Laila Maia Galvão
Tramita no Supremo Tribunal Federal um recurso extraordinário que possui discussão constitucional das mais relevantes. Trata-se do RE 806.339, que aborda a imposição de limites ao direito de manifestação, mais especificamente a obrigatoriedade de aviso prévio para reunião pública. Ainda em 2015 o Tribunal conferiu repercussão geral à matéria. Assim se pronunciou o Ministro Marco Aurélio, relator do processo, naquela oportunidade:
“Eis tema a reclamar o crivo do Supremo, assentando-se o alcance da norma em jogo, ou seja, cabe ao guarda maior da Constituição Federal definir, a partir do dispositivo apontado, as balizas no tocante à exigência de prévio aviso à autoridade competente, como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião, direito ligado à manifestação de pensamento e à participação dos cidadãos na vida política do Estado”
O STF assumiu a responsabilidade, portanto, de discutir e definir o alcance do artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal, no tocante à exigência de aviso prévio à autoridade competente como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de reunião. Vale destacar que essa é a redação do mencionado inciso: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
Por ser um recurso extraordinário, vale resumir brevemente o caso. Trata-se de um pedido, por parte da União, de um interdito proibitório referente a um suposto esbulho de determinada área da BR-101 no município de Propriá, Sergipe, uma vez que sindicatos, centrais sindicais e um partido – no caso o PSTU – realizaram uma manifestação na rodovia. As entidades envolvidas perderam em primeira e segunda instâncias e apresentaram um RE para buscar a efetividade do direito à liberdade de expressão. Ressaltaram, no recurso, que a manifestação foi noticiada pelos meios de comunicação, que a polícia rodoviária federal estava presente e que não caberia ao Poder Executivo determinar a conveniência ou não de manifestações em locais públicos.
O Relator Ministro Marco Aurélio negou provimento ao recurso alegando que a interrupção do trânsito na rodovia não poderia ocorrer sem prévio aviso à autoridade. Para tanto, o Ministro fez alusão ao direito de locomoção dos cidadãos para encontrar, no caso concreto, uma violação à ordem constitucional. Trata-se de mais um caso em que o chamado direito de ir e vir torna-se protagonista das discussões sobre liberdades (sobre isso, ver texto que publiquei anteriormente nessa plataforma).
O processo encontra-se com o Ministro Dias Toffoli, que pediu vista dos autos. Acompanhando o relator, já votaram os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Para dar provimento ao recurso, votaram os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
Os votos dissidentes destacaram a relevância do direito de manifestação. A Ministra Cármen Lúcia afirmou que o Poder Público deve fazer com que os direitos de protesto e de ir e vir “convivam” simultaneamente. Chama-se a atenção para o voto que inaugurou a dissidência, do Ministro Fachin. Ele citou o constitucionalista argentino Roberto Gargarella, o qual entende ser o direito de protesto o primeiro direito. Inclusive, em seu livro Carta aberta sobre la intolerância: apuntes sobre derecho y protesta (Siglo Veintiuno Editores, 2015), Gargarella questiona essa suposta colisão entre direitos, ao afirmar ser necessária a determinação de qual dos direitos em jogo estaria mais vinculado ao núcleo democrático da Constituição. Por óbvio, o direito de manifestação e protesto é central em uma comunidade democrática.
O voto-vista de Alexandre de Moraes, proferido na última sessão de 2018, acompanhou o voto do relator. Para o Ministro, a obstrução completa de rodovias configura um abuso de direito. O voto, de certo modo, levava em consideração a crise ocorrida no mês de maio do mesmo ano, quando a greve dos caminhoneiros obstruiu importantes rodovias do país, sendo o mesmo Ministro o responsável por deferir medida cautelar (ADPF 159) para autorizar os Poderes Executivos federal e estaduais a tomarem providências para desobstruir essas rodovias. O temor de um novo movimento daquela proporção e dos impactos negativos desse tipo de manifestação parece ser um dos panos de fundo para o debate travado no STF.
A princípio, os Ministros aparentam estar de acordo em relação a alguns pontos como (i) o direito de protesto deve ser garantido aos cidadãos e (ii) o aviso prévio não pode ser condicionante para o exercício do direito de protesto. No entanto, surgiram nos votos que negavam provimento ao RE desdobramentos como (a) o poder público deve desobstruir vias importantes que são completamente bloqueadas por manifestantes; (b) em caso de danos, é possível uma responsabilização no âmbito civil dos organizadores do protesto. Discutiu-se, portanto, as consequências jurídicas da ausência do aviso prévio. Uma vez que se fala em indenizações e responsabilização, está a se falar de ato ilícito. Afinal, no caso concreto do RE, o fato gerador da multa às entidades organizadoras do protesto foi justamente a falta do aviso prévio às autoridades.
A depender da proclamação final do Tribunal, teremos uma espécie de “regulamentação” do direito de protesto que poderá ser usada, no futuro, para limitar ou bloquear esse direito do cidadão brasileiro. O tema, no entanto, envolve diretamente o exercício da democracia e merece ser debatido com todo cuidado e atenção pela Corte. A depender de como votarão os Ministros que ainda não se pronunciaram, poderemos ter um perigoso precedente que impõe obstáculos ao direito de protesto. Ou, caso a Corte decida por dar provimento ao RE, se constituirá um julgado de referência para a proteção constitucional do direito de manifestação.