Constitucionalismo

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Democracia e Luta Antimanicomial: sem cuidado em liberdade, não há democracia

14 de fevereiro de 2019 by Observatório

Ludmila Cerqueira Correia

Ninguém duvida que na conjuntura política atual do Brasil, com muitos retrocessos, sobretudo nas políticas sociais, novas ações e medidas do Governo Federal continuem sendo elaboradas e implementadas para acentuar as desigualdades sociais já existentes, uma vez que está bastante clara a perspectiva neoliberal adotada pelo atual governo. Neste sentido, o que se observa nas políticas de saúde é a precarização e a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS) e o esfacelamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que tem alcançado com mais intensidade os grupos sociais subalternizados, como é o caso das pessoas com transtornos mentais.

No último dia 04 de fevereiro de 2019, muitas pessoas, coletivos e movimentos sociais vinculados à Luta Antimanicomial no Brasil tomaram conhecimento de mais um duro golpe contra a Reforma Psiquiátrica, a publicação de uma Nota Técnica do Ministério da Saúde (Nota Técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS), através da Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Não fossem os últimos três anos, em que os retrocessos no campo da atenção e cuidado em saúde mental têm ficado cada vez mais evidentes, poderia se afirmar que esse novo documento apenas apresenta o desenho para as mudanças que já vinham sendo realizadas com a edição de resoluções e portarias, sobretudo em 2017 e 2018. Ocorre que as orientações contidas nessa Nota Técnica aprofundam o processo de destruição da Reforma Psiquiátrica e desmontam a RAPS, desconfigurando, portanto, a Política Nacional de Saúde Mental. Esse processo está em sintonia com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que defende interesses privados na saúde mental e tem desconsiderado as práticas de cuidado desenvolvidas sob as diretrizes da Reforma Psiquiátrica.

O que se observa, portanto, já nesses primeiros meses de governo, através dos documentos publicados e já citados, é a promoção de interesses econômicos e religiosos, colocando em xeque os princípios da Reforma Psiquiátrica e promovendo pautas corporativas. Isso fica evidenciado com a manutenção dos leitos em hospitais psiquiátricos (que vinham sendo fechados e substituídos paulatinamente por serviços territoriais e comunitários, visando o cuidado em liberdade) e com a inclusão das Comunidades Terapêuticas como ponto de atenção (serviço) da RAPS. Significa, portanto, o enfraquecimento de um campo ético-político pautado na solidariedade, na democracia e na justiça social.

A Reforma Psiquiátrica brasileira é considerada um processo social amplo e complexo, e é fruto da Luta Antimanicomial, que, através dos movimentos e coletivos que a constituem e impulsionam, demonstrou como a participação social contribuiu para promover mudanças significativas no campo da assistência psiquiátrica. Foi com a mobilização do Movimento da Luta Antimanicomial, que integra pessoas com transtornos mentais e seus familiares, que a Lei nº 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica) foi aprovada e trouxe um novo paradigma: o cuidado em liberdade. De acordo com o texto desta lei, que se tornou referência para outros países da América Latina, a internação em hospitais psiquiátricos somente poderá ser indicada quando “os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, ou seja, ela só pode ser adotada como último recurso, denotando que o que se pretende é a superação da internação, esvaziando, assim, as instituições com características asilares.

Uma série de documentos, sobretudo os relatórios de vistorias e inspeções realizadas seja por organizações de Direitos Humanos, associações e conselhos de classe, seja por instituições do Sistema de Justiça e mecanismos independentes (como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), já vem denunciando, há muito, as diversas violações de direitos humanos ocorridas em hospitais e clínicas psiquiátricas, bem como em comunidades terapêuticas. Neste sentido, como admitir que a internação tenha lugar ainda hoje, uma vez que os serviços substitutivos que compõem a RAPS vêm promovendo o cuidado em liberdade de tantas pessoas no país?

Todos os passos e ações do Ministério da Saúde nesse governo atual têm demonstrado o interesse pela retomada da internação, o que contraria frontalmente a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (já assimilada pelo Brasil com status de norma constitucional em 2009) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). Ambos os instrumentos jurídicos são fundamentais neste debate, uma vez que reconhecem as pessoas com transtornos mentais como cidadãs, ao afirmarem a sua capacidade civil plena (afastando a interdição como regra) e o exercício dos seus direitos (como o casamento ou união estável, direitos sexuais e reprodutivos, dentre outros), além da sua participação social.

Dessa forma, destaca-se que no estágio atual, além da resistência, novas estratégias de participação social são imprescindíveis para fazer frente a esse desmonte no campo da saúde mental. Faz-se necessário retomar as discussões realizadas e as deliberações construídas no “Encontro de Bauru: 30 anos por uma sociedade sem manicômios”, em dezembro de 2017, em Bauru – SP. Nesse evento, construído por muitas mãos, foram reafirmadas e defendidas as conquistas alcançadas ao longo de 30 anos da implantação de uma política pública exitosa, sustentada dentro de um Estado democrático, além de debatidos os desafios da Reforma Psiquiátrica, especialmente com os retrocessos no campo da saúde mental aprofundados no Governo Temer.

Aquele momento de fortalecimento da luta antimanicomial em Bauru precisa se materializar em ações de mobilização para que os coletivos e movimentos possam seguir lutando “Por uma sociedade sem manicômios”, contra todas as formas de cárcere, exploração e opressão, como registrado na Carta de Bauru– 30 anos: “que a sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, socialista e anticapitalista. NENHUM PASSO ATRÁS: MANICÔMIO NUNCA MAIS!”.

Ludmila Cerqueira Correiaé doutora em direito pela Universidade de Brasília e professora da Universidade Federal da Paraíba.

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José Nunes (@nunescnt) é doutor em direito pela Universidade de Brasília.

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