golpe por parte da esquerda mais radical do país. Ao que tudo indica, Adélio é psicótico e agiu sozinho, situação semelhante a ocorrida em 1915 com Pinheiro Machado, mantendo em aberto para o futuro as possibilidades de interpretações que nunca se encerrarão e nunca serão capazes de elucidar com clareza as motivações do crime. Logo após o atentado, o filho do candidato, Flávio Bolsonaro, declarou “acabaram de eleger o presidente”, apontando a possível vitória do candidato ainda em primeiro turno, o que não aconteceu. Mas, no fim de outubro, Bolsonaro logrou vitória nas eleições gerais com uma campanha dura e que soube explorar com habilidade e uso das redes sociais a condição martirizada de um sobrevivente de atentado. Sua eleição marca uma mudança de etapa na história brasileira. Ainda não é possível saber que tipo de mudança, nem sua profundidade, mas o jogo de poder da Nova República, pautado na dualidade PT e PSDB encerrou com o esvaziamento das forças políticas tradicionais e a alta taxa de renovação do congresso brasileiro.

Os atentados narrados não são a causa das rupturas políticas ou das mudanças institucionais na história do Brasil. Ainda assim, nota-se que sua existência se mostra como um sinistro termômetro dos processos políticos. As facadas, tiros e explosões desferidos contra membros da alta cúpula do poder brasileiro parecem indicar que o golpe que acerta o corpo do político faz sangrar também o corpo político (body politic). Terá o Brasil como estancar a hemorragia que está por vir?

Thiago Hansen é doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná.

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Democracia e bem viver: semear vida onde só há morte

7 de fevereiro de 2019 by Observatório

José Geraldo de Sousa Junior

Renata Carolina Corrêa Vieira

“¿Cómo seguir sembrando vidas donde sólo hay muerte?” Assim terminou sua fala, a Professora Catherine Walsh, em Conferência de Encerramento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, no II Seminário de Formação Política do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Movimentos Sociais e Culturas – GPMC, em setembro de 2018, na cidade do Rio de Janeiro, cujo tema do encontro era “Pesquisar, desobedecer e agir para o bem viver”.

Militante dos direitos indígenas e autora de livros sobre educação intercultural e pedagogia decolonial, teorias construídas com forte influência de Paulo Freire, com quem trabalhou nos anos 1980, se referia às sistemáticas violações de direitos humanos que os povos indígenas e os povos tradicionais, de matriz africana ou não, continuam sofrendo na América Latina desde a primeira invasão de Cristóvão Colombo às Américas. Vítimas de genocídio e de etnocídio, com contornos de epistemicídio,  pelos grandes projetos de desenvolvimento econômico nos países chamados “periféricos”, os povos indígenas e as comunidades tradicionais seguem a luta pela sobrevivência e pela preservação do meio ambiente.

A crítica da autora norte-americana, radicada no Equador, se refere, principalmente, a países que, mesmo depois de terem consagrado, em suas Constituições, direitos como o bem-viver e o da natureza (Pacha Mama), a exemplo de Bolívia e Equador, ainda mantêm os mesmos projetos de morte, quando se trata do plano de desenvolvimento econômico. Projetos de mineração, construção de barragens e hidroelétricas, extração de madeira, extensão das fronteiras agrícolas para o monocultivo representam modelos de desenvolvimento de uma classe dominante cujo projeto de poder coincide com uma política de extermínio: o neoliberalismo.

Assistimos todos constrangidos e atônitos nesse início de 2019 às notícias sobre o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), o número confirmado de mortos está em 65 e o de desaparecidos, 279, e crescendo, conforme matéria publicada na BBC Brasil. Ainda de luto pelo maior atentado ambiental do mundo praticado pela inação negligente de uma operação que resultou no vazamento de minério, ocorrido na região de Mariana (MG), em 2015, que gerou uma enxurrada de mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos, a morte de 19 pessoas, a destruição do modo de vida local de centenas de pessoas, a morte de um rio e incalculáveis danos para a biodiversidade local, voltamos a viver o mesmo pesadelo.

Diante de mais uma tragédia socioambiental provocada pela exploração de minério, a pergunta da conferencista volta a ecoar e reverberar: “¿Cómo seguir sembrando vidas donde sólo hay muerte?”, “¿cómo cultivar buenas semillas?”, “¿Cuáles son las semillas que debemos plantar?”Tais inquietações nos levam a um fio condutor de reflexão que perpassa pelo questionamento se é possível conciliar direitos humanos e neoliberalismo, em última instância, se é possível conciliar neoliberalismo e democracia.

Enquanto “um projecto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante”, a globalização neoliberal, nas palavras de Avelãs Nunes, é apoiada em aspectos não só econômicos, mas também filosóficos, ideológicos e culturais, que visam retirar a dimensão humana da vida, mercantilizá-la, transformá-la em mercadoria. A incompatibilidade entre efetivação de direitos humanos e a globalização neoliberal é tema central de análise em sua obra Neoliberalismo & Direitos Humanos.

Em entrevista concedida para o Observatório da Constituição e da Democracia (Brasília: Faculdade de Direito da UnB, C & D n. 21, abril de 2008, pp. 12-13), sobre a terceira onda da globalização (fase neoliberal), o autor afirma que “para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite”.

Alinhado a uma política neoliberal, logo no início de seu mandato, o atual Presidente da República, fez pronunciamentos de que em seu governo haveria flexibilização das regras da mineração e do licenciamento ambiental, inclusive com possibilidade de exploração de minério dentro de terras indígenas (Disponível aqui, aqui e aqui). No primeiro dia de seu mandato, a competência da Funai para demarcação de terras indígenas foi retirada, que passa a ser do Ministério da Agricultura, chefiado por uma ruralista.

São direções, atitudes e pronunciamentos que se põem a contracorrente das motivações distributivistas que, mesmo no mais exacerbado utilitarismo cuidaram de imprimir à economia um sentido político, que a insere no campo do que já foi chamado de teoria dos sentimentos morais (Adam Smith). E isso é inaceitável porque escancara um curso que busca imprimir em nosso País, aprofundando desigualdades que sacrificam o nosso povo, projetos de acumulação e de desenvolvimento entreguistas e excludentes, distanciando-se da aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, que em países avançados, capitalistas e não capitalistas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida.

No que tem sido chamado de processo de desdemocratização e de desconstitucionalização que avassala o país desde 2016, como consequência de um golpe político que criou as condições para o reagrupamento dos interesses econômicos neoliberais, é preciso resistir e defender o projeto democrático-constitucional que organizou o social para vencer e superar as desigualdades.

Tudo menos o conformismo, que acentua a naturalização de condições que, longe de decorrer de um destino, está, certamente, ao alcance da capacidade humana e política de definir ações transformadoras da realidade:os fenômenos sociais são, antes e acima de tudo, produtos da prática humana, estando, pois, aptos a assumirem contornos singulares conforme a época, a sociedade e a cultura, abrindo-se a essas mudanças.

Por isso, retomando à ideia de semente e às perguntas da autora citada“¿cómo cultivar buenas semillas?” e “¿Cuáles son las semillas que debemos plantar?” são as lutas que preparam o terreno para afirmar modos de vida e é essa percepção que está na raiz do conceito que o projeto social implantado pelo movimento de redemocratização, com a Constituição de 1988 fecundou. Vale dizer, conferir ao meio ambiente a condição de bem comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, da atual e das futuras gerações e salvaguardar, no interesse intergeracional, incluindo o modo de produção e de reprodução da existência social dos povos tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, nossa referência de passado e nossa aliança ética de futuro.

Isso representa uma chamada para que se reponha na esteira da defesa da Constituição e da Democracia, exigências acerca das reformas estruturais pelas quais passa o debate hoje, vale dizer, a nota social que se vai perdendo e que acaba por retirar a dimensão ético-política que deve presidir a sua orientação. Cuida-se, pois, de definir políticas públicas, inclusive no que concerne à reforma do Estado e dos serviços públicos, que sejam obedientes a valores. Na medida de seu potencial transformador das instituições e dos perfis de desempenho, esses valores é que vão permitir organizar, na sociedade e no Estado, padrões de cooperação, solidariedade e participação, por meio dos quais, à lógica excludente e alienante que se sustenta no primado da acumulação monopolista, se oponha, como prioridade de ação, da sociedade e do governo, a lógica democrática que se sustenta no primado de uma equitativa distribuição, enquanto se oriente para projeções que garantam o direito à vida plena, bem vivida, vida decente.

José Geraldo de Sousa Junior e Renata Carolina Corrêa Vieira são pesquisadores do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua.

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Democracia: direito à palavra

7 de fevereiro de 2019 by Observatório

Bianca Dias

Convocada a escrever sobre democracia em uma época de clara derrocada simbólica, preciso remontar às origens gregas do termo que assinala o uso livre da palavra em dimensão pública. Acontece que, da Grécia até os dias atuais, muita coisa aconteceu e incidiu na cultura e no modo de apreensão e circulação da linguagem. Se para os gregos a possibilidade de ascender à palavra foi também a possibilidade de que cada sujeito – e não apenas os deuses – pudesse escrever seu destino, devemos agora pensar no lugar e no modo como a palavra é hoje tomada.

Como pensar sobre isso numa época em que o empuxo ao imaginário é avassalador, a ponto de as pessoas não mais conseguirem ler as imagens e o mundo, sem que o seja de maneira direta, sem a mediação de componentes que se dissolveram com a chegada das redes sociais que aplainam de maneira impressionante a dimensão da experiência? A psicanálise nasceu com a associação livre que em muito difere do falatório contemporâneo. No método psicanalítico, o conflito e a dor de existir são tratadas ao se dar densidade a cada palavra, devolvendo a espessura do mundo.

Por adotar a lei da palavra e dela fazer a sua lei, a psicanálise se mostra profundamente consoante ao segundo princípio da democracia: a isonomia, igualdade diante da lei. Quando pressupostos básicos são arrancados – liberdade, justiça, solidariedade, compaixão, humanidade – há, como na poesia de Paul Celan, um sequestro da palavra: “a poesia já não se impõe, expõe-se”.

Com as vísceras expostas devemos, mais do que nunca, convocar a poesia e a arte. Assim perguntou Paul Celan, em 1960, em uma carta a Hans Bender: “Como se fazem poemas?”. Freud estudou a questão ao buscar em escritores e artistas a ideia de sublimação. Ele investigava sobre o que leva alguns a escreverem poemas, como acontece essa poderosa transformação e quais seriam seus efeitos na cultura.

Diante do curto-circuito pulsional que faz com que o que se impõe sejam gozos auto-centrados, é preciso pensar o fundamental conceito freudiano de pulsão, limite entre o psíquico e o somático, passível de diferentes destinos. A pulsão é uma força que necessita ser submetida a um trabalho de ligação e simbolização para que possa se inscrever no psiquismo propriamente dito. A sublimação demonstra a enorme capacidade transformadora da pulsão e é a capacidade de alcançarmos certa sofisticação no campo da linguagem.

A poesia e a arte valeram-se do legado freudiano – em sua variedade e quantidade de material dedicado à cultura, bem como dos textos relativos à metapsicologia, que mostrou-se rica em ferramentas para a abordagem da arte. Mas como falar em poesia e em arte quando a palavra encontra-se asfixiada e a literalidade soterra qualquer possibilidade de dialetizar o mundo e as palavras? Baudelaire – que se exprimira muitas vezes por meio da forma, e para quem a dor ritmizada, articulada, preenche o espírito com uma alegria tranqüila – talvez hoje estivesse comprimido num mundo em que nada se articula, onde sequer o mal-estar pode encontrar ancoradouro.

A democracia se esfacela quando se impõe um funcionamento de massa em que – diferente do coletivo, onde cada um pode colocar algo de si – há um achatamento do grão do dissenso que deve existir no seio de uma comunidade. E não há dúvidas de que, no país, neste momento, não somente a poesia e a arte, mas também a dimensão da palavra e da democracia encontram-se ameaçadas. Ameaçam tudo que faz viva a lei do desejo, tudo que difere do totalitarismo e anda às voltas com a falta. A psicanálise e a arte são expressões do inacabado – o que faz com que só existam em estado de constante mutação. Uma vez que não giram (apenas) em torno do falo, podem arriscar movimentos centrífugos em direção a não se sabe onde, na direção de uma desmesura.

Na contramão do golpe que visa nos silenciar, resgatamos algo da democracia onde tudo parece opaco: vamos vivificar a palavra, colocar corpos e vozes nas ruas. Como críticos da cultura, psicanalistas, poetas, artistas, somos convocados a dizer e reavivar a força da palavra. Devemos começar do nada, da sucata, da lama, do lixo, do material em estado de putrefação – afinal de contas, este nunca foi um campo anódino e sempre nos pediu coragem extrema. Dar forma ao que não existe: criar algo capaz de revelar, em sua precariedade, os restos e dejetos da civilização, resgatar a palavra que cria laços, compromissos no espaço público e privado. Palavra que se diz livremente no um a um das singularidades, resistindo ao fracasso da democracia.

Lacan afirma que “o inconsciente é a política”. Na medida em que o inconsciente é o discurso do Outro, a política está inexoravelmente articulada ao laço social que se produz e se orienta no âmbito do discurso, que precede e acolhe o sujeito e os gozos que restam e participam dos compromissos sintomáticos.

A partir de uma experiência com o real elaboramos nossas respostas frente ao impossível. Foi Freud quem escreveu sobre os três impossíveis: governar, educar, psicanalisar. Somos engendrados nos impasses que a cultura tece e devemos convocar a palavra lá onde existe sua derrocada, para que se possa manter acesa a chama da democracia onde impera a selvageria nas relações público-privadas e nas instituições. E é preciso que possamos deixar assinalado, escrito e em evidência, um alto e sonoro “não” à injustiça, exploração e violação dos direitos humanos.

Vladimir Safatle defende a tese de que o poder age nos melancolizando e, através da melancolia, consegue nos assujeitar, produzindo e gerenciando nossos afetos.

Temos muito Brasil pela frente e sempre poderemos cantar junto à voz poderosa de Caetano Veloso: “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.

Bianca Dias é psicanalista, ensaísta, crítica de arte e autora do livro “Névoa e assobio”.

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A chantagem da Democracia

7 de fevereiro de 2019 by Observatório

Marcelo Labes

Se fosse para culpar alguém, poderíamos pôr na lista aquelas brasileiras e aqueles brasileiros que ajudaram a promulgar a Anistia (28/08/1979), ignorando que os assassinos e torturadores da Ditadura seguiriam impunes? Ou poderíamos culpar a ressaca festiva da década de 1980  – impossível não lembrar dos nomes do rock brazuca enfrentando os generais que já estavam, àquela altura, confortavelmente assistidos pelo Estado brasileiro, de volta aos bastidores da grande política nacional – com Paulo Ricardo cantando, em Olhar 43, “Ou vão me censurar… / (Será?)”.

Mas não podemos ir atrás de culpado quando não tivemos nada a ver com isso. De certa forma, sim, podemos – imagino que tenhamos o dever de fazê-lo – para que brasileiras e brasileiros deixemos de ser vítimas – ou, ao menos, minimizemos a chantagem a que somos expostos durante as campanhas eleitorais do fantasioso jogo a que damos o nome de Democracia. Aqui já me explico, para não causar maior estranhamento: quem está no poder são as corporações, sempre estiveram, não há notícia que me permita pensar o contrário. Acontece que isso não é de hoje.

Se recordarmos Sarney (perdoem-me lembrá-los disso) acidentalmente na presidência, lembraremos não somente um período de inflação galopante, como também poderemos lembrar a cafonice em que estava submersa a cadeira do mandatário da república. Esse espírito kitsch foi rapidamente sentido pela publicidade nacional e, já nas eleições de 1989, o espírito democrático ganhou novas cores, ares e sons. É o que nos mostra didaticamente o documentário Arquitetos do poder (Vicente Ferraz  e Alessandra Aldé, 2001). Enquanto a campanha de Fernando Collor inovava com técnicas remotas de efeitos gráficos inspirados na Globo e no trabalho de Hans Donner, focando no discurso anticomunista (naquele momento fazia sentido, o Muro de Berlim ainda não havia caído), a campanha de Lula, coordenada pelo publicitário Paulo de Tarso, proporcionava ao PT o jingle-hino “Lula-lá”, que todos sabemos cantar, nem que seja somente o refrão, e focava na esperança.

Tarso foi responsável pelas campanhas presidenciais de Lula em 1989 e 1994. No início da segunda campanha, quando o Real estava no mercado há poucos meses e a economia finalmente estabilizava, o candidato tucano despontava como o preferido do eleitorado brasileiro. Lula, que havia se oposto à criação da nova moeda – junto com Brizola –, surge na primeira aparição da campanha eleitoral mostrando-se favorável ao Real. Mas não à toa. “No primeiro programa que eu fiz, já fiz com o Lula dizendo ‘Eu não sou contra o real’”, afirma Tarso. Em 2001, quando Lula foi eleito para assumir seu primeiro mandato no ano seguinte, Paulo de Tarso trabalhava para cuidar da imagem do presidente de então, Fernando Henrique Cardoso – reeleito depois daquele escândalo de compra de votos, bem sabemos.

Política, no Brasil, é questão de publicidade.

E publicidade, bem sabemos, lida com o irracional.

Política, no fim, é resultado de chantagens.

Lembremos as manifestações de 2013, para começar. Hoje se diz que o que houve naquele ano permitiu, em seguida, o impeachment de Dilma Rousseff. Pouco se fala de como os governos federal e estaduais lidaram com as manifestações. A rua só foi tomada pela direita mais abjeta porque os militantes de esquerda já haviam sido perseguidos, presos e impossibilitados de retornar às ruas sob sabe-se-lá quais tipos de ameaças. O caso de Elisa Quadros e O processo dos 23 ilustra isso tristemente bem.

Mas por que lembrar de 2013? Retomemos alguns pontos. A Lei de Anistia brasileira, datada de 1979, anistiava também os militares. O governo Dilma foi o criador da Comissão Nacional da Verdade, em 2011. Tal órgão tinha por finalidade fazer justiça, finalmente, aos perseguidos, torturados, mortos pela Ditadura Militar (1964-1985). A instituição, porém, não tinha o direito de punir torturadores e assassinos, fato que foi amplamente criticado por brasileiros atentos ao que se fazia (e se faz) em países que tiveram ditaduras, como Argentina e Chile, que ainda hoje perseguem e prendem ex-agentes da repressão.

Pois bem: enquanto Elisa Quadros era capa de revista de circulação nacional e apontada como terrorista, Rafael Braga era preso por porte de desinfetante, Amarildo seguia desaparecido e estudantes em todo o país eram perseguidos por polícias de todos os uniformes, a campanha de Dilma relembrava sua prisão, em 1970, sob o tema “Dilma, coração valente”, ressaltando a imagem estilizada da presidenta quando militante revolucionária. Comovente.

Antes e depois do golpe de 2016, política era questão de chantagem. Mas, até aquele momento, a chantagem estava restrita às campanhas eleitorais. Depois, passou a acontecer a todo momento – pelo menos para a direita abjeta. Enquanto a esquerda institucional discutia qual seria a melhor forma de o PT apresentar sua candidatura à presidência, a direita esquizofrênica de Bolsonaro já disparava suas chantagens: socialismo, comunismo, kit gay, gayzismo e por aí vai. Além, é claro, de chantagear com o tema da segurança pública, item que os partidos de esquerda pareceram ignorar durante as campanhas de 2018.

Como o poder vai para quem dispõe da melhor chantagem, podemos dizer que a campanha de Bolsonaro fez isso muito bem, ainda que, necessário ressaltar, de maneira criminosa, pois o socialismo anda longe, o comunismo mais ainda, o kit gay nunca existiu e o gayzismo tarda a chegar. No entanto, a campanha da esquerda apontou durante todo o tempo para uma meia-verdade (ou uma quase-mentira, ou uma meia-mentira, ou…) que era o temor de que se instalasse um governo fascista no país, uma ditadura branca, os milicos eleitos para ocuparem o poder.

As reações dos candidatos à esquerda demonstraram que o fascismo não estava para chegar ou, por outro lado, que já havia se instalado no Estado e dele somos todos reféns. Digo isso porque, sabemos, o fascismo não pode ser combatido nas urnas, por violento que é, e demanda da sociedade civil a derrubada de seus líderes. Fascista não se tira do poder com votos; fascistas são tirados do poder na bala. Não esqueçamos o caso de Mussolini e o fim que teve, em praça pública. Mas a esquerda institucional brasileira, tão preocupada em manter o Estado funcionando – com todas suas perversidades, com todos seus crimes, com todos seus lobbies bilionários – e almejando poder, antes de tudo, não poderia dar a Bolsonaro um fim semelhante. Porque Bolsonaro não é Mussolini. Ou porque Bolsonaro não é exatamente o fascismo. Fosse, talvez Haddad não tivesse parabenizado o vencedor e lhe desejado “sucesso” após ter sido derrotado nas urnas.

Se você chegou até aqui, pode perguntar: mas o que o autor desse texto está querendo dizer? Bem, primeiro preciso argumentar em favor de uma esquerda que se conheça, se critique e exija de si saídas para além das eleições. Diz-se de quem critica a esquerda, hoje, que se assemelha à direita. Considero esse um engano sem tamanho. A direita critica a esquerda por razões bem outras – e as fake news de Bolsonaro nos dão pistas para saber quais são essas razões. A esquerda institucional, a partir do momento que nega/evita/interrompe críticas está se fragilizando ainda mais. E quem é responsável por essa fragilização? O PT? Dilma? Lula?

Não, querida leitora, querido leitor. A maior responsável pela fragilização da esquerda é a própria esquerda, como um todo. Seja porque temos mais esperança do que senso crítico, seja porque bebemos mais no passado do que no presente, seja porque, em tempos de ódio, precisamos vencer a direita a todo custo. Mas vencer como? Nas urnas? Isso já se mostrou ultrapassado e falho – vide o atual “presidente”. Então poderíamos ameaçar as pessoas alegando que o fascismo venceu? Depende para quem, na verdade, porque nas periferias o fascismo chegou faz tempo. Mas não, não é possível alegar que o fascismo venceu quando, no dia seguinte à vitória fascista, o candidado democrata aparece, derrotado, tocando violão para seus fãs.

Então poderíamos, quem sabe, fazer a nossa parte e abrir mão da chantagem eleitoral assumindo que a a esquerda institucional, burocratizada, chegou ao fim? Poderíamos abrir mão da chantagem das eleições? Poderíamos, quem sabe, encontrar novas formas de organização que não seja a antiga estrutura de poder hierarquizada e mancomunada com os bancos e as grandes corporações? Poderíamos, claro, mas para isso teríamos que abrir mão da dinâmica a que somos expostos – e com a qual sofremos, direta e indiretamente, hoje mais do que nunca. Para isso é preciso olhar em frente, sobretudo. Mas prever o futuro não significa abandonar a crítica e reconhecer os erros de nossos antecessores.

Reconhecer, por exemplo, que a maioria de nós só lembra de discutir política quando o fascismo está para tomar o poder é uma delas. Reconhecer que a esquerda institucional está mais preocupada consigo mesma do que com a democracia é outro ponto importante. Assumirmos, por fim, que campanhas políticas são obras de chantagem e que os chantageados somos nós, outro ponto importantíssimo.

Enquanto as esquerdas não aceitarem se olhar no espelho, teremos de aceitar que a cretinice tomou conta do país – como temos visto – e teremos de aceitar, ainda, que eles ganharam.

Mas eles não ganharam e ainda podemos provar isso.

Só não podemos esperar pela próxima campanha eleitoral e suas novas chantagens – de direita e de esquerda – sejam apresentadas ao eleitorado. Daí, sim, poderemos assumir que perdemos, mesmo que a esquerda emplaque um novo presidente. Porque a estrutura terá permanecido e a chantagem ainda será a mãe da política brasileira.

Marcelo Labes é escritor.

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Sobre ativismos e democracia

7 de fevereiro de 2019 by Observatório

Luciana Silva Garcia

Em meados da campanha eleitoral de 2018, ganhou repercussão uma frase do então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro: “não pode ter esse ativismo xiita ambiental no Brasil” ao ser entrevistado por uma emissora de televisão. Indagado posteriormente sobre o significado de sua declaração, o candidato pontou “o que quer dizer acabar com o ativismo? [questionamento da jornalista] É o pessoal xiita. É botar um ponto final nesse ativismo xiita. Grande parte deles vive de dinheiro de ONGs. Eu acho que você tem que defender a tua posição, mas não partir para o radicalismo, como eles fazem. Isso tem que acabar. “ E na sequência sobre como “acabar” com o ativismo, responde “tem ativismo em qualquer lugar. O ativismo não é benéfico. E nisso nós devemos pôr um ponto final.”

Na sequência de sua eleição, o primeiro ato do presidente eleito foi a edição, em 1º de janeiro de 2019, da Medida Provisória n. 870 que estabelece a organização básica dos órgãos do governo federal. Uma medida que dá substância legal à bravata da campanha: em seu artigo 5º, inciso II estabelece que é competência da Secretaria de Governo da Presidência (ocupada pelo general Carlos Alberto dos Santos Cruz) “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional.”

A liberdade de associação prevista na Constituição Federal de 1988 garante autonomia na criação das associações e proibição de qualquer interferência estatal em seu funcionamento. Ou seja, a participação social, por meio de associações, movimentos, organizações, agrupamentos é uma garantia constitucional que considera a importância da inclusão de todas as lutas no espaço do Direito estatal; o fortalecimento do regime democrático e da democracia participativa; a orientação de políticas públicas que se desenvolvem em um ambiente de pluralismo e diversidade; e o controle da gestão pública. Especificamente sobre esta previsão, o Ministério Público Federal publicou nota técnica apontando a inconstitucionalidade da medida.

Tomemos como exemplo o movimento feminista: a universalização do sufrágio, a pressão por uma produção legislativa que garantisse uma igualdade formal (até pouco tempo inexistente) entre homens e mulheres, a proteção do direito à vida e integridade física de mulheres vítimas de violência doméstica são fruto de intensa organização política e social do ativismo de mulheres.

Levitsky e Ziblatt ao estudarem os fracassos da democracia no mundo ocidental, estabelecem quatro indicadores de comportamento autoritário em políticos: i) rejeição às regras democráticas do jogo (ou um compromisso frágil com elas); ii) negação da legitimidade dos oponentes políticos; iii) tolerância ou encorajamento à violência e iv) propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive da mídia.

A desqualificação agressiva do ativismo e a adoção de meios inconstitucionais para controlar a atuação da sociedade civil enquadram a posição do presidente num comportamento autoritário, seguindo os indicadores apontados pelos autores. Do contrário, qual a preocupação do governo federal em “supervisionar” a atuação da sociedade civil? Se não para retalia-la quando considerar certo ativismo como “não benéfico” ou “xiita”?

Organizações e movimentos são sujeitos estratégicos na formulação de políticas públicas, elaboração de leis, fiscalização do poder público do ponto de vista orçamentário, na pressão pela execução de políticas e programas de governo. “Uma sociedade civil vibrante, atuante e livre para denunciar abusos, celebrar conquistas e avançar em direitos é um dos pilares de sociedades democráticas em todo mundo”.

Luciana Silva Garcia é doutora em Direito pela Universidade de Brasília, professora do Instituto Brasiliense de Direito Público.

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Democracia, Representação e Redes Sociais

29 de janeiro de 2019 by Observatório

Adrian Gurza Lavalle

As eleições presidenciais no Brasil acenderam uma lâmpada vermelha que já alarmou e, tudo indica, haverá de alarmar novamente estudiosos e defensores da democracia: o uso intensivo das redes sociais nas campanhas tornou os processos eleitorais altamente imprevisíveis e vulneráveis. Imprevisíveis não só para observadores experientes, mas inclusive para atores políticos com longas trajetórias. Afinal, as vitórias de Trump, do Brexit e de Bolsonaro também representaram derrotas de vulto às classes políticas dos respectivos contextos nacionais.

Imprevisíveis? Incerteza faz parte do jogo democrático, mas essa imprevisibilidade é de outra natureza e diz respeito ao caráter iliberal e potencialmente antidemocrático de pautas e candidatos que, inesperadamente, conseguem alinhar a maioria do eleitorado. É claro que as tecnologias utilizadas para tornar as redes sociais motores das campanhas não são monopólio de candidatos com agendas iliberais, e que o mercado as tornará disponíveis para serem utilizadas maciçamente por todos os candidatos com capacidade de comprá-las. Ainda haveremos de ver os resultados de campanhas com essas características. A questão é que os filtros operados para a seleção de candidatos pelos canais tradicionais de recrutamento e ascensão na carreira política, em maior ou menor medida sobre o controle da elite política, bem como os filtros operados para a seleção de temas a serem aventados na disputa pelo alinhamento político da sociedade, sob controle dessa elite e, é claro, da mídia tradicional, tornaram-se obsoletos ou, pelo menos, perderam eficiência ao ponto de tornar imprevisíveis os termos da disputa eleitoral.

Vulneráveis porque o uso intensivo das redes sociais desestruturaram a relação entre representação eleitoral e comunicação política exercida pela mídia tradicional, arriscando levar de roldão a própria democracia. Sabe-se que historicamente a democracia tem mostrado grande adaptabilidade, mas é fato que não conhecemos outros modelos que organizem a comunicação política nas democracias sem passar pela representação política e pelas mídias de massas. A representação eleitoral é costumeira e singelamente descrita como um processo de delegação e o trabalho da mídia, como mera transmissão de informação. Os mecanismos internos e os processos comunicativos que produzem essa delegação são, todavia, complexos.

Do ponto de vista da comunicação, a disputa entre candidatos a representantes foca a atenção pública nos problemas e soluções (temas) aventadas pelos principais candidatos, e isso se torna possível porque os meios massivos de comunicação reforçam a seletividade do processo eleitoral aplicando critérios de relevância política próprios do campo do jornalismo político, sempre mediados pela posição do meio específico no mercado do jornalismo. Os diagnósticos dos problemas que demandam a atenção do eleitorado e as soluções que parecem viáveis e merecem credibilidade pública ganham projeção por essa dupla filtragem. Assim, para bem e para mal, as tentativas de politização do eleitorado para alinhá-lo atrás de determinada opção ao longo da disputa eleitoral ocorrem dentro de espectro de temas moderado, explorados em termos que atendem a razoabilidade pública.

Certamente a dupla filtragem tende a conceder menor projeção a visões radicais, mas ao mesmo tempo torna possível compreensões comuns e razoáveis sobre o estado do mundo, reduzindo o espaço para diagnósticos delirantes e soluções mirabolantes. Essa articulação entre representação política e mídia de massas e seus efeitos de filtragem são neutralizados pelo uso intensivo das redes sociais nas campanhas eleitorais, alimentando processo de comunicação política aparentemente não mediados (apenas aparentemente). Na formulação setecentista clássica de Madison, a representação aprimora e amplia os interesses em disputa porque opera como uma complexa máquina de mediação que filtra e desacelera a tomada de decisões. Algo semelhante ocorre com os processos de comunicação política que, hoje em cheque, alicerçaram a representação nas democracias de massas.

A questão, em sua forma mais geral, remete à relação entre meios de comunicação e democracia, que foi tradicionalmente elaborada, na teoria democrática, no capítulo do papel da informação no elenco das condições indispensáveis para a celebração de eleições dignas do adjetivo “democráticas”.  De modo mais preciso, aos meios de comunicação caberia uma função fundamental de comunicação política: produzir e veicular informação politicamente relevante para os cidadãos. Como as fronteiras entre “informação” e “formação” da opinião pública são tênues, e como a definição e aplicação dos parâmetros do que seja politicamente relevante são sempre passíveis de controvérsia, essa função só seria garantida mediante existência e vitalidade de diversos meios de informação independentes. Assim, a diversidade de meios de comunicação independentes salvaguardaria a democracia do ponto de vista da igualdade de condições formais para a informação e formação de opinião dos cidadãos.

Como orientação normativa, essa formulação liberal continua em pé com a mesma pertinência que quando formulada em meados do século XX, mas sequer consegue arranhar as especificidades da comunicação política realizada hoje por intermediação das redes sociais. A comunicação política que corre pelas redes sociais acontece de modo difuso e descentrado, e se apresenta como se fosse inerentemente plural, quer dizer, como se o acesso a informações e opiniões variasse conforme as escolha de cada indivíduo de pertencer ou não a determinadas redes. Especialmente no caso do WhatsApp, a comunicação política ocorre como se fosse uma relação indivíduo a indivíduo; na sensação de proximidade entre destinatário e remitente reside parte da efetividade dessa rede para produzir persuasão. Nesse caso, trata-se de funções de comunicação política operadas como se se tratasse de comunicação direta entre particulares.

“Como se fosse” é uma qualificação relevante. Embora a comunição pelas redes sociais seja certamente mais descentrada, horizontal e bidirecional do que a comunicação política realizada pela mídia tradicional, sabemos que o uso intensivo dessas redes como parte de estratégias de campanha visa gerar efeitos de manada como se fossem espontâneos, não mediados e dirigidos por um ator político. Uma agenda de reforma para regular o uso das redes sociais como veículos de comunicação política está à frente como um desafio para resguardar a democracia. Não sabemos, todavia, se essa regulação limitará e normalizará o uso das redes como uma ferramenta a mais à disposição do marketing político, ou se a comunicação indivíduo-indivíduo em grande escala, permitida pelas redes, exigirá novas adaptações históricas à democracia.

Adrian Gurza Lavalle é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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José Nunes (@nunescnt) é doutor em direito pela Universidade de Brasília.

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