Constitucionalismo

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Wilson Witzel e a seleção dos matáveis

29 de janeiro de 2019 by Observatório

Rogério Madeira

“Eles querem um preto com arma pra cima

Num clipe na favela gritando ‘cocaína’

Querem que nossa pele seja a pele do crime”

(Bluesman – Baco Exu do Blues)

Já nas primeiras linhas de seu ensaio “Necropolítica”, Achille Mbembe define soberania como o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Necropolítica, define-se, portanto, como uma política de produção de seres matáveis e expostos à morte. Em uma discussão depositária do conceito de biopoder (Foucault) e suas conexões com as noções de soberania e estado de exceção (Carl Schmitt), as reflexões de Mbembe nos auxiliam a pensar sobre as especificidades do racismo brasileiro, especialmente em sua letalidade para a população afrodescendente. Dois elementos são centrais em sua análise sobre essa política da morte que produz seres descartáveis: raça e espaço. Mbembe destaca como a política racista moderna e seu o processo de desumanização, encontrou em determinados espaços a oportunidade para o exercício da soberania. O campo de concentração, a colônia, a plantation, o distrito do apartheid sul-africano, e acrescentaríamos, a favela, se estabelecem como espaços de exceção onde se exercita a soberania como o direito de matar.

Nesses locais, a função do racismo seria o de regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Para isso, a soberania constrói um imaginário que cria a percepção do outro como um inimigo, um risco para minha vida, um perigo absoluto cuja eliminação biofísica reforçaria o potencial para minha existência e segurança.

É exatamente esse imaginário do inimigo, reforçado pelo racismo, que faz com que o governador eleito do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel declare, sem pudores, como política de segurança do estado o “abate de bandidos que estejam portando fuzis”. O traficante, morador da favela, passaria a ser um ser matável por portar um fuzil. O governador defendeu ainda que o estado “precisa ter sua Guantánamo” para traficantes.

Como destaca Mbembe, o estereótipo racista é a base do processo de extermínio nos espaços de morte. O negro com arma na mão não passa por qualquer mediação que o afaste da figura do inimigo a ser morto. Caso, soberanamente, o deixe viver, para ele deveria ser reservado uma “Guantánamo”, um lugar de exceção, onde a soberania exercita um poder à margem da lei. No imaginário construído para legitimar o assassínio, o espaço da favela e a figura do traficante – e aqui estabelecemos uma comparação com o espaço colonial – configurariam um mundo selvagem, fora das regras e dos controles, um lugar de supressão da ordem. Assemelha-se, portanto, a uma outra forma de vida animal a qual, ao ser matada, não confere consciência de assassinato. Sintomático dessa perspectiva é o uso do termo “abate”, comumente utilizado para sacrifício de animais, agora transferido para a morte do favelado que porta arma de fogo.

Nesse processo de definição soberana sobre quem importa e quem não importa, sobre quem é “descartável” e quem não o é, tem especial relevância as tecnologias morticidas. As relações entre modernidade e terror ensejaram o surgimento de inovações nas tecnologias de assassinato que visam não apenas “civilizar” os modos de matar, mas também, como destaca o Mbembe, “eliminar um grande número de vítimas em espaço relativamente curto de tempo”. No caso brasileiro, destacando-se apenas o estado do Rio de Janeiro até setembro de 2018, 1532 pessoas foram mortas pela polícia, conforme dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP). Como tentativa de sofisticação dos instrumentos morticidas e para garantir maior seletividade em sua execução, o governador eleito, antes de sua posse, foi ao estado de Israel, – num movimento representativo de um processo de aproximação comercial pautado em rentáveis negócios para a morte -, em busca da tecnologia de drones capazes de identificar e atirar em seus alvos.

A política de “abate” de traficantes proposta pelo atual governador visa proliferar não apenas técnicas de matar, mas espaços de violência. Como assinala Mbembe, a ocupação dos céus, seja por meio de drones ou helicópteros, reitera o simbolismo do topo (quem se encontra no topo), dividindo as camadas populacionais em superiores e inferiores. Daí a importância crucial que o policiamento a partir do ar adquire na necropolítica: “matar incorre em mirar com alta precisão”.

O fato a se estranhar não é apenas quanto ao o horror em si das propostas do atual governador, mas a pouca repercussão que elas levantaram. Utilizando-se de um argumento de G. Bataille, Mbembe destaca que “a força para violar a proibição de matar, embora verdadeira, está sob condições que o costume define”. A insegurança e o medo gerado pelo inimigo constituíram o “costume” de matar corpos negros, num processo de banalização do assassínio pelo estado que já não causa horror em grande parte da população do Rio de Janeiro. Deste modo, no Rio de Janeiro sob intervenção federal, os territórios ocupados permitem uma modalidade de crime que não distingue amigo e inimigo, constituindo-se estado de exceção em que são estabelecidas e fortalecidas relações de inimizade que sustentam a base normativa do direito de matar. Mortes que não são computadas como despesas absolutas, como um excesso, uma antieconomia, pois, afinal, se estabeleceu que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Seu desaparecimento não geraria, portanto, prejuízos.

Rogério Madeira é professor de direito administrativo da Universidade de Brasília.

Filed Under: Observatório

José Nunes (@nunescnt) é doutorando em direito na Universidade de Brasília.

  • e-mail: nunescnt@gmail.com

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