Constitucionalismo

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Isso é hora de falar em estética?

29 de janeiro de 2019 by Observatório

Julia Raiz

“O Retorno de Mary Poppins tem um subtexto socialista” é o título de um texto publicado pelo jornal paranaense de maior expressão do estado, Gazeta do Povo, dia 07/01. A crítica originalmente aparece no conservador National Review dia 02/01, escrita pelo crítico de cinema Armond White.

Eu não conhecia Armond White, mas com uma breve pesquisa no Google descobri que é um crítico de cinema conhecido nos EUA, mesmo que constantemente chamado de troll por seus julgamentos no mínimo controversos. White, por exemplo, elogia Transformers 2: Revenge of the Fallen e considera o diretor Michael Bay um visionário, enquanto detona Get Out (dirigido por Jordan Peele), afirmando que o filme perpetua um estado mental de nação dividida.

Não é só o título que é apelativo, o texto inteiro é um compilado de afirmações que por mais graves que sejam, são apresentadas com urgência de chocar mais do que com preocupação em estabelecer qualquer caminho argumentativo lógico. White comenta sobre as reconfigurações das canções do filme de Mary Poppins que, pra ele, adquirem tons repressivos e pedantes, na esteira do “clima de #Resistência” que invade Hollywood. Na canção “Nowhere to Go but Up”, o crítico chama atenção para o que ouvidos cuidadosos já teriam percebido: “o stalinismo do showbiz: ‘O passado é o passado/Ele vive como história/Deixe o passado sair de cena/para sempre é agora’”. A partir desse trecho, White questiona: “Por que uma cantiga num filme para toda a família deveria evocar o apagamento da história perpetrado pelo regime soviético?”. O crítico acredita que uma canção, que compara a vida com um balão que segue sempre pra cima em direção ao mistério do futuro, é suficiente para afirmar que a babá stalinista tem interesse no apagamento dos horrores perpetrados pelo regime soviético. Isso não é uma interpretação minha do texto, é o que está escrito.

White segue sugerindo outras “provas” de um subtexto socialista: uma cena em que personagens menores fazem campanha em prol de trabalhadores mal-remunerados; a visita que Mary Poppins faz à prima Topsy (Meryl Streep) que arrisca um sotaque russo. White enxerga nesta última cena uma sugestão de “algum tipo de conluio profano”. Sintetizando o texto, teríamos: permitir que as crianças assistam “O Retorno de Mary Poppins”, com todos os subtextos socialistas existentes, é desejar que cresçam para avolumar o movimento Antifa, composto por militantes indiferentes e egoístas.

A partir do texto é fácil inferir os posicionamentos políticos de Armond White, de quem eu nunca tinha ouvido falar até então. Mas se esse exercício exigiria algum esforço de pesquisa, o mesmo não é necessário a respeito da Gazeta do Povo. A linha editorial do jornal está, de maneira nada disfarçada, investindo em três frentes: liberalismo econômico com foco no elogio à meritocracia, empreendedorismo, privatizações; conservadorismo nos costumes contra qualquer pauta progressista das lutas antirracista, feminista e da comunidade LGBTQIA+; autoritarismo político, alimentando o mito do herói de toga Sérgio Moro que condena sem provas.

Mas não é, especificamente, sobre o filme de Mary Poppins que quero falar, nem sobre os posicionamentos de Armond White ou da Gazeta do Povo. A questão é que a crítica de White acendeu um alerta na minha cabeça. O texto, traduzido e publicado na mesma semana que aparece no National Review, é um exemplo da direita pensando estética.

Nos últimos meses fomos atingidas/os, em diferentes níveis, por tragédias avassaladoras: a destruição criminosa do Museu Nacional, a expulsão via ameaças à vida do deputado Jean Wyllys, o rompimento criminoso da barragem em Brumadinho, cada qual gerando consequências terríveis ainda não conhecidas inteiramente por nós. No sábado ouvi a ex-deputada federal Angela Albino falando sobre o livro “Como as democracias morrem” de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Albino apresentou os quatro indicadores de comportamento autoritário, segundo o livro, num contexto de pós-liberalismo econômico: rejeição das regras democráticas; negação da legitimidade dos oponentes políticos; tolerância/encorajamento da violência; restrição de liberdades civis de oponentes, inclusive da mídia.

Essa parece ser a cara do fascismo, um fenômeno de ressurgimento internacional, tendo o Brasil como protagonista na América do Sul. Os exemplos brasileiros dos indicadores são abundantes só neste mês: reconhecimento do Itamaraty de Juan Guaidó como presidente legítimo da Venezuela mesmo após eleição de Maduro; comemoração por parte do presidente da expulsão de Jean Wyllys do país; continuação de um discurso moralizante e violento no que diz respeito às questões de gênero; aliança explícita do atual governo com a Record, o SBT e, logo mais ao que tudo indica, com a CNN Brasil.

Neste cenário devastador, a estética parece ser uma questão no final da nossa lista de prioridades. É natural que a luta antifascista pareça mais urgente. E é. Pretendo, entretanto, começar a pensar – a partir desse lugar que marca minha primeira participação no Observatório da Democracia – a indissociabilidade entre estética e política.

Como escritora, penso que é minha obrigação levantar essas questões e lembrar que mesmo que a estética não esteja na pauta do dia na boca de geral – ainda mais com esse nome assustador estética – cria-se, a partir dela, o imaginário coletivo. A estética fascista é responsável pela criação de realidades mais do que somente nebulosas (fake news), mas brutalmente violentas. Por que a direita se interessa pela estética, investindo em tipos específicos de filmes, vídeos, mensagens, áudios, passeatas, hinos, bandeiras, uniformes? Porque é na forma que acontece a disputa de narrativa mais ferrenha, porque a luta também se faz na observação de organizações abstratas (discurso, linguagem, estética), frequentemente ignoradas, mas que modulam o concreto (eleições, composição de ministérios, julgamentos, construção de barragens).

Penso a estética não só como a criação/estudo de um conjunto de elementos formais agrupados na composição de manifestações manifestadamente artísticas, mas também como forma de apresentação de outros fenômenos sociais que podem ser uma campanha eleitoral ou a cerimônia de posse de um presidenciável. Que estética foi construída durante a campanha de Bolsonaro? E no acontecimento histórico que foi sua posse? O que essa estética expressa de valores, como ela reforça costumes conservadores, como golpeia a noção de democracia que se engendra antes e depois da reabertura em 1985? O assassinato da democracia como a concebemos envolve, forçosamente, uma estética. Uma estética fascista.

Nesse sentido, política e estética são indissociáveis. Então, como é a estética do fascismo no Brasil? Pergunto e não tenho capacidade de responder, é com certeza uma resposta pra ser construída coletivamente. Por agora aponto possibilidades a partir do texto “Fascinante Fascismo” de Susan Sontag. Sontag, como Armond White, era crítica de cinema e também escritora, ensaísta, cineasta, militante feminista. Denuncia neste texto o que percebe como a “desnazistização” da cineasta e fotógrafa Leni Riefenstahl, responsável pelo famoso Olympia, esforço empreendido pela artista e pela crítica especializada.

A produção da cineasta nazista é utilizada como ponto de partida para discussão sobre a estética fascista. Quero aqui levantar dois pontos principais desta reflexão, que acredito sejam facilmente reconhecíveis no contexto brasileiro. O primeiro consiste na apreciação apolítica do trabalho estético – como se isso fosse possível. Com a intenção de inocentar Riefenstahl, a crítica desonesta apela pra possibilidade de liberdade artística apartada do mundo material, uma arte “sem ideologia”, preocupada com o “belo” (ou o “moral”, que com frequência se confundem), focada nos méritos estéticos. Paradoxalmente, o próprio exercício de crítica é reiteradamente desprezado, a análise é vista como mais um exemplo de intelectualismo que deve ser combatido. Não se pode pensar, portanto, estética. E mais, qualquer tentativa de reflexão é tachada de elitismo. O mesmo acontece hoje no Brasil, mesmo sendo um país em que as/os maiores pensadoras/es não estiveram a serviço da classe dominante, como é o caso de Lélia Gonzalez e Paulo Freire (mais citado que Foucalt lá fora). A direita fascista é contrária à crítica e se a faz, como no exemplo de White, é investindo na aversão pelo que chamam de intelectualismo, o que explicaria, mesmo que parcialmente, a predileção do crítico por G.I. Joe e Transformers.

O segundo ponto que me chamou atenção é a construção do imaginário erótico fascista. Sontag defende que existiu um esforço para neutralizar a mensagem do fascismo, enquanto seus ornamentos eram sexualizados. A erotização desse tipo específico de fascismo que é o nazismo é a estetização da relação entre mestres e escravos. Os mestres vestidos de couro, preto, coturnos, fantasiando a morte, vestidos como os soldados da SS. Os líderes fascistas têm predileção por metáforas sexuais, nos lembra Sontag, o líder de autoridade máxima está sempre a procura de dominar as massas “femininas”. Não consigo pensar numa eleição em que mais se falou em pênis do que a nossa última. O absurdo do “kit gay” – o sexo lésbico continua impossível – é a apoteose da fascinação fascista pelo erótico masculinizante dominador. Mesmo que na realidade os regimes fascistas sejam bem repressivos sexualmente, são eles grandes influenciadores do imaginário sexual coletivo. A esquerda parece perceber essa relação de maneira ainda grosseira e homofóbica quando investe na criação e difusão de charges e piadas de carga homoerótica entre Bolsonaro e Trump ou entre Trump e Putin.

Aos poucos, estudando juntas/os, podemos reconhecer a configuração estética do fascismo no Brasil. Passaremos a outras perguntas como construir uma estética antifascista e popular – não por isso, como prevem os/as preconceituosos/as, menos reflexiva e complexa. Achar que a estética não é uma questão para o povo brasileiro, é não reconhecê-lo como produtor de manifestações artísticas das mais diversas. Um dos objetivos da luta antifascista é promover a reflexão antifascista, aí reside a relevância de pensar estética e política no Brasil dos próximos anos.

Fazer da reflexão sobre estética um exercício político da esquerda é o que proponho.

Julia Raiz é escritora.

Arquivado em: Observatório

José Nunes (@nunescnt) é doutor em direito pela Universidade de Brasília.

Observatório da Democracia

O Observatório promove uma conversa pública sobre os desafios do tempo presente na democracia brasileira.