Constitucionalismo

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Limites ao direito de manifestação

24 de maio de 2019 by Observatório

Laila Maia Galvão

Tramita no Supremo Tribunal Federal um recurso extraordinário que possui discussão constitucional das mais relevantes. Trata-se do RE 806.339, que aborda a imposição de limites ao direito de manifestação, mais especificamente a obrigatoriedade de aviso prévio para reunião pública. Ainda em 2015 o Tribunal conferiu repercussão geral à matéria. Assim se pronunciou o Ministro Marco Aurélio, relator do processo, naquela oportunidade:

“Eis tema a reclamar o crivo do Supremo, assentando-se o alcance da norma em jogo, ou seja, cabe ao guarda maior da Constituição Federal definir, a partir do dispositivo apontado, as balizas no tocante à exigência de prévio aviso à autoridade competente, como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião, direito ligado à manifestação de pensamento e à participação dos cidadãos na vida política do Estado”

O STF assumiu a responsabilidade, portanto, de discutir e definir o alcance do artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal, no tocante à exigência de aviso prévio à autoridade competente como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião. Vale destacar que essa é a redação do mencionado inciso: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

Por ser um recurso extraordinário, vale resumir brevemente o caso. Trata-se de um pedido, por parte da União, de um interdito proibitório referente a um suposto esbulho de determinada área da BR-101 no município de Propriá, Sergipe, uma vez que sindicatos, centrais sindicais e um partido – no caso o PSTU – realizaram uma manifestação na rodovia. As entidades envolvidas perderam em primeira e segunda instâncias e apresentaram um RE para buscar a efetividade do direito à liberdade de expressão. Ressaltaram, no recurso, que a manifestação foi noticiada pelos meios de comunicação, que a polícia rodoviária federal estava presente e que não caberia ao Poder Executivo determinar a conveniência ou não de manifestações em locais públicos.

O Relator Ministro Marco Aurélio negou provimento ao recurso alegando que a interrupção do trânsito na rodovia não poderia ocorrer sem prévio aviso à autoridade. Para tanto, o Ministro fez alusão ao direito de locomoção dos cidadãos para encontrar, no caso concreto, uma violação à ordem constitucional. Trata-se de mais um caso em que o chamado direito de ir e vir torna-se protagonista das discussões sobre liberdades (sobre isso, ver texto que publiquei anteriormente nessa plataforma).

O processo encontra-se com o Ministro Dias Toffoli, que pediu vista dos autos. Acompanhando o relator, já votaram os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Para dar provimento ao recurso, votaram os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.

Os votos dissidentes destacaram a relevância do direito de manifestação. A Ministra Cármen Lúcia afirmou que o Poder Público deve fazer com que os direitos de protesto e de ir e vir “convivam” simultaneamente. Chama-se a atenção para o voto que inaugurou a dissidência, do Ministro Fachin. Ele citou o constitucionalista argentino Roberto Gargarella, o qual entende ser o direito de protesto o primeiro direito. Inclusive, em seu livro Carta aberta sobre la intolerância: apuntes sobre derecho y protesta (Siglo Veintiuno Editores, 2015), Gargarella questiona essa suposta colisão entre direitos, ao afirmar ser necessária a determinação de qual dos direitos em jogo estaria mais vinculado ao núcleo democrático da Constituição. Por óbvio, o direito de manifestação e protesto é central em uma comunidade democrática.

O voto-vista de Alexandre de Moraes, proferido na última sessão de 2018, acompanhou o voto do relator. Para o Ministro, a obstrução completa de rodovias configura um abuso de direito. O voto, de certo modo, levava em consideração a crise ocorrida no mês de maio do mesmo ano, quando a greve dos caminhoneiros obstruiu importantes rodovias do país, sendo o mesmo Ministro o responsável por deferir medida cautelar (ADPF 159) para autorizar os Poderes Executivos federal e estaduais a tomarem providências para desobstruir essas rodovias. O temor de um novo movimento daquela proporção e dos impactos negativos desse tipo de manifestação parece ser um dos panos de fundo para o debate travado no STF.

A princípio, os Ministros aparentam estar de acordo em relação a alguns pontos como (i) o direito de protesto deve ser garantido aos cidadãos e (ii) o aviso prévio não pode ser condicionante para o exercício do direito de protesto. No entanto, surgiram nos votos que negavam provimento ao RE desdobramentos como (a) o poder público deve desobstruir vias importantes que são completamente bloqueadas por manifestantes; (b) em caso de danos, é possível uma responsabilização no âmbito civil dos organizadores do protesto. Discutiu-se, portanto, as consequências jurídicas da ausência do aviso prévio. Uma vez que se fala em indenizações e responsabilização, está a se falar de ato ilícito. Afinal, no caso concreto do RE, o fato gerador da multa às entidades organizadoras do protesto foi justamente a falta do aviso prévio às autoridades.

A depender da proclamação final do Tribunal, teremos uma espécie de “regulamentação” do direito de protesto que poderá ser usada, no futuro, para limitar ou bloquear esse direito do cidadão brasileiro. O tema, no entanto, envolve diretamente o exercício da democracia e merece ser debatido com todo cuidado e atenção pela Corte. A depender de como votarão os Ministros que ainda não se pronunciaram, poderemos ter um perigoso precedente que impõe obstáculos ao direito de protesto. Ou, caso a Corte decida por dar provimento ao RE, se constituirá um julgado de referência para a proteção constitucional do direito de manifestação.

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José Nunes (@nunescnt) é doutorando em direito na Universidade de Brasília.

  • e-mail: nunescnt@gmail.com

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