Constitucionalismo

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A limitação constitucional dos juros e o boicote dos bancos

22 de fevereiro de 2019 by Observatório

Fernando Ramos

Muitas pessoas não se atentam a isso, mas a regulamentação dos bancos e a limitação (ou não) dos juros bancários são as principais chaves para o sucesso ou o fracasso de qualquer governo. Se bem executadas, podem resultar no crescimento da economia e do emprego, no controle rígido da inflação e deflação, na justa distribuição de renda e no consequente aumento da mobilidade social.  Juros podem ser ferramenta de justiça social, uma das melhores formas de colocar em prática aquilo que está tão bem escrito e prometido em nossas leis; e somente nelas. Por outro lado, podem resultar em recessão, desemprego, descontrole inflacionário, expansão exponencial da dívida pública e aumento da concentração de riquezas, agravando a desigualdade social – e, com ela, a violência e o crime. Um dos maiores testes de soberania de um Estado consiste, simplesmente, em avaliar a capacidade do mesmo de regulamentar, fiscalizar e controlar as atividades do sistema financeiro, de forma que sejam elas convergentes ao interesse público e comum da coletividade. Em uma democracia real, os bancos, públicos ou privados, são obrigados a atuar a favor da população.

Infelizmente, no Brasil, nesse assunto, temos um péssimo exemplo para dar ao restante do mundo. Somos o segundo sistema financeiro mais lucrativo do planeta, perdendo apenas para a Suíça – a qual, nesse quesito, sabidamente leva “vantagem” sobre nós por conta de seu sigilo e permissividade perante a lavagem de dinheiro. Mesmo assim, por pouco o Brasil não ultrapassa rumo ao topo do ranking. Mas, se o assunto for as taxas de juros mais altas, segundoo Banco de Compensações Internacionais (BIS), órgão regulador dos bancos centrais em todo o mundo, somos líderes isolados em primeiro lugar. O nosso spread, diferença entre a taxa de juros que um banco cobra de quem pega dinheiro emprestado, e aquela que ele paga quando o próprio banco é quem pega o dinheiro em empréstimo (caso das poupanças, por exemplo), gira ao redor da média de 40%, contra 5% da média dos demais países emergentes. Mas o spread tupiniquim pode chegar a extorsivos 150% ao ano, fato que todos os usuários do cheque especial estão cansados de saber. Em qualquer nação civilizada, tais margens de lucro bancário seriam prontamente consideradas: crime contra a economia popular, lesão pecuniária, agiotagem, crime de usura, extorsão, enriquecimento ilícito. Só que estamos no país que elegeu Jair Bolsonaro.

Mas não para por aí: estudo publicado no dia 13/08/2006 no jornal “O Estado de S. Paulo” e elaborado pelo consultor em assuntos bancários, Carlos Coradi, demonstra que existe uma relação direta entre a quantidade de crédito disponível em um país e seu nível de desenvolvimento econômico e social. Assim, estabelece uma referência proporcional entre crédito ofertado e Produto Interno Bruto. No Brasil, temos uma oferta de crédito de 32% do PIB. No Chile, cerca de 60%. Nos Estados Unidos, chega a 80% do PIB, e na União Européia, 105%. É claro: por força da própria lei da oferta e da procura, máxima do liberalismo econômico, quanto maior a oferta de crédito, menor a procura, e assim, menores as taxas de juros, que são o preço do dinheiro. E quanto menores as taxas de juros, maiores serão a democratização e o dinamismo do setor produtivo, bem como maior a mobilidade social. Naturalmente, aumentam também os empregos e o poder aquisitivo, o que reaquece a indústria, o comércio e os serviços, gerando um ciclo de prosperidade que beneficia de forma mais igualitária a todos. Os ricos continuam ricos, uma vez que a economia está efervescente; mas os pobres, pouco a pouco, vão deixando a pobreza no passado.

Nos governos Lula e Dilma, muito foi feito em prol da expansão do microcrédito, de taxas de juros mais baixas nos bancos públicos, especialmente para o financiamento da habitação popular e da educação (vide os programas “Minha Casa, Minha Vida” e “Fies”, esse último já existia antes, mas foi bastante ampliado durante a presidência de Lula). No entanto, tragicamente, os programas sociais mencionados e inúmeros outros estão sendo cortados e cancelados numa velocidade gritante desde o Golpe de 2016. Lula também foi responsável pelo feito inédito de quitar por completo a dívida externa brasileira; mas nem ele teve a força e a coragem de colocar rédeas na verdadeira mamata que impera nesse país, que nunca foi a da cultura (conforme alardeado aos quatro ventos por politicos tacanhos da extrema-direita), mas sim a mamata da ciranda financeira. Apesar das tão evidentes melhorias, ainda assim, a era Lula foi um dos períodos mais lucrativos da História para os bancos brasileiros. O que demonstra que faltou maior firmeza nesse aspecto. Apesar dessa ressalva, considero Lula o melhor presidente que o Brasil já teve, e sei que a História, em seu devido tempo de maturação, não negará a ele esse posto. Inda mais considerando que sua prisão foi uma prisão política, julgada por um Tribunal de Exceção com base em leis e preceitos inexistentes em nosso ordenamento jurídico, condenado sem provas, de forma parcial e persecutória, por um suposto crime, meramente hipotético e absolutamente indeterminado, por meio de um processo penal inquisitório que instaurou uma regressão civilizatória e institucional que situa o Brasil, na linha do tempo, antes da Revolução Francesa e do Iluminismo.

Mas nem sempre foi assim. Em 1988, ano da promulgação da nossa Constituição Cidadã, o maior marco simbólico e jurídico do processo de redemocratização, posterior aos 21 anos de ditadura militar que devastaram o país, suas instituições, sua educação e cultura, todos tínhamos motivos de sobra para termos esperanças. Afinal de contas, a maior lei do Brasil estabelecia inúmeros direitos e garantias individuais, restaurava a plena liberdade de expressão, determinava a obrigatoriedade da função social da propriedade para que a mesma fosse mantida (abrindo espaço para a tão urgente reforma agrária), reassegurava o direito de greve e união sindical, fixava porcentagens mínimas do orçamento anual da União para a saúde, educação e cultura, defendia o Estado Laico, afastando a pecha da moral e dos bons costumes para longe das políticas públicas, lançava as bases do nosso direito ambiental e protegia a demarcação das terras indígenas; além de duas medidas altamente transformadoras da realidade social: o imposto sobre grandes fortunas e a regulamentação do setor bancário, trazendo a limitação indistinta entre bancos e pessoas físicas para a cobrança de juros, que deviam agora respeitar o teto de 12% ao ano, por força do artigo 192, caput e parágrafo terceiro, da Carta Magna. Todavia, assim como o orçamento para a cultura nunca atingiu de fato o mínimo de 1% do orçamento anual da União, até hoje estamos aguardando o imposto sobre grandes fortunas e a regulamentação do setor bancário e suas desenfreadas taxas de juros.

No caso do artigo 192 da Constituição, o lobby bilionário do sistema financeiro conseguiu impregnar no STF a estranha noção de que tal artigo seria apenas uma norma programática, de eficácia contida, condicionada em seus efeitos pela aprovação de uma futura lei complementar. Enquanto isso não ocorresse, os bancos estariam liberados para praticar quaisquer taxas de juros. A despeito de uma ação direta de inconstitucionalidade que tencionava obrigar a imediata edição de tal lei complementar, assim como dos veementes protestos de alguns ministros do Supremo (como Paulo Brossard, já falecido, e Marco Aurélio Mello, ainda parte de tal órgão julgador e o melhor entre os 11 ministros atuais), os bancos conseguiram fazer essa lei ser postergada por 15 anos. Até que, no ano de 2003, deram a cartada final: a limitação indistinta dos juros a 12% ao ano caiu por terra com a Emenda Constitucional número 40, que revogava o parágrafo terceiro do artigo 192 da Constituição. E assim, fomos reprovados de vez no teste da soberania nacional. Mas, para entendermos melhor de que forma chegamos até esse ponto crítico, vamos antes retroceder um pouco na linha do tempo.

Na década de 1930, a lei da oferta e da procura, a auto-regulação do mercado e os demais preceitos difundidos por Adam Smith e David Ricardo se mostraram insuficientes para estabelecer um ponto de equilíbrio econômico sustentável. Constatados os efeitos nefastos da Crise de 29, caía em descrédito a convicção exacerbada no liberalismo econômico. Começa a ganhar campo, em diversos países, a teoria do intervencionismo. E em 1933, auge da crise cafeeira no Brasil, o governo se posiciona: a cobrança de juros excessivamente altos é um grave obstáculo para a produção e uma ameaça ao nível de empregos. Nesse mesmo ano, foi editado o Decreto 22.626, a Lei da Usura, que limitou a liberdade para a estipulação contratual dos juros e proibiu o anatocismo: a cobrança de juros sobre juros. Especificamente, o artigo primeiro dessa lei vedou a estipulação de juros acima do dobro da taxa legal vigente, ou seja, acima de 12% ao ano. A usura, delimitada acima dessa fronteira, é tipificada como crime, cabendo prisão entre 6 meses e 1 ano, além de multa, decretação da plena nulidade do negócio jurídico, bem como a devolução do valor pago em excesso.

No entanto, a Lei da Usura já prenunciava o entendimento que ganharia vulto 31 anos depois: a quebra do princípio da isonomia (pelo qual todos são iguais perante a lei) para a salvaguarda das instituições financeiras. É que o artigo 17 expressamente excluiu da subordinação à Lei da Usura as ditas Casas de Empréstimo Sob Penhores e Congêneres, os bancos daquele período. Todavia, tal distinção foi revogada pelo Decreto 1.113/39, sob forte clamor popular. Sendo assim, durante 25 anos (entre 1939 e 1964), a Lei da Usura se aplicou indistintamente a bancos e particulares, sendo também obedecida pela Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), instituição análoga e precursora ao Banco Central do Brasil. Os bancos da época operavam normalmente, e prosperavam, mesmo limitados a 12% ao ano de juros.

Mas o país transitava a passos largos para uma economia calcada na indústria, restando em segundo plano o setor primário da produção nacional. O novo desafio do governo era fomentar rapidamente o desenvolvimento econômico de maneira equilibrada entre todas as regiões do Brasil. Torna-se imperativa a disponibilização de recursos monetários que amparassem tal desenvolvimento. É assim que surge a Lei 4.595/64, suspeitamente datada de 31 de Dezembro, exatos 9 meses após o Golpe de 1964. Estava completa a gestação do mal: nascia a Lei de Regulação dos Bancos, logo alcunhada “Lei de Liberação dos Bancos”. Isso porque, ato contínuo à sua sanção, verificou-se acalorado debate jurídico sobre o seu artigo 4°, inciso IX que, criando o Conselho Monetário Nacional (CMN), outorgou-lhe competência para limitar as taxas de juros das instituições financeiras, desconsiderando a vigente e precedente Lei da Usura.

O embate surgiu em torno de três posicionamentos. A primeira corrente, dita liberal, afirmava que a Lei 4.595/64 revogava temporariamente a Lei da Usura, restaurando por certo período a plena liberdade de estipulação dos juros que havia antes dela. O delito de usura deixaria de existir, mas apenas até o momento em que o CMN decidisse pela determinação do novo patamar de limitação das taxas. Tal liberalidade temporária se estenderia a todos os cidadãos, inclusive às recém nomeadas instituições financeiras. Por outro lado, outros (entre os quais hoje eu me incluo), protestavam que a limitação imposta pela Lei da Usura possuía a função social de coibir a lesão pecuniária e o agiotismo, que contrariavam os interesses do Estado. Portanto, não deveria ser admitido o silêncio sobre fato juridicamente relevante. Assim é que tal corrente, dita conservadora, interpretou a questão: continuam vigentes as limitações presentes na Lei da Usura, podendo o CMN, todavia, em caso de necessidade, refixar os limites para baixo dos já existentes. Mas nunca para cima. Acrescentavam, ainda, que o artigo 36, parágrafo 2°, da Constituição Federal de 1946, a exemplo de nossa atual Constituição,proibia a delegação de poderes. Sendo assim, um órgão criado pelo Poder Executivo não poderia apoderar-se, por dispositivo legal inferior à Constituição, daquilo que é competência exclusiva do Legislativo.

Entre liberais e conservadores, ainda havia aqueles que diziam que a Lei 4.595/64 apenas revogou a Lei da Usura no quanto aplicável às instituições financeiras. Posição curiosa, posto que sem referência expressa ou indireta do texto legal, sem embasamento constitucional e contrariando os valores protegidos pela Constituição então vigente. Adianto que a corrente conservadora detinha a razão, por 3 simples motivos: 1) é o único trilho a ser percorrido diante da análise completa e sistemática de tais leis; 2) é a única tese que se harmoniza com a motivação para criação dessas leis, exposta nos fins sociais das duas normas em conflito; e 3) é a única que não fere o princípio maior da isonomia. Infelizmente, venceu a terceira corrente: os bancos estariam liberados da Lei da Usura, mas não os cidadãos. Ou seja: os bancos ganharam concessão exclusiva e licença legal para praticar agiotagem sem arcar com o ônus da concorrência externa. Mas essa controvérsia se arrastou até 15/12/76, quando o STF editou a Súmula 596, que reiterava os termos da terceira corrente, acima mencionados.

Faz-se necessária a observação de que, a partir da entrada em vigor da Lei 4.595/64, são as instituições financeiras privadas, organizadas e regulamentadas por essa mesma lei, as principais financiadoras da dívida pública. Isso durou até o início da década de 1990, período no qual a captação da poupança interna pelos bancos nacionais se destinou quase que integralmente à compra de títulos públicos. Para viabilizar a aderência irrestrita das instituições financeiras aos planos de financiamento público, foi criado o mercado aberto, que vinculou a emissão dos títulos de dívida pública exclusivamente a essas instituições. E ainda outro benefício foi concedido. Em 09/04/76, portanto, antes da consolidação da Súmula 596, o Banco Central editou a Resolução 366, permitindo que cada pessoa jurídica participante do sistema financeiro nacional adquirisse montante de títulos públicos equivalente a até 15 vezes o seu Patrimônio Líquido. É a dita taxa de alavancagem. Significa dizer que cada 1% de rendimento advindo dessas carteiras poderia representar até 15% de lucro incorporado ao Patrimônio Líquido dos bancos. Posteriormente, esse limite foi dobrado para 30 vezes o Patrimônio Reajustado. Começava de vez a ciranda financeira no Brasil. Menos de 8 meses depois, era editada a Súmula 596 do STF, que liberava os bancos da Lei da Usura. Mas, 2 meses antes de sua edição, o CMN já havia se adiantado, publicando a Resolução 389, que autorizava aos bancos comerciais a cobrança de juros com “taxas de mercado”. Um critério vago e permissivo.

Por outro lado, aos cidadãos comuns, o significado dessa medida era de que, em face da avaliação de um risco de não-restituição superior àquele suportado nas transações com o governo, o lucro de tais empréstimos, coincidente com o chamadospread bancário, deveria ser superior àquele auferido com o financiamento da dívida pública. Isso porque, do contrário, interessaria aos bancos a total alocação do crédito junto ao governo, raciocínio que demonstra o quão distante já se encontrava a aplicação da Lei 4.595/64 dos fins sociais invocados na sua explanação de motivos. Paira sobre esse período da nossa História a fundamentada suspeita de que a edição da Súmula 596 pelo STF tenha sido a ratificação política de uma troca de interesses entre os bancos e o Estado, a despeito dos barbarismos jurídicos envolvidos nessa escolha, da qual decorre a reduzida flexibilidade do spread bancário, a qual obsta o desenvolvimento econômico, gera desemprego e lesa excessivamente os interesses patrimoniais dos particulares, para viabilizar a má gestão de uma dívida pública gigantesca.

A partir dos anos seguintes à edição da Lei 4.595/64, a falta de limitação dos juros e do anatocismo para as instituições financeiras foi e ainda é um dos principais fatores de amparo e fomento ao peculiar processo inflacionário brasileiro. Sim, pois o custo do dinheiro é um importante custo de produção, aumentando o preço de bens e mercadorias. A transferência desse custo excessivamente alto para o preço final de uma mercadoria corrói o poder aquisitivo do assalariado, desatualizando o valor da moeda. Na verdade, o cidadão comum paga muitas vezes pelo ônus das taxas de juros mais altas do planeta. Paga quando aplica dinheiro em conta-poupança e aufere ínfima remuneração de cerca de 0,6% ao mês, pela questão da inflexibilidade do spread. Pelo mesmo motivo, paga cerca de 155% ao ano de juros no cheque especial. Paga a classe média e também os mais pobres cerca de 50% do salário em impostos, pois o governo está endividado em virtude do crescimento acelerado de uma dívida pública manejada a altos preços, necessitando majorar as receitas tributárias – sem que esse acréscimo, todavia, seja revertido proporcionalmente na prestação de serviços públicos à população. E, por fim, a nefasta correção monetária, invenção imediatista tipicamente tupiniquim, alimenta a espiral inflacionária, já que podemos inflar os custos de vida e de produção tranquilamente: afinal de contas, atualizamos nosso dinheiro periodicamente.

Estando a maior parte das receitas tributárias do Brasil previamente compromissadas perante o pagamento dos juros da dívida pública e sua amortização, tornam-se quase inviáveis as políticas de distribuição de renda e a concretização dos objetivos constitucionais. Comprovo: no ano de 2001, ao fim da era FHC, 71,34% do orçamento da União foi despendido com o pagamento dos juros e amortização da dívida pública. Isso significa que, nesse ano, todos os dias, o governo federal gastou cerca de 0,2% do seu orçamento apenas para controlar e administrar o déficit público, mantendo uma boa relação com os seus credores. Na prática, algo não muito diferente do caso dos moradores das favelas, que devem entregar seus parcos recursos para pagar o crime organizado em troca de segurança; mas, nesse caso, em troca da segurança econômica. A violência pode falar muitas línguas, não apenas a língua das armas e da força bruta. Enquanto isso, nesse mesmo ano de 2001, a fatia orçamentária da Justiça foi de 0,67% (o mesmo pago por cerca de 3 dias de juros da dívida pública); da assistência social, 0,55% (3 dias de juros); da saúde pública, 2,49% (12 dias de juros); da educação, 1,39% (6 dias de juros); da segurança pública, 0,26% (1 dia de juros); da cultura, 0,03% (4 horas de juros); da habitação, 0,14% (18 horas de juros); do saneamento básico, 0,05% (6 horas de juros); da ciência e tecnologia, 0,22% (1 dia de juros); da agricultura, 0,82% (4 dias de juros); da energia, 0,12% (11 horas de juros); e do transporte público, 0,53% (2 dias de juros).

Diante de tão trágica constatação, é difícil acreditar que, em Brasília, não exista um “Ministério de Assistência Social às Instituições Financeiras”. Foi desvirtuada, há um bom tempo, a função essencial dos impostos no Brasil. Somos, direta e compulsoriamente, doadores de fundos para o pagamento dos juros de um déficit público que nunca foi bem negociado ou gerido. Indiretamente, doadores dos recursos que compõem o lucro exorbitante dos bancos. É o dilema do preço do dinheiro no Brasil: nossa população já poderia ter comprado diversas vezes todo o sistema financeiro nacional. É o que se comprova da leitura da mesma reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo” de 13/08/06: “É tão alto o retorno dos bancos brasileiros que em apenas quatro anos os lucros dobram o patrimônio.”

Um estudo de Fernando Gasparian publicado no livro “A Luta Contra a Usura” atesta que: “(…) estimativas dignas de crédito mostram que, nos anos 50, durante o governo Kubitschek, os salários constituíam cerca de 60% da renda nacional. Hoje, os salários, segundo alguns cálculos, não passam de 37%. 23% da renda transferiram-se, dessa forma, das mãos de quem realmente produz para outros setores. Segundo o IBGE, em 1960, o setor financeiro detinha 6,8% do Produto Interno Bruto, enquanto o setor agropecuário recebia 22,5% da produção gerada pelo trabalho de todos os brasileiros. Em 1988, o quadro já era outro: os bancos apropriavam-se de 14,5% do Produto, enquanto o setor agrícola ficava com apenas 8,7%. A situação somente se normalizará quando, a exemplo do que ocorre em outros países, a participação dos bancos declinar para 4% ou 6% do PIB.”

De volta à linha do tempo,em 05/10/1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, que, pertinente ao tema, contextualizada no franco padecimento de toda a economia aos pés de um pesadelo inflacionário, e às voltas com a insustentabilidade do déficit público, buscou sanar esse círculo vicioso através de nova tentativa de limitação das taxas de juros, sem distinção. Assim dispunha o artigo 192 da Carta Magna, bem como seu parágrafo 3°: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar (…) § 3°.As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.” Já sabemos o triste fim dessa história.

É quase desnecessário observar a inconsistência das teses jurídicas que, infelizmente, encontraram amparo no STF, porquanto a moderna Ciência do Direito não admite a simples inoperância de preceitos constitucionais perante condicionamentos de regulamentação. Vale dizer: inda que se acate a necessidade de regulamentação da limitação aludida via lei complementar, a simples inexistência da mesma não retira a força do artigo constitucional, estando vinculadas as posteriores atividades legislativas e o posicionamento do Judiciário à lei maior. Nesse caso, cabe ainda outra observação: quando o parágrafo terceiro do artigo 192 estabelece que a cobrança acima do limite se constitui em crime de usura, punível nos termos determinados pela lei, faz, obrigatoriamente, referência à Lei da Usura, recepcionada pela Constituiçãoe aplicável à matéria, posto que a lei anterior, inferior e específica não é revogada tacitamente pela lei posterior, superior e genérica; exceto naquilo com o qual a primeira se conflita em face da última. Não há que se falar, portanto, em eficácia contida do artigo 192 ou de seu parágrafo terceiro. Sendo a Constituição a base da construção hierárquica do nosso ordenamento jurídico, por si sópossui eficácia imediata. Dizer o contrário implica corroborar a grave crise pela qual passa o Judiciário brasileiro, motivada pela relativização constitucional e pelas reformas arbitrárias impostas à lei maior. Implica, em última instância, defender a desconstrução da lógica sistêmica de nosso ordenamento jurídico.

Ademais, não pode o cidadão pagar mais juros a um banco do que já paga ao Estado, por exemplo, quando se atrasa no recolhimento de impostos. Isso porque também o Estado é um sujeito de direitos, inclusive naquilo que tange ao princípio da isonomia. E a taxa de juros que o contribuinte paga ao governo está limitada a 12% ao ano. Os mesmos 12% ao ano previstos na Lei da Usura, ainda parcialmente vigente. Os mesmos 12% ao ano estipulados pelo Código Civil como taxa de juros legais. Na verdade, trata-se de um número herdado da antiga tradição do Direito Romano, de onde emana a base de nosso sistema legal. E notem: lembrando que o rendimento médio de uma poupança brasileira é de 0,6% ao mês (equivalente a cerca de 7% ao ano), e que a média do spread bancário nos demais países emergentes é de 5% ao ano, temos que 7% + 5% = 12% ao ano. Ou seja: mesmo que o sistema financeiro nacional estivesse, de fato, restrito a cobrar o máximo de 12% ao ano de juros, ainda assim, poderia pagar os mesmos 7% ao ano na poupança e manter a mesma margem de lucro representada pelos 5% ao ano da média do spreadnos demais países emergentes. Os banqueiros brasileiros continuariam a ser bilionários; porém, não mais levando o país inteiro para o buraco em nome da ciranda financeira.

Apesar da revogação do parágrafo terceiro do artigo 192 da Carta Magna pela Emenda Constitucional 40/2003, ainda permanence intacto o que restou dessa norma. E o que dela restou é mais do que suficiente para que, via lei complementar, ainda hoje seja regulamentado corretamente o sistema financeiro nacional, inclusive no que tange à limitação da taxa de juros bancários. Isso seria nada menos do que revolucionário, no sentido do potencial transformador dessa medida. Para tanto, bastaria que houvesse vontade política por parte do Congresso, do STF e da Presidência da República. Mas, em tempos de obscurantismo medieval, com Bolsonaro Presidente e o banqueiro Paulo Guedes enquanto Ministro da Economia, além de um Congresso medíocre e uma maioria dos ministros do STF vendida aos encantos financeiros do Golpe de 2016; para não mencionar o inquisidor Sérgio Moro no Ministério da Justiça, ao que tudo indica, ainda teremos que esperar por um bom tempo até o fim da ciranda financeira no Brasil. Enquanto isso, um conselho de amigo: não peça empréstimos, e guarde todo o dinheiro que você não precisar gastar debaixo do colchão. Assim, certamente, ele estará bem mais seguro do que nas garras do ganancioso, insaciável e extorsivo sistema financeiro nacional.

Fernando Ramos é escritor, cineasta, compositor, artista plástico e advogado formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).

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José Nunes (@nunescnt) é doutorando em direito na Universidade de Brasília.

  • e-mail: nunescnt@gmail.com

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