Constitucionalismo

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Por que precisamos de democracia

15 de janeiro de 2019 by Observatório

Tarso de Melo

Num tempo em que tanta gente acredita no inacreditável, talvez seja o caso de reafirmar o óbvio: quem tem que se preocupar com democracia é o povo. É o povo quem sai perdendo num regime autoritário, assim como é o povo que perde também numa democracia de fachada, em que sua participação é controlada de cima. É do povo, portanto, o interesse de fazer da democracia o regime político em que possa, de fato, ajudar a decidir o que mais atende a suas muitas necessidades.

Podemos passar horas aqui debatendo o significado das expressões de que abusei acima – “democracia” e “povo” –, mas também podemos pegar um atalho e definir, por oposição, o que queremos que elas signifiquem na nossa realidade. Por oposição, repito, porque sabemos muito bem quando algo está sendo decidido de modo autoritário, bem como sabemos quem são aqueles que não fazem exatamente parte do povo. (Aliás, jogar com o sentido dessas expressões é a artimanha predileta de políticos autoritários: na linguagem do nosso atual presidente, por exemplo, democracia é uma coisa ruim, é “o mal”, e, portanto, combatê-la é uma forma de defender o povo.)

Por essa perspectiva, um bom critério para aferir o grau de democracia de um determinado governo é reparar bem na forma como as decisões políticas são tomadas e também no grupo que vai se beneficiar dessas medidas. Democrático, em geral, é o processo de tomada de decisões que envolva o maior número de pessoas (no mínimo, como observadores) e, na outra ponta, é democrática aquela medida que beneficie o maior número possível de pessoas. No entanto, nos acostumamos com o contrário disso: processos e benefícios cada vez mais concentrados. Por quê?

A ideia de democracia convive, desde seu surgimento entre os gregos, com críticas duras, de um lado e de outro, de um extremo a outro. Mais do que críticas, toda ideia democrática encontra resistências violentas da parte daqueles que se beneficiam de sistemas autoritários, elitistas, discriminatórios etc. Por mais que seja da natureza da democracia se aperfeiçoar na medida das críticas e das resistências que enfrenta, ela sofre desgastes profundos nesse embate permanente com os poderosos. Isso explica, por exemplo, que tantos governos tenham sido eleitos, nos últimos anos, em países democráticos, defendendo a bandeira de que “a democracia é o problema”.

A democracia, na verdade, deveria ser um problema: um problema para quem detém poder dentro das estruturas tradicionais. Mas normalmente não consegue ser, de modo duradouro, um obstáculo para as pessoas, as empresas, os países poderosos. Pelo contrário: são tais pessoas, empresas e países que transformam – ou deformam? – a democracia no que melhor atende aos seus interesses. Salvar a democracia da mão dos poderosos é o grande desafio do povo. E eu não falo, claro, da democracia em sentido teórico, liberal ou progressista, mas da construção de relações de poder em novas bases, fora das instâncias em que os interesses populares são tragados.

Diante de um governo autoritário, a defesa da democracia impõe-se pelas mais variadas razões e, também, deve ser feita em várias perspectivas. De início, devemos nos apropriar do sentido mais radical que a democracia seja capaz de suportar. Para tanto, é preciso desfazer a imagem negativa que pesa sobre a democracia entre nós. O povo tem sido colocado contra a democracia e seus instrumentos, porque é conveniente, para um governo cujo autoritarismo é condição para realizar um projeto econômico destrutivo, demonizar a democracia como culpada por todos os males da sociedade: a “imoralidade”, o desemprego, a corrupção, a ineficiência, tudo.

Isso explica o fato de ter sido eleito, com quase 58 milhões de votos, um candidato que elogia até mesmo os feitos e sujeitos mais desprezíveis de uma ditadura, promete medidas autoritárias, atropela a Constituição, faz piadas com direitos fundamentais. Enfim, vamos ter que lidar com isso agora como medidas concretas, bem mais do que simples ameaças e provocações no Congresso, nos programas de tevê, nas redes sociais. E não há outro antídoto contra o estrago que um governo autoritário e incompetente pode fazer neste momento de crise num país de democracia tão frágil como o nosso: fortalecer a democracia, ou seja, reduzir o poder dos poderosos.

É hora de unir esforços, em todos os níveis, para uma “ação [que] deve consistir na defesa da dignidade dos seres humanos e da natureza por via da radicalização da democracia, uma democracia de alta intensidade”, como bem sintetizado por Boaventura de Sousa Santos, no pequeno e precioso livro Esquerdas do mundo, uni-vos. Sim, alta intensidade! Para além das querelas partidárias, que também não costumam se resolver em favor dos interesses do povo, deve ser construída uma polarização importante, massiva, incansável, contra as medidas do novo governo, que a cada dia mais mostra sua disposição para desmontar tudo o que considera ser “socialista” (direitos dos trabalhadores, previdência social, universidade pública, SUS, Justiça do Trabalho, entre outros), mas que, na verdade, são a expressão e a garantia mínima de direitos sociais de que não podemos abrir mão. Nunca.

Tarso de Melo é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP, colunista da revista CULT e autor de Direito e Ideologia (2009).

Filed Under: Observatório

José Nunes (@nunescnt) é doutorando em direito na Universidade de Brasília.

  • e-mail: nunescnt@gmail.com

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