Carina Barbosa Gouvêa
No texto anterior “Democracia e as crises dos sistemas democráticos: e agora, quem poderá nos defender?”[1], apresentei algumas ideias que merecem atenção no atual cenário da crise dos sistemas democráticos.
Nesta retrospectiva, rememoro as seguintes premissas apresentadas: democracia é uma técnica de liberdade, um espírito livre e igualitário com inúmeros núcleos semânticos e que abraça todos os povos, culturas, línguas e ideais; a democracia está decantada em sistemas democráticos e são eles que a corrompem, violam e deturpam; as crises não são da democracia em si, porque ela é imaculada em sua essência, mas são dos sistemas democráticos; e, por fim, foi apresentado um modo de viver constitucional denominado “democracia cooperada”, onde existe necessariamente uma conexão entre o direito e a parte orgânica da carta fundamental – abrindo a sala de máquinas da constituição[2], entre o constitucionalismo político e jurídico[3], entre as pessoas constitucionais e as instituições democráticas.
Os sistemas democráticos incorporaram alguns mecanismos de natureza instrumental, como a teoria da separação dos poderes de Montesquieu[4], teoria esta quevem acompanhando o estudo do constitucionalismo e das constituições ao longo dos tempos. Pode-se dizer que representa uma ideia básica para a modelagem do desenho institucional, eis que se centra em torno de três ramos governamentais: poder executivo, legislativo e judiciário – aqui pensado como uma separação necessária para prevenir e controlar o poder[5]. Por que reacender a clássica teoria da separação dos poderes? Estamos diante de uma teoria já consolidada ou ainda não entendemos o “espírito das leis”?
Para Montesquieu[6], todas as leis, o que inclui a constituição e seu funcionamento, possuem relações necessárias que derivam da natureza das coisas, ou seja, todas elas possuem um espírito, uma natureza, um sentido de existir. Desta forma, existem pré-condições para sua existência: elas devem ser próprias do povo para o qual foram estabelecidas – em consonância com a identidade, cultura, multinação, dentre outras; deve estar conectada com sua natureza, ou seja, seus princípios fundamentais, e com o princípio do governo que foi estabelecido ou que se pretende estabelecer – leis fundamentais, modelo de desenho institucional, sobre o qual ela irá reger; e, por fim, deve estar concatenada com as condições orgânicas do país, como o clima, situação econômica e social, gênero de vida, grau de liberdade, religião, costumes, dentre outros – estas relações possuem dependência entre si.
Para Gouvêa[7], a teoria da separação dos poderes de Montesquieu, por vezes interpretada de modo simplista como divisão entre executivo, legislativo e judiciário, contempla quatro espíritos independentes e fundamentais que se conectam num todo perfeito: separação ou independência do exercício do poder por órgãos específicos; a distribuição de suas competências ou funções; a liberdade política[8]; e a cooperação. Estes núcleos semânticos com suas representações variam no universo contextual e se materializam pela via do desenho institucional a partir de múltiplas ferramentas.
Segundo Fiuza e Costa[9], a separação dos órgãos de poder não pode ser entendida de modo absoluto, mas de maneira formal. A clássica doutrina não estabelece a independência plena dos três órgãos de poder[10]– o que ocorre é uma “constante interpenetração entre os órgãos de poder, como uma engrenagem de relógio, de maneira que nenhum ato de governo seja de responsabilidade de um só órgão”[11]. Eles se entrosam e se subordinam mutuamente na consecução dos ditames fundamentais, dentre eles a proteção e promoção do desenvolvimento social e do homem. Desta forma, a cooperação limita e controla, também, o exercício do poder. Para Montesquieu[12], estes são três órgãos – executivo, legislativo e judiciário – que fazem parte de um mesmo Estado para o exercício do mesmo poder, sendo preciso, portanto, que colaborem entre si.
Ressalta-se que, mesmo naquelas constituições que absorveram a teoria da separação dos poderes e seus princípios instrumentais, estas nem sempre incorporaram todos os seus elementos essenciais. O que significa dizer que houve uma incorporação deficiente, na maioria das vezes, o que pode afetar diretamente o desenvolvimento estruturante e progressivo, principalmente dos direitos fundamentais de cariz social[13].
A teoria da separação dos poderes no universo da constituição brasileira representa um princípio fundamental e encontra-se engessado como cláusula pétrea. É uma engrenagem importante para o funcionamento das estruturas de poder. Embora absorvida pelo desenho institucional brasileiro, essa teoria foi operacionalizada de maneira deficiente. Dentre seus núcleos fundamentais, incorporamos somente a harmonia e a independência. Deixamos de lado a liberdade política e a cooperação como elementos estruturantes essenciais, o que acabou, consequentemente, levando ao agravamento da crise do sistema democrático brasileiro. A deflagração do “estado de coisas inconstitucional” – violação massiva dos Direitos Humanos – pelo Supremo Tribunal Federal, relativa ao sistema prisional nacional, representa um destes efeitos.
No tocante à dialética da separação/harmonia das funções estatais, tal qual expressa em todas as Constituições brasileiras, em especial no artigo 2º da Carta atual, é preciso que descortinemos outros aspectos, para que, desde fora, possamos perceber os influxos sentidos pela ação especializada do Estado.[14]O contexto eminentemente descentralizado, marcado pelo princípio da separação dos poderes, ou seja, posto sob a visão exclusiva da harmonia e independência, acaba por projetar o que se passou a nomear como judicialização da política, especialmente desde a centralidade assumida com a ascensão da função jurisdicional[15], particularmente ante o crescimento do seu papel como jurisdição constitucional.[16]
Um dos efeitos desta crise pode ser refletido, por exemplo, no efeito backlash exercido pelos poderes. No plano coloquial, para Valle[17], a palavra tem como significado primário um súbito e intenso movimento de reação, em resposta a uma mudança igualmente brusca na trajetória do movimento, isto é, uma reação em sinal contrário. Por exemplo, reações legislativas às decisões do Supremo Tribunal Federal, fenômeno que no universo doutrinário brasileiro é conhecido como “correção legislativa das decisões judiciais”.
Outro efeito decorrente pode ser percebido no desafio de superação dos bloqueios institucionais. Segundo Valle[18], estes bloqueios, em verdade, se verificam a todos os países que o universo da doutrina entendeu qualificar como integrante do Global South[19]e que apresentam constituições marcadamente transformativas[20]. A recente evocação pelo Supremo Tribunal Federal da categoria “estado de coisas inconstitucional”, no julgamento da ADPF 347, com seguidas referências à experiência pretérita da Corte colombiana relativa à decisão da SentenciaT-153/98, evidencia a percepção da Corte da necessidade do desenvolvimento de provimentos jurisdicionais que se revelem aptos a determinar uma resposta mais eficaz ao complexo bloqueio institucional que deu causa às maciças violações de direitos humanos havida nas prisões brasileiras[21].
Estamos aqui a reivindicar a incorporação de todos “os espíritos” do princípio da teoria da separação dos poderes de Montesquieu e prevista na Constituição brasileira: a independência, a harmonia, a liberdade política e a cooperação.
Será a abertura à cooperação, aqui pensada como ampliação no cenário de deliberação quanto ao conteúdo dos direitos, que permitirá superar problemas atinentes ao pluralismo baseado em um consenso construído, que não repousa em um único ator[22], seja ele Judiciário, Legislativo ou Executivo. O compartilhamento com as demais estruturas do poder para a conclusão das tarefas determinadas pela Constituição e que envolvem “a efetividade de direitos” revela-se a estratégia mais legítima a superar a crise vivenciada pelos poderes da República que estão, por um lado, agravando a crise do sistema democrático e, por outro, encerrados no isolacionismo hermético e não cooperativo[23].
[1] Disponível em < https://constitucionalismo.com.br/democracia-e-crises-do-sistema-democratico/>.
[2] Para Gargarella, esta distinção entre dogmática, que abraça os direitos, e orgânica, que envolve o “maquinário do poder”, reflete a principal tensão que existe em qualquer Constituição. (GARGARELLA, Roberto. Qué són los derechos? Canal Justicia. Disponível em <https://youtu.be/-x3CzQbQgYU>. Acesso em 20 de mar. de 2015.
[3] Para maiores informações, consultar GOUVÊA, Carina Barbosa; DANTAS, Ivo. Os caminhos para o desenvolvimento de uma interconexão entre o constitucionalismo político e jurídico: abrindo a “sala de máquinas da Constituição”. AREL FAAR, Ariquemes, RO, V 5, N 01, p.82-110, jan. 2017, p. 84. Acesso em 20 de setembro de 2018.
[4] MONTESQUIEU, Charles de Secondar, Baron de. O espírito das leis. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Marins Fontes, 1996.
[5] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro. Vol 1. Brasília: Biblioteca do Exército, 2018.
[6] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Trad.Cristina Muracho. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11.
[7] GOUVÊA, Carina Barbosa. Poder constituinte híbrido. Texto cedido pelo autor.
[8] A liberdade política constitui um dos elementos essenciais da teoria formulada por Montesquieu. Esta liberdade não é entendida em termos participativos, senão, como um elemento que representará um sentimento de confiança na segurança individual do sujeito. Para que exista esta liberdade é necessário que o governo seja tal que nenhum cidadão possa temer nada de outro. No livro XI, Montesquieu havia proposto uma outra definição no qual a liberdade política parece identificar-se com a obediência à lei, à constituição. Em apartada síntese, a liberdade política, considerada com relação ao cidadão, consistiria na segurança pessoal que este experimentava ao abrigo das leis e de uma Constituição que, entre outras coisas, assinala limites preciosos à ação do governo. (AGUILAR, Enrique. La libertad política en Montesquieu: su significado. Atilio Boron,(comp.), La filosofía Política Contemporánea, Buenos Aires, CLACSO, 2003.)
[9] FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros; COSTA, Mônica Aragão Martiniano. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 219.
[10] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro. Vol 1. Brasília: Biblioteca do Exército, 2018.
[11] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro; Gouvêa, Carina, “A teoria da separação dos poderes em 30 anos de constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional” (The Theory of the Separation of the Powers in 30 Years of Brazilian Democratic Constitution: The Forgotten Role of Cooperation to Contemplate the Perfect All in Institutional Design) (February 6, 2019), p. 1-20. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=3329942> e < http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3329942>. Acesso em 17 de fevereiros de 2010.
[12] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Trad.Cristina Muracho. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 165-196.
[13] GOUVÊA, Carina Barbosa. Poder constituinte híbrido. Texto cedido pelo autor.
[14] BOLZAN DE MORAIS, Jose. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaço-temporal dos Direitos Humanos. 2 ed. Porto Alegre: Revista dos Tribunais, 2011, p.57.
[15] A doutrina vem há muito tratando da temática, dentre eles, ver VIEIRA, Oscar Vieira. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, n. 2., p. 441-463; VALLE, Vanice Regina Lírio do; SILVA, Cecília de Almeida. Constitucionalismo cooperativo ou a supremacia do Judiciário. Jurispoiesis, Rio de Janeiro, v. 12, p. 321-348, 2009; LEITE, Glauco Salomão. Juristocracia e constitucionalismo democrático: do ativismo judicial ao diálogo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017; GOUVÊA, Carina Barbosa; DANTAS, Ivo. Os caminhos para o desenvolvimento de uma interconexão entre o constitucionalismo político e jurídico: abrindo a ‘sala de máquinas da constituição. AREL FAAR, Ariquemes, RO, V.5, N1, p. 82-110, Jan.2017. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3124507 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3124507.
[16] GOUVÊA, Carina Barbosa. A teoria da separação dos poderes em 30 anos da Constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional. In: BARROSO FILHO, José. (Coord). 30 anos da Constituição do Brasil de 1988: nosso projeto de futuro; Gouvêa, Carina, “A teoria da separação dos poderes em 30 anos de constituição democrática brasileira: o esquecido papel da cooperação para contemplar o todo perfeito do desenho institucional” (The Theory of the Separation of the Powers in 30 Years of Brazilian Democratic Constitution: The Forgotten Role of Cooperation to Contemplate the Perfect All in Institutional Design) (February 6, 2019), p. 1-20. Disponível em <https://ssrn.com/abstract=3329942> e < http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3329942>. Acesso em 17 de fevereiros de 2010.
[17] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Backlash à decisão do Supremo Tribunal Federal: pela naturalização do dissenso como possibilidade democrática. Palestra proferida no II Seminário Internacional da Teoria das Instituições. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.
[18] VALLE, Vanice Lírio do. Estado de Coisas Inconstitucional e Bloqueios Institucionais: Desafios para a Construção da Resposta Adequada. Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo, 2016, p. 332.
[19] Para Valle, a expressão pretende enunciar um traço comum entre países que ostentam um exercício bastante particular de jurisdição constitucional, marcadamente comprometida com a efetividade de direitos fundamentais, mesmo os de cariz socioeconômicos. Originalmente cunhada por Maldonado, a expressão foi veiculada em obra dedicada a análise da atuação das Cortes Constitucionais da Índia, África do Sul e Colômbia (MALDONADO, Daniel Bonilla, ed. Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia. Cambridge University Press, 2013). VALLE, Vanice Lírio do. Estado de Coisas Inconstitucional e Bloqueios Institucionais: Desafios para a Construção da Resposta Adequada. Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo, 2016, p.335.
[20] O constitucionalismo de transformação diz respeito ao conteúdo substantivo da proposta de constitucionalismo manifestada em um texto que pretende ser o motor de alteração de uma realidade social. Ou seja, designam os esforços que abraçam o projeto de longo prazo de promulgação, interpretação e a implementação constitucional, dirigidas a transformar as relações sociais e instituições de poder em uma sociedade democrática, participativa e igualitária. (GOUVÊA, Carina Barbosa. As intervenções da ONU no processo de constitution-making nos Estados em transição política: o papel das Nações Unidas no resgate da ordem democrática. Curitiba: Juruá, 2016, p.32. Aproxima-se da ideia de bloco constitucional dirigente, eis que fornece um impulso permanente e consagra uma exigência de atuação pelo Estado como agente promotor destes direitos. Observa-se natransformação, um conjunto de tensões que facilitam o desenvolvimento da sociedade, marcadas pelas ações planejadas e não pela ascendência do instituto pragmático. (DA SILVA, Alfredo Canellas Guilherme; GOUVÊA, Carina Barbosa. Constitucionalismo e seus modelos contemporâneos de transformação e transição. Revista Interdisciplinar de Direito, v. 10, n. 1, 2017, p. 202-220, p. 218.
[21] VALLE, Vanice Lírio do. Estado de Coisas Inconstitucional e Bloqueios Institucionais: Desafios para a Construção da Resposta Adequada. Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo, 2016, p.346.
[22] SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010, p. 55.
[23] SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010, p. 55.